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quinta-feira, 28 de maio de 2015

MANÉ, SAUDOSO MANÉ




Lembro como se fosse hoje que passava um pouco de cinco e quinze da matina quando ele me ligou dizendo que tinha despertado com o lampejo, transformado em ideia tentadora, que logo virou desejo irrefreável de dar cabo de uma vez da sua vidinha sem atrativo. Queria ir pra junto do Flávio Cavalcanti, do Santos Dumont, do Jack Estripador, do Mussum e de todos os outros grandes que já tinham ido. Não via mais sentido em continuar ocupando seu invólucro castigado e tão sem atrativo, ainda mais vendo tanta gente melhor que ele abandonando precocemente o posto nesse ingrato campo de provas.

Dizia o Mané:

“Trabalho numa máquina de moer carne, minha mulher há muito deixou de exercer qualquer influência na minha libido e eu acho um saco fazer a barba todo dia. Isso sem falar das pombas que só aliviam sua diarreia no capô do meu carro, do jeito azedo do vizinho e da inesperada cobrança complementar do IPTU, referente ao puxadinho que construí sem autorização da prefeitura e que acabou virando depósito para as tralhas de pesca do Lourencinho, primo desgraçado que ronca, fuça e é perito em aparecer de supetão pra filar a janta.

Já falei pra mim mesmo: olha pra trás, meninão. Conta até dez, chupa um halls daquele trinca guela. Nada como um halls extra forte bem chupado, se possível acompanhado de água geladíssima por cima, pra nos demover de decisões irrefletidas. Isso já dizia Danny F.Chesterfield, aliás com propriedade rara entre seus contemporâneos. O bom e velho Danny, idólatra da TV dos tempos em que domingo de manhã passava o programa do pastor Rex Humbard, “Imagens do Japão” e o “Caravela da Saudade”, que com seus fados levava aos prantos 9 em cada 10 donos de padaria no Canindé.

Estou aqui com o epitáfio prontinho. Está pronto em linhas gerais, ainda falta um acerto ou outro de ortografia e de colocação de vírgula. As seis alças do caixão já têm dono, e evidentemente você é um dos escalados. Pega numa perto do pé que o esforço é mais leve, a região da barriga deixo para uns parentes que tenho em baixíssima estima. Que eles sirvam pelo menos pra isso, já que nunca me emprestaram um tostão quando a lavanderia estava mal das pernas. Está tudo esquematizado, fiz um croqui em papel vegetal com as alças, puxando umas setinhas com o nome de cada um. Deixei na gaveta do criado-mudo, junto com umas outras orientações e providências que devem ser tomadas”.

Ameacei desligar o telefone, nauseado com tanta morbidez, mas ele dizia que ficaria na minha consciência se morresse de mal comigo. E continuava:

“Agora o que tá pegando é o jeito de liquidar a fatura. Estou aqui na cama caraminholando qual a modalidade mais prática e menos ortodoxa. Nada de ligar o gás, enforcamento na jabuticabeira, deitar na linha do trem, Ginsu na jugular ou lexotan com soda cáustica. Pensei em injeção de ar na veia, o modus operandi predileto dos nazistas no holocausto, o que me diz?”

Foi quando caiu a ligação, depois aconteceu o que todo mundo já sabe. A famosa reviravolta que o fez viver lúcido e sacudido até os 94, à frente do grupo de empresas que até hoje leva o seu nome.

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sábado, 23 de maio de 2015

MANUAL DE USO DO MANUAL




"Parabéns! Você acaba de adquirir o que há de mais avançado...". Se o seu Manual não começar assim, devolva o produto. Não o produto, o Manual dele, pois não é um Manual legítimo, como manda o figurino. Sua devolução ao redator responsável está prevista no Código de Defesa do Consumidor. Bem, se não está, deveria. 

Uma vez lido (pelo menos em suas principais partes) e estando o produto funcionando normalmente, use o Manual como calço de pé de mesa bamba ou outra utilidade do gênero. Isso porque já acabou a etapa em que você tinha que tê-lo à mão, ou seja, na instalação da geringonça. Se precisar de novo dele para alguma eventualidade, é mais fácil consultar na internet - que baixa no seu colo em PDF todos os manuais já redigidos pelo homem.

Há indústrias que alegam a obsolescência do Manual, e que a sua eliminação pura e simples como item constante na embalagem do produto poderia reduzir o preço final em até 3%. O argumento é que quase a totalidade dos consumidores lê e aplica apenas as instruções do guia de instalação rápida, adiando a leitura do Manual completo para o fim de semana seguinte. Acontece que o fim de semana chega e, com ele, coisas bem mais interessantes para ler do que o nosso injustiçado Manual.

É bom lembrar que todo e qualquer Manual sai de fábrica com garantia de um ano contra defeitos de compreensão. Se mesmo após sucessivas tentativas de leitura o problema persistir, ainda assim você poderá seguir alguns procedimentos antes de levar o seu Manual à assistência técnica:

. Verifique o tamanho da letra do texto e certifique-se de que ela é compatível com sua acuidade visual. Consulte seu oftalmologista para informações mais detalhadas.

. O problema pode estar na luminária - demasiadamente afastada ou com lâmpada de baixa potência. Na dúvida, leve-a ao seu eletricista de confiança e siga suas instruções antes de empreender nova tentativa de leitura. 

. Por ter esse nome - Manual - fica implícito que o mesmo não é automático. Se assim fosse, suas instruções entrariam no cérebro sem o esforço consciente da parte do consumidor. Assim, conforme-se com as limitações intrínsecas do mesmo e sua natureza enfadonha.


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sábado, 16 de maio de 2015

MEU CARRASCO, MEU HERDEIRO




Ser o moleque de recados do maior agiota da cidade: o Criador não tinha posto ele no mundo para suportar essa vida por muito tempo. O boy de Villa Antiga montava em mula para as cobranças, e difícil era a vez que não voltava com o olho roxo ou o lábio cortado. Já andava cheio o embornal de desgostos, estava até a tampa de desaforo engolido. Não mais, agora é minha vez - decidiu. Entregou a mula e as promissórias resgatadas do dia ao tirano Tonzezão, que emprestava sem muita exigência de garantia, mas sabia buscar a mãe de quem não tinha mais nada. Chega de ser leva e traz, se entrasse em séria luta corporal com o destino poderia juntar para emprestar aos outros e ter o seu próprio moleque, correndo rua e dando a cara pra bater.

Só que não queria virar um Tonzezão mais novo, sem barriga, sem artrose e sem cabelo branco - tiraninho Tonzezinho metido a besta, coletor de suor alheio. Já conhecia bem a manha de ganhar dinheiro assim, mas não. Produzir e vender era mais decente que emprestar cinco e tomar vinte de volta. E sucedeu que foram anos sem lembrar o que era dormir e jogar conversa fora de domingo, porque todo dia era feito para gramar até que o negócio que abriu fizesse o favor de dar lucro. E como deu. A prosperidade veio e começou a ganhar barriga, artrose e cabelo branco como o Tonzezão dos velhos tempos, só que em paz à noite com o travesseiro. Rico pelo merecimento de trabalhar direito, não de tirar de quem quase não tem. 

Sua filha Cândida, a linda. Por 19 anos conseguiu guardar bem guardada a estonteante fêmea em casa antes de entregá-la a Orêncio, num rega-bofes que a Villa Antiga, agora promovida a Vila Nova, não ia esquecer tão cedo. Bolo cortado, foto tirada, buquê jogado e gravata de noivo retalhada, foram pra lua de mel que seria linda como a noiva, se o avião não tivesse caído. 

Acabado o luto, canalizou o bem querer para o Laércio, sobrinho um pouco distante na geografia e na árvore genealógica, mas o único. O velho, agora megaempresário e prefeito, morreu fazendo a sesta após pesado almoço em companhia do sobrinho, na casa grande de uma de suas fazendas. E Laércio se viu dono de tudo, sem esperar e nem saber o que fazer com tanto patrimônio. 

Deslumbrado e perdido ao mesmo tempo, fez rapidamente da namorada Sofia sua sócia nos negócios. Ambiciosa e cheia de má intenção, fingia-se de boazinha e só precisou de dois dias para fazer o serviço sujo. Na sexta, casou-se com Laércio. No sábado, envenenou o coitado e, mancomunada com um legista sem vergonha, arrumou atestado de óbito onde constava a salmonela da maionese de casamento como causa mortis. 

A nova herdeira de tudo, que do velho patriarca não tinha nem o sangue e nem o caráter, gastou três anos comprando o que via pela frente. Até que uma bala perdida veio se alojar na sua cabeça, enquanto veraneava em Cartagena. O patrimônio caberia, por direito, aos três irmãos da golpista. Ainda no meio do inventário, um grande banco caiu em cima do montante, por conta de uma dívida impagável em nome do trio. E lá se foi a herança para o banqueiro, neto do bom e velho Tonzezão. 

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sábado, 9 de maio de 2015






Este texto é do Marcelo e não é. Escrevo em terceira pessoa porque aqui não é ele escrevendo e sim eu, seu analista, descrevendo. Ou melhor, anotando o que ele fala em transe hipnótico. Ideia dele, bem entendido. Sabia do risco que estava correndo, e mesmo assim quis a coisa em estado bruto.

Cinco... quatro... três... dois... um... Definitivamente, essa contagenzinha de relaxamento profundo em nada me inspira. Doutor, essa coisa desgastada não vai me dar um texto novo no sábado. Não sei por onde começar mas sei que não será por esse labirinto de hera, cheio de portas que não levam a lugar nenhum, cotovias flamejantes e areias movediças. 

Ao que parece, hoje ele está sem assunto. 

Problema seu amarrar tudo isso, Dr. Matos. Eu não tenho obrigação, aqui, de falar coisa com coisa. Agora, você sim, tem em costurar um sentido nessas associações que faço. Não vou dizer por onde vago agora. Você não acreditaria. Sujeito que escreve e faz análise dá nisso. Sujeito que escreve tem que ficar só na análise sintática, que é muito mais negócio.  

Ele está racionalizando o processo, desse jeito fica impossível. Usa a análise para falar da análise.

Você é um excremento, doutor Matos. Um titica com diploma pendurado na parede, legítima personificação da fase anal. Seu trabalho me arranca dinheiro e não traz resultado, estou aqui há anos e fico andando em círculos, dependente de você e prisioneiro dessa sala. Dessa cela. Seu pai castrador bem que podia ter te capado de uma vez para que você não estivesse aqui, se achando capaz de ajudar os outros. 

O que me deixa estarrecido é que ele está sendo sincero, hipnose não é bem um alteração no estado de consciência, é consciência no grau mais alto. É atenção focada, ele está sabendo muito bem o que diz. 

Esse seu nome, Matos, cheira a sexo. Mato onde se faz sexo. Os pelos do púbis são matos. Mata-se a vontade. Mata-se o desejo. Então sexo não é fazer amor, mas celebrar a morte. É amor à morte. Credo.

Isso é impublicável. Depõe contra mim, pessoal e profissionalmente. Desconsiderem.

Aproveitando o segundo domingo do mês, mamãe vai bem, Doutor?

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sábado, 2 de maio de 2015

GRAMA AUTOCORTANTE E MATO AUTOELIMINANTE



"A imaginação é mais importante que o conhecimento", já dizia Einstein com a autoridade de quem sabia tudo desse mundo e de todos os outros, por mais que continue se expandindo esse Universo velho sem porteira.

Dois dos maiores estouros mercadológicos de que se tem notícia ilustram bem essa citação. Eles nasceram juntos em laboratório e não podem ser vendidos separadamente, até porque um complementa a ação do outro. Onde exista jardim, público ou privado, lá estão os gloriosos e insubstituíveis inventos de Alejandro Cortez de Calabares, que deram a ele fortuna e um lugar definitivo entre os grandes gênios da Catalunha.

Foi numa nebulosa manhã de julho que lhe veio à mente a redentora visão, que iria livrá-lo da dívida na mercearia e das seis parcelas em atraso no plano funerário. Profundamente sensibilizado por um drama pessoal vivido por Alícia Jimena, a dedicada governanta de sua tia-avó de Sevilha, Alejandro ergueu a ela um imaginário brinde com uma dose generosa de absinto, virou de vez e desabou espetacularmente sobre o surrado pufe da sala. A mesma sala de paredes sujas da qual, seis meses mais tarde, teria apenas uma vaga lembrança, envolvido pelo luxo de seu castelo em Palma de Maiorca.


O MATO AUTOELIMINANTE
Não se sabe se foi o conforto reparador daquele pufe, comprado em beira de estrada nas férias de 1991, ou o efeito alucinante do absinto, o fato é que naquele dia sua mente penetrou em reinos desconhecidos e inspiradores. A primeira das visões lhe surgiu aos onze minutos da fase de sono REM, já com a baba escorrendo pelo canto direito da boca. A partir de uma alteração na genética da planta, ao começar a crescer o mato enforca-se a si mesmo com os ramos que vão brotando do seu caule, numa espécie de suicídio vegetal involuntário.


A GRAMA AUTOCORTANTE
Se com o invento anterior eliminamos a fatigante tarefa de arrancar um a um os matinhos dos gramados, com sua segunda visão Alejandro nos livra para sempre daquele ícone verde da classe média americana, tão arraigado ao cotidiano ianque quanto o molho barbecue e os tacos de golfe: o cortador de grama. Ao atingir determinada altura, configurada no setup do aparelho, um sensor dispara um feixe de laser que apara eletronicamente a quantidade de grama que ultrapassar a dimensão desejada, mantendo-a sem qualquer esforço no tamanho ideal. 

Esperto, Alejandro atraiu a atenção da mídia mundial ao testar simultaneamente os dois inventos nos Jardins de Luxemburgo, no Hyde Park e nos gramados da Casa Branca. Em questão de dias, nosso herói passou das filas do seguro-desemprego à lista dos bilionários da Forbes, com o saldo da conta corrente crescendo mais que mato no meio da grama. 


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