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sábado, 27 de julho de 2013

MANIFESTO PELA VOLTA DO TEMPO






O sujeito que assina este mal-arrumado desabafo, em nome de toda a humanidade (à exceção talvez dos anciãos com mais de 100, bem servidos de saúde e paradoxalmente fartos de viver), vem a público exigir que o tempo volte o mais rápido que puder. E que fique claro que não me refiro à volta no tempo; o que reivindico é o retorno do próprio tempo, calmo e humilde, à vida das pessoas.

É espantoso como tudo, há uns poucos anos, levava muito mais tempo para ser feito. E quanto mais vagaroso era o processo, mais tempo, estranhamente, sobrava para o cidadão.

Criava-se o porco no quintal. Matava-se o bicho. Jogava-se água fervente sobre o pelo, a ser raspado na navalha. Abria-se a barrigada, separava-se as partes, temperava-se e deixava-se, da noite para o dia, o leitão esquartejado submerso em marinada. Providenciava-se a lenha, acendia-se o fogo, cozinhava-se lentamente e degustava-se mais lentamente ainda. Era um tempo de sobra que não acabava nunca mais, de enjoar de fazer nada. De botar cadeira na calçada, chamar o vizinho pra uma breja e fomentar o diz-que-diz-que. O tempo era artigo barato, era preciso arrumar um jeito de se livrar dele. Matá-lo de alguma forma antes que ele matasse a todos de tédio. Tempo havia para debruçar na janela, jogar paciência, montar quebra-cabeça. Fazia-se a sesta, lia-se pela satisfação de ler, não pela urgência de manter-se up-to-date.

Voltando à feijoada, dessa vez à rala, insípida e inodora versão de hoje – em lata e aquecida no microondas. Não presta-se atenção no que se está comendo, pois no tempo em que se engole a gororoba ao molho de flavorizantes vê-se a TV, fala-se ao celular, confere-se o extrato, pensa-se nos termos do relatório a ser entregue o mais tardar às 12h30. E são 12h20, meu Deus do céu.

Se aqui é assim, imagine lá, do outro lado do mundo. Valorizar o tempo é com os japoneses. Ninguém tem know-how mais apurado. Por algum mecanismo ancestral, sabem os nipônicos desde tenra idade que tempo é recurso não-renovável, e consequentemente precisam consumi-lo da mais produtiva maneira. Lá na placenta, enquanto espera ficar pronto pra vir ao mundo, o japonesinho deve aproveitar o líquido amniótico pra cultivar algum legume hidropônico. Ou já reserva aquela água que o rodeia pra abrir sua lavanderia quando nascer. Talvez ache oportuno estudar a anatomia da mãe e já ir se afiando para o vestibular de medicina.

Melhor ainda que voltar, amigo tempo, seria ver você parado. Isso mesmo. Nem correr, nem andar, nem se arrastar. Simplesmente parar, perder a função de tempo e eternizar-nos a todos.

E vamos ficar por aqui, porque o tempo do leitor é curto e seria uma lástima continuar a desperdiçá-lo. Ainda mais comigo.

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Obs: crônica de 2006, republicada hoje por ter faltado tempo para escrever uma nova.


Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 20 de julho de 2013

ÓVULOS PENOSOS. ESTÁ SERVIDO?


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Os veganos estão certos. Estão certíssimos. Não só pela determinação de não ingerir cadáveres de animais, mas também por, coerentemente, se recusarem a consumir os derivados deles. Especialmente o ovo, o mais nojento e abominável desses subprodutos.

Que não se conteste o valor nutricional do dito cujo, o que o coloca entre os alimentos mais completos que existem. Sem falar do sabor, que quando frito é, de fato, uma iguaria. Basta ele e um pouco de arroz branco, e teremos um dos mais estonteantes  manjares já concebidos pela espécie humana.

O problema é quando você se põe a pensar na natureza daquilo que está comendo. E aí vem à mente alguns fatos e imagens não propriamente abridores de apetite – como o órgão excretor do produto, a cloaca, e os não raros ovos com suas cascas saindo de fábrica manchadas  de sangue. Uma vez coletados, higienizados e enfileiradinhos em suas assépticas embalagens de supermercado, não revelam à dona de casa a suja e dura crueza de sua gestação. Reflita, analise, leve o assunto ao debate doméstico e em sã consciência não admitirá mais um único ovo em seu cardápio - nem mesmo aquela pinceladinha discreta em cima da empada.

Ovo é óvulo, o maior do reino animal. Gosmento e quase sempre mal-cheiroso, quando in natura, permanece microscopicamente alojado no ovário da galinha desde o nascimento do bicho, esperando na fila pra ser posto pra fora.

Sim, a aparente delícia é de revirar o estômago. Inverta a situação e compreenderá um pouco melhor o absurdo: imagine uma galinha ciscando um absorvente feminino. Usado, evidentemente. Não seria exatamente esse o comportamento dos comedores de ovos? Considerando-se a ínfima inteligência da galinha, é até admissível o despropósito de vê-la degustando um Carefree de procedência ignorada. Mas e nós, animais racionais, que justificativa podemos dar ao ato bárbaro de sentar à mesa e mandar um zoiudão para o bucho?

Só que é preciso determinação para levar a abstinência adiante: nove entre dez receitas doces ou salgadas levam ovos - inteiros ou só as gemas. Por que continuam assim tão indispensáveis, esses pintinhos que não vingaram, nas caçarolas, frigideiras e batedeiras de bolo? Como é que a tecnologia ainda não conseguiu providenciar um substituto sintético à altura, com as mesmas propriedades de liga, que dão ponto às receitas das tias velhas? Ou pelo menos encontrando uma alternativa no reino vegetal, capaz de acabar de vez com a primazia gineco-galinácea no mundo maravilhoso da culinária.

Por outro lado, se não fossem aproveitados pelo homem em sua dieta, seria necessário inventar o que fazer com eles, já que uma única galinha põe em média 265 ovos ao ano. Com expectativa de vida produtiva de dois anos em ambiente de granja, vamos arredondar para 500 peças o portfólio penoso ao longo da existência. Isso a galinha confinada, pois a de fundo de quintal chega fácil aos 15 anos. Com a palavra, os veganos...


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 13 de julho de 2013

O CHULÉ DE HITLER


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É triste e embaraçoso. Viram o rosto e tapam ostensivamente seus narizes com as mãos, à minha passagem. As pessoas se afastam, a repulsa vai me isolando até o limite do insuportável. No meio da multidão, quase sempre se abre uma clareira por onde ando, tamanho o efeito dessa bota malcheirosa. Mas curiosamente consigo antever, nesse caminho que se abre, um sinal de respeito e submissão pacífica. Uma reverência do povo para com seu líder. Vamos, vamos, deixem passar o rei dos fedidos.

No colégio, Fohenstein, aquele de bigodinho ridículo e cabelo repartido que veio de Auschwitz, é o mais perverso. Do alto de seus coturnos ele me olha com cara de nojo, como se dos meus pés saíssem gases letais. Meu Deus, até onde vai a crueldade humana! Eu não tenho culpa se os fungos proliferam mais em mim do que na maioria das pessoas. Isso não faz da minha uma raça inferior, nem de Adolph um ser humano abjeto.
Que foi que eu fiz para merecer tanta perseguição? O que me vale é a amizade de Takeshi e Albertini. Mesmo que todos se virem contra mim, pelo menos esses dois eu sei que estarão ao meu lado, nem que o mundo um dia caia sobre nossas cabeças.

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sexta-feira, 5 de julho de 2013

DECOTE DE ANDREZA


Tela: Edouard Manet



Os seios de Andreza eram indecentemente belos. Tão ostensivamente lindos que não havia como não serem expostos em decotes generosos, sempre em tecido leve e transparente.

Tamanha era a beleza de seus contornos que, não raramente, Andreza provocava divórcios e outras desavenças conjugais por onde passasse. Não só pelo ciúme das esposas ao notarem os olhares demorados dos maridos sobre os bem torneados gêmeos, mas também pelo efeito contrário: quando não sucumbiam ao transe hipnótico dos seios da moça, resistindo bravamente à tentação, os maridos acabavam por sugerir uma masculinidade vacilante, o que levava à desconfiança das mulheres sobre o poder de fogo dos companheiros. "Será que é homem mesmo esse traste que eu tenho em casa?", pensavam algumas. A dúvida sobre a "macheza do cabra" causava mais cisma e desconforto do que o interesse exacerbado - que seria a reação natural. Afinal, Andreza era Andreza.

Sua fama espalhava-se, e a cidade devia a ela uma homenagem. Então, com toda a pompa e circunstância, ergueu-se em praça pública um busto ao busto, esculpido em mármore de carrara e de proporções gigantescas, podendo acomodar, amontoada sobre suas curvas, toda uma família de até 12 pessoas e um cachorro de médio porte para a tradicional foto turística. Sim, porque o turismo tornou-se, pouco a pouco, a principal fonte de receita para o município, atraindo romarias de homens afoitos e mulheres invejosas - todos querendo uma foto à frente do descomunal busto de pedra e um vislumbre, ainda que rápido, dos dois homenageados originais.

A partir de projeto de lei apresentado pelo presidente da Câmara Municipal, instituiu-se como ponto facultativo o "Dia da Lavagem do Busto de Andreza", ocasião em que, após remoção de fuligem, são pulverizados cerca de 15.000 litros de água de cheiro sobre o monumento.

Tanta notoriedade fez dela a figura mais popular das redondezas. Eleita em sucessivos pleitos ao legislativo municipal, são de autoria de Andreza algumas polêmicas propostas. Uma delas versava sobre a fabricação e distribuição de preservativos de quatro diferentes bitolas nos postos de saúde da cidade: pequeno, médio, grande e extra grande. O que parecia ser um benefício ergonômico tornou-se motivo de constrangimento na comunidade. Nenhum homem que prezasse pelo seu bom nome e virilidade ousava pedir à mocinha do balcão preservativos pequenos e médios. Alguns apelavam a um manjado expediente: solicitavam dois extra grandes, que diziam ser para uso próprio, e mais uma meia dúzia dos menorzinhos - argumentando que estes seriam utilizados para iniciação sexual de um sobrinho pré-adolescente, na zona local.

Outro projeto controverso de sua autoria, que acabou por provocar escândalo, estabelecia um curso prático de prevenção ao câncer de mama. A aula foi ministrada pela própria Andreza, que dessa vez sem decote e de peito aberto mostrava às mulheres participantes como realizar o autoexame em busca de nódulos suspeitos.

A louvável iniciativa ficaria por isso mesmo, não fosse uma estranha estatística divulgada por Dona Benedita Rosa Denófrio, então presidente da Associação Comercial, dando conta de que, na véspera do curso, as vendas de perucas, vestidos, cílios postiços e sutiãs com enchimento bateram todos os recordes.



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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