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sábado, 30 de junho de 2012

NO CENTER DO SHOPPING




Meus irmãos, as negociações da venda da fazenda para a construção do shopping entraram num impasse sem solução à vista. Ainda que a gente tenha metade da propriedade, o pai é dono dos outros 50%, e pra complicar ele ainda tem o usufruto da casa-sede.

O velho continua batendo o pé dizendo que não sai da casa de jeito nenhum, mesmo que tenha que desviar da fila do Mc Donald’s pra tirar leite das vacas.

Tentei argumentar dizendo que ele não iria aguentar a muvuca, o trânsito de carros pra cima e pra baixo, o barulho... O pai me respondeu aos berros, falando que o bisa, o vô, ele, nós e os nossos filhos nascemos todos naquela casa - e que ele, pelo menos, só saía de lá pro campo santo. Bateu a porta e se trancou no escritório, onde nos últimos tempos passa horas lustrando a cartucheira.

E o pior é que não tem jeito. Dentro da fazenda, a topografia ideal pra construir o shopping é bem na área onde está a casa. Além disso, mesmo se houvesse outro ponto pra fazer a obra, não daria visibilidade pra quem passa na estrada. O restante das terras seria pra construir estacionamento, depósitos, espaço para eventos, tratamento de esgoto, essas coisas.

Só que agora tem um fato novo: o pessoal da empreiteira parece que é tão louco quanto o velho e sugeriu deixar a casa onde está, construindo o shopping ao redor dela. Ele se chamaria "Casa Grande Supercenter" e a vivenda no centro dele seria apresentada à imprensa e aos lojistas como uma espécie de construção histórica preservada pela administração do empreendimento. Segundo os caras, isso daria um ganho de imagem, como se o shopping tivesse respeito pela cultura e pela tradição local - o que seria positivo perante a opinião pública. Ou seja, eles literalmente contornam o problema e ainda ficam de "bonzinhos" na história toda.

Só que não dá pra imaginar o pai morando lá e a cidade inteira passeando e fazendo compra em torno dele. Como é que ia ficar a privacidade do velho? A gente ia ter que tirar ele da casa de qualquer forma. Uma alternativa é deixar a coisa acontecer e esperar ele mesmo mudar de ideia, quando o shopping começar a funcionar. Provavelmente o povo lá da empreiteira trabalha com a possibilidade de vencer o velho pelo cansaço, depois que o monstrengo abrir as portas.

Agora, a questão financeira: se por acaso a gente ainda conseguir convencer o pai a sair e deixar os caras derrubarem a casa, eles pagam 150 reais por metro quadrado da fazenda. Multiipliquem isso por cinquenta e dois alqueires, sendo que cada alqueire tem 24.000 metros. Vamos ficar todos milionários! Porém, se a casa e o velho ficarem, o máximo que eles pagam é 10 reais o metro.

Pergunto a vocês, meus irmãos: como é que saímos dessa? Acho que se a gente pedir 1000 reais por metro, os caras pagam - contanto, claro, que possam colocar a casa abaixo. Pensei em dopar o velho, misturando alguma merda no suco de graviola. Quando ele acordar no hospital, a gente diz que caiu um avião ou que jogaram uma bomba em cima da casa. O problema é que o pai não é bobo, ele vai ligar os fatos e pode querer descarregar a cartucheira em cima do pessoal da construtora... alguém tem ideia melhor?



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 23 de junho de 2012

31 DE DEZEMBRO DE 1999 (EPISÓDIO QUASE AUTOBIOGRÁFICO)



Imagem: superdownloads.com.br 

Um dia de outono de 1981, último ano do colégio. Estava sentado na minha carteira, fingindo que não prestava atenção no pacto que ali, ao meu lado, se selava. Lá na frente, o professor de matemática falava para as paredes.

- Fica combinado, então. Nós cinco.
- Aconteça o que acontecer, tem que estar todo mundo lá.
- Tá tão longe isso, gente. Esse dia não vai chegar nunca, vocês não se tocam, não? Tanta coisa mais importante pra pensar... o vestibular, a faculdade. E depois tem outra, a gente vai continuar junto.
- Quem garante? Tudo pode mudar, de uma hora pra outra. Mais cedo ou mais tarde, vai cada um pra um canto.
- Tudo bem, só que até lá estaremos no século 21. De onde a gente estiver, vai bastar apertar um botãozinho e fazer o teletransporte para a pracinha. Tranquilo, pessoal.
- E se eu já tiver casado, com um monte de filhos...
- Não, não. Tem que vir sozinho.
- É, nada de família junto. Só a gente mesmo, esposa não é da turma.
- Que jeito, meu? Que mulher vai aceitar que você passe a virada do milênio com quatro barbados ao invés de ficar com a família? E quatro barbados carecas, porque até lá...
- Bom, por mim, tá feito.
- Eu também topo. Pode redigir uma ata e botar meu nome que eu assino.

Eles cinco, a panelinha inseparável, estavam tramando de se encontrarem à meia noite do dia 31 de dezembro de 1999, na praça do coreto. Passagem de ano, de década, de século e de milênio (não exatamente de século e de milênio, mas a data era emblemática). Dezenove anos depois. Eu não conseguia imaginar aquele reencontro. Era amigo dos cinco, mas não era exatamente da turma. Tanto que eles não me incluíram no pacto.


(Coloque aí na sua telinha um efeito especial de passagem de tempo. Velhas casas de família viram prédios. Os Corcéis, Opalas e Brasílias agora são Vectras, Fiestas e Golfs. A imagem em sépia fica colorida. E aparece aquele texto bem manjado no rodapé do vídeo: “19 anos depois”...)

Por nada nesse mundo eu poderia perder aquela cena. Queria assistir de longe, ver sem ser visto, estava de bicão naquela festa privê. Depois do encontro me juntaria a eles. A hora da virada chegou e me pegou sozinho ali na praça. Meia noite, nada. Meia noite e meia, nada. Ninguém apareceu. Só eu, a testemunha intrometida, o que não era pra estar lá. Decidi ficar mais uns cinco minutos, até dar uma da manhã e ter certeza de que não apareceria mesmo ninguém. Era horário de verão. Será que estava valendo o horário antigo? Se fosse assim a coisa tinha acontecido às onze da noite e talvez já tivessem ido embora. Foi quando surgiu um rapazinho, de jeans e camiseta branca, meio ofegante. Sentou-se num dos bancos, olhou para os lados, consultou o relógio, esperou. Os cabelos longos e lisos, os olhos amendoados, as pernas finas. Claro, era o Tavito. Em qualquer lugar do mundo o reconheceria.

Saí do meu posto de observação e fui até ele.
- Tavito!
-
Não era possível, o tempo não tinha passado pra ele. A mesma cara, nenhuma ruga, nenhum cabelo branco. O Tavito me olhava com um jeito de quem não estava entendendo nada.
- Sou o filho dele. Meu pai morreu quando eu era criança. Deixou uma carta lacrada, que só deveria ser aberta ontem, dizendo que tinha um encontro marcado com seus melhores amigos hoje à meia noite, aqui nesta praça. Se por algum motivo ele não pudesse vir, eu deveria representá-lo. O senhor deve ser um deles...

Logo ele, o Tavito. Dos cinco, o mais descrente do pacto. O único a honrá-lo, mesmo morto.

- E os outros três, já foram?

Sentei ao seu lado e expliquei a história e minha condição de testemunha. Depois ficamos ali, madrugada adentro, à espera dos quatro ausentes. Uns fogos estouravam ao longe, carros passavam pela pracinha buzinando, grupos de branco iam em direção ao clube. Falei da linha do trem, que antes dele nascer cortava a cidade de fora a fora. Comentei como o pai dele era bom de natação, os campeonatos que ganhou, o sucesso que fazia com a mulherada. Os porres que tomamos, os aventais brancos que vestíamos na escola. Ele me contou do acidente de avião, do trauma da perda, do segundo casamento da mãe. Eu escutava, mas não ouvia. Divagava, vendo em sua boca os lábios do pai dele me sussurrando as respostas da prova de biologia.



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sábado, 16 de junho de 2012

PEQUENO STEVE




Ilustração: Thiago Cayres


Eram sempre graúdas, doces, se possível geladinhas. Tenras maçãs desde tenra idade.
- Incrível, Steve. Você nunca esquece. Um dia sem suas maçãs na minha mesa e meu ânimo não seria mais o mesmo. Mal devoro uma e já fico à espera da atualização.
- Que bom, professora. Acredito que toda pessoa precisa deixar sua marca no mundo, de alguma forma. Visível, presente. Garanto que esse pequeno gesto fará com que a senhora jamais esqueça de mim, ainda que a partir do semestre que vem nós nunca mais nos vejamos na vida.
- Você parece tão adulto e assertivo. Às vezes você me assusta, garoto. Mas é ao mesmo tempo tão infantil a ponto de não fazer nunca a lição de casa, e sinto que você faz isso – ou não faz isso - de caso pensado.
- Resposta certa, teacher. É que o caderno branco me parece perfeito. Gosto do branco, da coisa clean.
- Percebo que, enquanto estou lá na frente explicando a matéria, muitas vezes você fica o tempo todo olhando para as janelas...
- A professora não pode imaginar as ideias que elas já me deram. Mas prefiro não abrir minha boca, sob pena do Bill estar ouvindo atrás da porta e amanhã na hora do recreio sair dizendo pra todo mundo que a autoria é dele.
- Bill? O da primeira fila?
- Ele mesmo. Essa cara de escoteiro pode enganar a todos, menos a mim.
- Não fique assim, com o pé atrás. Acho que você está fazendo mau juízo, nunca vi William Gates colando na prova ou coisa parecida.
- Não me venha com essa, teacher. Tenho uma opinião muito bem formatada sobre Bill, e não há nada que você possa fazer a respeito. Estive em sua garagem no verão passado e pude ver de perto seus métodos, ok?
- Tá certo, mas vamos mudar de assunto. Isso que você chama de estojo também é algo muito peculiar. Fale-me sobre ele.
- Ah... gostou? Fica tudo mais à mão desse jeito. É uma espécie de arquivo zipado. Basta um toque aqui no zíper e tenho acesso a todos os recursos que preciso, onde quer que esteja. Melhor que deixar tudo jogado de qualquer jeito nestas enormes pastas escolares. No tempo que meus colegas perdem procurando suas coisas eu já fiz o que tinha que fazer.
- Mas acontece que você não faz o dever...
- É preciso que a senhora entenda que não gosto de fazer a tarefa, gosto de pensar no jeito mais fácil de executá-la. O que se vai colocar no caderno, na lousa, na prova, é consequência. Cada um fará do seu jeito, e eu prefiro abrir atalhos enquanto os outros andam em círculos.
- Sabe, Steve, eu poderia reprová-lo ou mandá-lo para a diretoria por insubordinação. Mas sinto que a insubordinada no caso seria eu, pela audácia de fazer o revolucionário Jobs repetir de ano. Prefiro que a história diga que eu fui a primeira pessoa a acreditar em suas ideias, por mais insanas que elas me pareçam no momento. Por favor, não me decepcione.

(upgrade na edição 2.0)

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 9 de junho de 2012

O CESSAR DAS SESSÕES




Foto: Museu Freud, Londres.



Fiz análise durante um certo tempo, por motivo que não vem ao caso expor aqui. Esse certo tempo na verdade não chegou a 3 meses, o suficiente para que eu me desse alta – embora estivesse pior que no início das sessões. Bem pior, descrente da panacéia freudiana e de mim mesmo, me achando um caso perdido.

Era uma sessão semanal, às sextas e após o trabalho. Rua tranquila, lugar gostoso, consultório aconchegante. A iluminação indireta, só um abajur com uma lâmpada fraquinha. Sentia-me confortável com o chenile do divã e com a perspectiva de 50 longos minutos para um trato nos miolos. O único problema era justamente esse – os tais 50 minutos cravados eram longos demais. O que para os outros pacientes passava voando, para mim parecia todo o período paleozóico.

O analista seguia a linha ortodoxa, freudiano até a medula. E como todo discípulo empedernido do velho Sigmund, se agarrava aos sonhos, lapsos e associações livres pra ir formando o quebra-cabeças. Nesse caso, o monta-cabeças.

Mas o fato é que o homem não abria a boca. Se havia uma análise em curso naquelas quatro paredes só ele sabia, porque absolutamente não compartilhava com a outra parte interessada. Com receio de perguntar, eu também ficava quieto.

Tenho relativa facilidade de não pensar em nada, quando me é possível desfrutar dessa benção. Tanto que no começo achava bom ficar ali, como um acéfalo, os olhos pregados no teto. Só que tudo tem limite. O tempo passando, o taxímetro correndo e eu olhando aqueles certificados todos na parede. As letras góticas com o nome do doutor. A diferença de desenho do D de um diploma para o D de outro. Um em tinta dourada, outro em nanquim, o de graduação de 1972, o de especialização de 1977, o de mestrado de 1979...

Tomei a iniciativa:
- O senhor não vai dizer nada?
- Quem tem de falar é você.
- Mas vou falar o quê?
- A idéia é dizer o que primeiro vier à mente.

Dizer que eu estava pensando na letra gótica do diploma era demais. Ou de menos. Mas era a verdade, caramba. Eu pagando uma senhora grana para ficar viajando nas firulas e arabescos de um diploma.

Fechava os olhos e nada. Do nada branco passava para um nada negro e sem saída. E o analista impassível, virado de costas pra mim, cruzando e descruzando as pernas. Aquele silêncio era uma goteira dentro da solitária, uma furadeira de impacto me perfurando os tímpanos.

Outro pensamento recorrente, mas inconfessável naquelas circunstâncias: o que ele, analista, estaria pensando? Conjectura sobre o meu silêncio? Fica ali, caraminholando, empenhado em me livrar de minhas neuroses, ou não vê a hora de dar o tempo regulamentar pra pegar seu cineminha?

Me dei conta de que, além de estar pensando no que estava pensando, estava começando a pensar no que o analista estava pensando de mim. Racionalizava o processo, filtrava, censurava, estragava tudo.

E assim foi, não sei quantas vezes. Os brancos eram cada vez maiores. Vinte, trinta, quarenta minutos sem falar nada. O último deve ter durado uns quarenta e sete, porque logo depois ele me mandou embora.

Se bem me lembro, os três minutos finais foram mais ou menos assim:
- Fala alguma coisa, doutor. Não aguento mais esse silêncio.
Pela enésima vez, ele argumentou:
- A idéia é dizer o que primeiro vier à mente.
- Estava pensando na música que tocava no rádio enquanto vinha pra cá.
- E você gosta dessa música?
- Detesto.
- Certo. Que mais?
- Sei lá... o que me ocorre agora é que vou ter que comer um hambúrguer pra matar a fome quando sair daqui.
- Hum. Sei, sei.

E sentenciou, depois de longa pausa:
- Talvez o que você encontre aqui não lhe soe bem aos ouvidos, nem lhe caia bem no estômago.

Acertou na mosca. Pra mim bastava, meus fantasmas não eram tão assustadores assim. Encontraria formas mais econômicas de praticar meditação.

- Seus 50 minutos acabaram. Até sexta que vem.
- Até, doutor.

Tá lá me esperando, desde 1992.



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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