sábado, 31 de janeiro de 2015
Desafinando
o coro dos saudosos, eu digo que nem tudo foi de se guardar em álbum
de retratos. Nem todos aqueles anos foram de coisas e gentes que
justificassem lugar nos quadrantes nobres da cachola, lá onde
a nostalgia fermenta, entorpece o senso prático e debilita a
saúde do indivíduo.
A
fila da vida anda. Aquela história de que “bom mesmo era no
meu tempo” é tudo chorumela de maricas, nhém-nhém-nhém
de quem não sabe enxergar o quanto ser astronauta é
melhor que ser troglodita.
Saudosismo
faz sentido se há do que sentir saudade. Mil vezes os racing
games dos PS4 que os insalubres carrinhos de tábuas de
caixote, rolemãs e pregos cheios de tétano. Esse
negócio todo é muito romântico e bucólico
até você imaginar o seu filho cercado desses perigos.
Sem o selo Abrinq. Sem o carimbo do Inmetro. Sem o aval da vigilância
sanitária e uma viatura do SAMU a postos em caso de
emergência.
Me
chegam pelo olfato umas coisas que não são de agora,
nem de Deus. Milho verde, mato depois da chuva, flor de laranjeira.
Se tudo isso fosse de Deus não vinha do mesmo lugar que a
esquistossomose, a Doença de Chagas, o amarelão, a
maleita, a dengue e suas variantes. Você pode achar divertido
empinar papagaio até que o seu menino enrosque a rabiola da
pandorga num fio de alta tensão. Ou que chamem você às
pressas para reconhecer a cabeça dele no IML - decapitada por
uma linha de cerol sem dono conhecido.
Melhor,
bem melhor é tocar a vidinha seguro e trancafiado no
condomínio. Aproveitar as tardes de sábado besuntando
álcool gel nas mãos, protegido por benditos e bem
erguidos muros com cerca elétrica. Da cidade pequena, lá
de onde eu vim (não espalhe), quero exorcizar suas esquinas
tacanhas, suas conversas de comadre, aquele sol que castiga o seu
coreto inútil, o sol que descora a cal dos postes, que mata
cozidas as lagartas nos quintais e não dá trégua
aos meninos que voltam famintos da escola às suas casas com
suspeitas de desidratação.
Aí
você me vem com “saudadinha” do velho que vendia raspadinha
na praça, que bom que era, etc. Mas aí eu lembro você
da água de torneira que ele devia usar pra fazer a barra de
gelo e dos coliformes fecais que muito provavelmente infestavam
aquele xarope de groselha - de procedência ignorada e lotes
não-rastreados. Meu Pai Amado, que perigo. Que perigo.
©
Direitos Reservados
sexta-feira, 23 de janeiro de 2015
WAY OF LIFE
Frankfort,
McKinsey Street, 609. Um “Donaldson” pintado a mão em
letra serifada na caixa de correio. Dentro, uma proposta de
assinatura de Seleções e outra do Saturday Evening
Post. É claro que a casa é em estilo clapboard,
como todas as outras a léguas ao redor. Dois pavimentos,
sótão, nada de muro na frente. Mais tradicionalmente
norte-americano que isso, só se for isso no Dia de Ação
de Graças. E é.
A paz reinante parece tão inabalável quanto a liquidez das companhias de seguros e das ações da Pan Air. Talvez o mais fiel retrato dessa mansidão seja o pequeno Carl, que tem sua atenção dividida entre os bonecos do Forte Apache e um gigantesco pote de sorvete sabor baunilha. A televisão está ligada e uma garota-propaganda apresenta uma nova marca de cereal de milho, seguida por uma chamada para o Ed Sullivan Show.
Father na sala de estar de dois ambientes e seu costumeiro bourbon whiskey das manhãs de sábado. Serve de porta-copos uma edição capa-dura de “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, do velho e bom Dale Carnegie. Ninguém no Estado de Kentucky poderia adivinhar onde estaria seu pensamento agora. Nas metas da empresa para 1958, no sonhado rancho em Sunset Village, nas pernas bem torneadas de Jeannie Johnson. A mulher que jamais teria, melhor amiga da esposa.An affair to remember, canta Nathaniel Cole na eletrola pé-de-palito RCA Victor, relembrando o caso que não houve.
Há uma cerca a pintar, galhos a podar e grama a cortar no jardim da frente. Ben, o filho mais velho, está aí para isso mesmo. Lucille Huppert, da Associação de Moradores, se aproxima com seu basset na coleira. Troca com Ben um olhar mais cúmplice do que o que seria moralmente tolerado entre uma respeitável balzaqueana de 38 e um rapazinho de 17.
Na casa em frente, um certo Jim Bob observa com o binóculo Peggy Sue ao espelho, ajeitando o sutiã. Dessa vez aquele trouxa do Edward avança o sinal, ah se avança. Ou não me chamo Peggy Sue!, pensa a líder de torcida, fazendo caras e bocas.
A América laboriosa e protestante recende a estrógeno e testosterona nos escritórios e high schools, nas ruas e parques de diversões. A mesma América que não hesita em ir à guerra pelas tradições que finge cultuar.
Mamãe arregimenta o marido e a prole para o almoço festivo, badalando o sininho de bronze dos tempos da matriarca Katherine. É servido o peru de Thanksgiving, guarnecido por rodelas de laranja.
- A asa não. A asa é do papai, Carl!
Sim, dê-me asas. É só o que quero nesse momento, pensa o pai enquanto diz:
- Querida, sempre tão gentil. Tudo bem, Carl, pode ficar com a asa. Acho que hoje vou preferir a sobrecoxa.
- Mommy, estão batendo na porta.
- Quem será? Agora que íamos começar a comer...
Lá fora Mary Reynolds aperta mais uma vez a campainha, passa um lenço umedecido nos cabelinhos da nuca, ajeita a blusa para dentro da saia e saca da bolsa a edição de Natal do catálogo de cosméticos. Meio-dia e meia, o sol nunca esteve tão forte nessa época do ano, mas ninguém é próspero o bastante para deixar de prosperar, ainda que seja sábado na maior economia do mundo.
É Avon que chama. É mamãe que atende com um sorriso nos lábios e um convite para entrar.
A paz reinante parece tão inabalável quanto a liquidez das companhias de seguros e das ações da Pan Air. Talvez o mais fiel retrato dessa mansidão seja o pequeno Carl, que tem sua atenção dividida entre os bonecos do Forte Apache e um gigantesco pote de sorvete sabor baunilha. A televisão está ligada e uma garota-propaganda apresenta uma nova marca de cereal de milho, seguida por uma chamada para o Ed Sullivan Show.
Father na sala de estar de dois ambientes e seu costumeiro bourbon whiskey das manhãs de sábado. Serve de porta-copos uma edição capa-dura de “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, do velho e bom Dale Carnegie. Ninguém no Estado de Kentucky poderia adivinhar onde estaria seu pensamento agora. Nas metas da empresa para 1958, no sonhado rancho em Sunset Village, nas pernas bem torneadas de Jeannie Johnson. A mulher que jamais teria, melhor amiga da esposa.An affair to remember, canta Nathaniel Cole na eletrola pé-de-palito RCA Victor, relembrando o caso que não houve.
Há uma cerca a pintar, galhos a podar e grama a cortar no jardim da frente. Ben, o filho mais velho, está aí para isso mesmo. Lucille Huppert, da Associação de Moradores, se aproxima com seu basset na coleira. Troca com Ben um olhar mais cúmplice do que o que seria moralmente tolerado entre uma respeitável balzaqueana de 38 e um rapazinho de 17.
Na casa em frente, um certo Jim Bob observa com o binóculo Peggy Sue ao espelho, ajeitando o sutiã. Dessa vez aquele trouxa do Edward avança o sinal, ah se avança. Ou não me chamo Peggy Sue!, pensa a líder de torcida, fazendo caras e bocas.
A América laboriosa e protestante recende a estrógeno e testosterona nos escritórios e high schools, nas ruas e parques de diversões. A mesma América que não hesita em ir à guerra pelas tradições que finge cultuar.
Mamãe arregimenta o marido e a prole para o almoço festivo, badalando o sininho de bronze dos tempos da matriarca Katherine. É servido o peru de Thanksgiving, guarnecido por rodelas de laranja.
- A asa não. A asa é do papai, Carl!
Sim, dê-me asas. É só o que quero nesse momento, pensa o pai enquanto diz:
- Querida, sempre tão gentil. Tudo bem, Carl, pode ficar com a asa. Acho que hoje vou preferir a sobrecoxa.
- Mommy, estão batendo na porta.
- Quem será? Agora que íamos começar a comer...
Lá fora Mary Reynolds aperta mais uma vez a campainha, passa um lenço umedecido nos cabelinhos da nuca, ajeita a blusa para dentro da saia e saca da bolsa a edição de Natal do catálogo de cosméticos. Meio-dia e meia, o sol nunca esteve tão forte nessa época do ano, mas ninguém é próspero o bastante para deixar de prosperar, ainda que seja sábado na maior economia do mundo.
É Avon que chama. É mamãe que atende com um sorriso nos lábios e um convite para entrar.
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Direitos
Reservados
sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
ILUSTRES DE PÈRE LACHAISE
Maior
cemitério de Paris e um dos mais famosos do mundo, o Père
Lachaise notabiliza-se pelo grande número de celebridades ali
sepultadas - entre artistas, cientistas, políticos e
filósofos. Algumas delas não tão enaltecidas
pela mídia, porém merecidamente lembradas pelos seus
grandes feitos.
Huguenote
François Legrand, injustiçado expoente da chamada baixa
gastronomia francesa, criador da melancia flambada e de outras
receitas de dificílima execução e forte apelo
popular. Todo 17 de maio, dezenas de crepes de nutella são
depositados sobre sua lápide para marcar o aniversário
de nascimento dessa figura ímpar em seu métier, cujo
desaparecimento precoce até hoje provoca sentido pranto e
colapsos nervosos entre seus companheiros de sauna.
Carcamonde
Etoile des Trèsjolie, pioneira nos serviços de varrição
noturna no décimo quinto arrondissement e vizinhanças,
regiões parisienses onde, em sua época, concentravam-se
bancas de mariscos, patos selvagens e escargots de linhagens
variadas. Seu túmulo é um dos pontos de maior afluxo de
turistas no cemitério. Guias das agências de viagem
precisam agendar visitas em grupo com meses de antecedência.
Nos últimos anos, o alto risco de pisoteamento nas
proximidades do jazigo forçou a polícia francesa a
criar um destacamento de homens especialmente dedicado à
vigilância do local.
Afonse
Frèderic Eiffel, sobrinho-neto do autor da torre. A ele é
atribuída uma série de 23 importantes aperfeiçoamentos
no fole do acordeon típico da chanson francesa. Seus
escritos, publicados em dois volumes - hoje encontráveis
exclusivamente em sebos especializados - constituem uma verdadeira
bíblia para todos aqueles que sonham em fazer dinheiro nas
estações de metrô da capital.
Brigitte
Saint-Preux de Lisle, vendedora ambulante que ganhava a vida nas
imediações da Pont dês Arts. Vendia os chamados
“cadeados do amor” e em seguida, com uma chave-mestra, abria-os e
repunha-os em seu estoque.
Le
petit bâtard (O pequeno bastardo): ninguém contesta que
Toulouse-Lautrec, em seus anos de maior desregramento e libidinagem,
deixou uma vasta prole nos puteiros de Paris. Um de seus filhos,
jamais reconhecido pelo pai, ganhou notoriedade em todo o bairro de
Montmartre em razão do singular dote de promover transfusões
sanguíneas telepaticamente, ou seja, transferindo o sangue de
uma pessoa para outra sem o uso de seringas e agulhas. Lautrequinho é
também nome de uma alameda na cidade de Lion e batiza um
chafariz nas proximidades do Bois de Boulogne.
Direitos
Reservados
Mon
petit hommage aos verdadeiramente célebres cartunistas do
Charlie Hebdo - alguns deles sepultados no Cemitério de Père
Lachaise.
sábado, 10 de janeiro de 2015
CALA-TE BOCA
-
Um doce pra quem me disser quando vamos poder conversar
tranquilamente, como nos velhos tempos.
-
Ah, que tolinho... você e eu temos telhado de vidro. Pra tudo
que a gente disser, vai ter alguém na escuta. O pior é
que não dá pra confiar 100% em varredura. Muito menos
em quem varre.
-
Pelo Higino eu ponho a mão no fogo, está comigo desde
que comecei na vida pública. Era varredor na minha cidade e
não deixava passar um pelo de sobrancelha sem varrer.
-
Mas ele é um varredor de rua, não um perito em
espionagem.
-
O princípio é o mesmo. O homem é um cão
farejador. Está lotado no gabinete como assessor especial e
arrumei emprego pra família toda dele no almoxarifado do
Itamaraty. Eu desconfio da minha mãe mas não desconfio
do Higino.
-
Não sei, pra mim todo mundo é suspeito até que
se prove o contrário.
-
Como fazemos, então? Sinal de fumaça, pombo-correio,
telepatia...
-
Não vejo saída. Telefone é grampeado, email
deixa rastro, agora inventaram essa história de quebra de
sigilo eletrônico...
-
E carta?
- Nem pensar, ainda mais agora que os Correios podem entrar na mira da investigação. Lembra daquela história de distribuir santinho junto com a correspondência?
- Nem pensar, ainda mais agora que os Correios podem entrar na mira da investigação. Lembra daquela história de distribuir santinho junto com a correspondência?
-
A gente faz uma triangulação, uma quadrangulação
ou até uma octangulação pra dificultar que
alguém descubra. Eu mando a carta pra um laranja, que manda
pra outro laranja, depois outro e outro até chegar a você.
Pra responder você faz o mesmo, mas com laranjas diferentes.
Não vão pegar nunca.
-
Isso demora muito. Alguns assuntos temos que resolver rápido.
-
Bom, isso é.
- Mas espera aí... os Correios não são Correios e Telégrafos? Então vamos botar pra funcionar os telégrafos, que quase ninguém usa mais. Fazemos um curso de código morse e boa, conversamos à vontade. Nem por decreto vão pegar alguma coisa, porque jamais vão suspeitar que a gente use algo tão obsoleto.
- Tem também rádio-amador, tipo PX e PY... mas aí o sinal é por radiofrequência, podem interceptar.
- Olha, uma coisa é certa: em ambiente fechado você pode esquecer que nós nunca mais vamos poder falar. Até em primeira comunhão e missa de sétimo dia vão dar um jeito de instalar um microfone em nossas cuecas. Ou melhor, na minha cueca e no seu sutiã. Talvez no meu paletó e no seu tailleur. Quem sabe na sua calcinha e na minha abotoadura, sei lá. É muita gente cuidando do cerimonial, e tem sempre alguém levando uns trocos pra meter uma microcâmera onde não deve.
- É, seria perigoso mesmo. Um “amém” seu, um “Deus seja louvado” meu e pronto: já iriam falar que é código, que Nossa Senhora, Ofertório e Sacramento são codinomes e batizariam a coisa toda de “Operação Castigo Eterno”.
- E criptografia, aquele negócio que embaralha tudo?
- Não. Já inventaram um treco que desembaralha. Esquece.
- Bom, resumo da ópera: tamo na roça.
- Na roça e feito dois marrecos mudos.
- Mas espera aí... os Correios não são Correios e Telégrafos? Então vamos botar pra funcionar os telégrafos, que quase ninguém usa mais. Fazemos um curso de código morse e boa, conversamos à vontade. Nem por decreto vão pegar alguma coisa, porque jamais vão suspeitar que a gente use algo tão obsoleto.
- Tem também rádio-amador, tipo PX e PY... mas aí o sinal é por radiofrequência, podem interceptar.
- Olha, uma coisa é certa: em ambiente fechado você pode esquecer que nós nunca mais vamos poder falar. Até em primeira comunhão e missa de sétimo dia vão dar um jeito de instalar um microfone em nossas cuecas. Ou melhor, na minha cueca e no seu sutiã. Talvez no meu paletó e no seu tailleur. Quem sabe na sua calcinha e na minha abotoadura, sei lá. É muita gente cuidando do cerimonial, e tem sempre alguém levando uns trocos pra meter uma microcâmera onde não deve.
- É, seria perigoso mesmo. Um “amém” seu, um “Deus seja louvado” meu e pronto: já iriam falar que é código, que Nossa Senhora, Ofertório e Sacramento são codinomes e batizariam a coisa toda de “Operação Castigo Eterno”.
- E criptografia, aquele negócio que embaralha tudo?
- Não. Já inventaram um treco que desembaralha. Esquece.
- Bom, resumo da ópera: tamo na roça.
- Na roça e feito dois marrecos mudos.
-
Que paranoia. Já pensou se captam essa nossa conversa, falando
do nosso medo do flagra? Não precisa de mais nada. Seria a
confissão de delito definitiva, sem chance de defesa.
-
Já sei: arrendamos uma das fazendas do Sarney e vamos uma vez
por semana pra lá. Sem assessor, sem segurança, sem
nada. Aí nós dois tiramos a roupa e vamos pro meio do
pasto. Pra maior segurança, cochichamos um no ouvido do outro.
Acho que aí funciona.
-
Aborta o plano. Esqueceu dos paparazzi?
©
Direitos Reservados
sábado, 3 de janeiro de 2015
PRONUNCIAMENTO DUÑESCO DE ANO NOVO
“Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Melhor o meio termo, ou seja, a lama. A do Dalai ou a de Araxá, que tem poderes comprovadamente rejuvenescedores para a pele e reabilita em oito meses a função do apêndice”. Ante olhares pasmos de alguns poucos criadores de bichos-da-seda e de quatorze mochileiros que por ali colhiam cogumelos, assim iniciou sua preleção o Venerável Duña, em aparição relâmpago ocorrida ontem, por volta das nove da noite, no cume de uma montanha mantiqueira.
Teólogos e teóricos das mais díspares correntes esotéricas concluem que o inusitado pronunciamento revela um Duña menos extremado em suas exortações, um líder messiânico mais disposto a valorizar o equilíbrio e a ponderação em detrimento do fundamentalismo inflexível de algumas seitas – que caracterizaram inclusive a sua própria Ordem em outros tempos.
“A segunda década do século 21 que ora vivenciamos será certamente marcada pela concórdia entre os homens. E isso não é sandice profética ou retórica de ocasião. Tomem como exemplo a questão percentual do dízimo. Um fiel que, por liberalidade, queira destinar mensalmente à nossa seita doze por cento ao invés dos dez regulamentares, não merece ser discriminado pelos demais seguidores. Até porque essa participação mais generosa ao erário sagrado não implica necessariamente na aquisição de um quinhão maior no latifúndio celeste. Há que se ter tolerância e compreensão aos que voluntariamente optam por oferecer mais”, disse o sacerdote supremo, enquanto de suas têmporas pululavam raios ionizantes de cor violeta.
Ajoelhando-se, o Iluminado prosseguiu:
“Fazei com ambas as mãos a caridade que deveis praticar. Ajudai os coxos a atravessarem a rua utilizando ambas, degusteis o desjejum, o almoço e a janta usando ambas, digitai em vossos laptops empregando indistintamente ambas e, para que a discórdia não se instale entre ambas, que ambas depositem oferendas igualmente generosas sempre que se proceda à passagem da sacolinha nos cultos sagrados.
Caso não seja do tipo meia-cura, separai o queijo da goiabada como quem separa o joio do trigo, pelo fato de ser impossível o convívio pacífico entre a velha e boa goiabada de tacho à moda mineira e queijos dos tipos parmesão, gruyère, prato, fresco, provolone, gorgonzola e todos os demais produzidos com leite de vaca, ovelha ou cabra.
Lembrai que os doze mil Oráculos, que peregrinam em trabalho missionário pelo planeta, são a representação carnal do Excelso Ser Duñesco, sendo por ele investidos de plena autoridade para dirimir desavenças entre torcidas e arbitrar soberanamente sobre demais litígios – sejam eles de natureza desportiva, culinária, sexual, filosófica ou fitoterápica. Contai com seus sapientes conselhos ao longo de todo o ano de 2015.
Orai e vigiai para que a dama de incisivos proeminentes, que continuará vos governando, mantenha os subsídios federais à produção e importação de velas, incensos, indumentárias e demais paramentos necessários aos nossos rituais litúrgicos.
E a vós, que aqui presenciais esta minha aparição, sugiro que deixeis de criar bichos-da-seda e de colher cogumelos, pois tais afazeres não vos levarão a parte alguma. Muito menos à salvação eterna”.
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