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sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

BOBO E SUA CORTE



Já reparou como os termos “Bobo” e “Tolo” têm sinônimos? Dentre tantos, “Doidivanas” sempre me chamou a atenção. Acho que foi lendo algum romance de cavalaria ou livro de Julio Diniz que vi a palavra pela primeira vez. Recorri a um pequeno e nada confiável dicionário e encontrei lá: “Doidivanas: o mesmo que Estouvado”. Fui em “Estouvado” e li: o mesmo que Doidivanas. Ou seja, o pai dos burros me fez de bobo.

Ser bobo vai além de ser otário. Tem também o sentido de ignorante, que contempla como sinônimos uma extensa família de quadrúpedes: besta, asno, jerico, jumento, jegue e simpatizantes. Sem falar da anta e da toupeira.

Fora do reino animal, um dos meus favoritos é “Bocó”, quase um arcaísmo atualmente. Melhor ainda é “Bocó de Mola”, que sugere um upgrade na acepção original (ou um downgrade, no caso).

Igualmente em desuso está o “Monte”. Largamente empregado na zona rural de São João da Boa Vista e adjacências nos anos 70, o vocábulo com toda certeza é oriundo do sul de Minas. Não sei se continua vigindo. Monte é, basicamente, o mala de hoje. Tem o significado de empecilho, estorvo que fica no meio, atrapalhando tudo e empatando a f...

Vamos ao “Tonto”. Ele é parecido com o bobo, mas não é a mesma coisa. O bobo é menos bobo que o tonto. Historicamente o bobo tem ofício definido. Como todos sabem, era ele quem divertia os reis nas cortes medievais. O tonto, por sua vez, é um Mane-Quarqué (que me perdoem meus leitores Manoéis ou Manuéis), um “Girolas” inofensivo. Por falar em Mané, há que se mencionar aqui os derivativos “Mané-Coco” e “Mané-Jacá”, além do conhecidíssimo “Mané-Patola”, a quem algumas populações ribeirinhas denominam simplesmente de “Patola”.

Temos ainda o “Boboca”, que imagino um semi-bobo, aspirante a bobo ou algo que o valha. É mais do que um bobinho, mas é menos que um bobo 100% genuíno. Na mesma classe estão os “Parvos”, a bradarem suas parvoíces em qualquer tempo e lugar.

A letra “P” é rica em sinônimos de lesos: temos, entre outros verbetes, “Palerma”, “Paspalho” e “Pateta” – todos com sentido semelhante e QI idem.

Na letra “T”, além do tolo e da toupeira já citados, encontramos o “Tapado”. Por analogia, podemos caracterizá-lo como um surdo-mudo neurológico. Nada é capaz de permear sua couraça obtusa. Pra cantar a “Florentina” do Tiririca ele precisa olhar a letra.

Capítulo à parte merecem o “Doido de Pedra” e o “Doido Varrido”, mas não serei eu o maluco a atribuir-lhes o sentido. Só imagino um napoleão-de-hospício esculpido em mármore e um serzinho com camisa de força se debatendo entre ramos de piaçava.

O “Abestado” é tão inclassificável que nem é aceito pelo Aurélio. O insigne dicionarista o cataloga como “Abestalhado” – que particularmente considero um tanto quanto articulado para o caso. Abestado é infinitamente mais besta que abestalhado, concorda?

Muitos termos possuem a mesma raiz etimológica, mas gradientes peculiares de significado. Compare “burro” e “burraldo”. O leitor logo perceberá que o burraldo puxa a carroça com mais força. O burraldo é o burro xucro, incorrigível, que deixa o rastro das ferraduras por onde quer que passe. O burro é menos pretensioso na escala búrrica - de vez em quando é capaz de falar coisa com coisa. Muito de vez em quando, mas é.

“Babaca” e “Panaca”. Mesmo que a grosso modo não pareça, entre eles há uma notável diferença. A grafia semelhante esconde na verdade um abismo conotativo. Explico: o panaca é mais lorpa que o babaca. Panaca ri das cenas de torta na cara; já o babaca não acha mais graça nisso, não. Na escala evolutiva, está um degrau acima do panaca. O máximo que o babaca faz é chifrinho nas fotos de festa de aniversário, embora afirme aos mais chegados que já abandonou o vício.

Pouca gente se dá conta, mas “imbecil” e “idiota” não são propriamente xingos. Idiotia e imbecilidade são estados psíquicos – patologias catalogadas e estudadas pela psiquiatria moderna. Psiquiatria que já vem se debruçando sobre os “Sequelados” e os “Sem-Noção” – neo-zuretas desse insano início de século 21. 



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sábado, 23 de janeiro de 2016

ANTES QUE A NOITE DESÇA


Imagem: lojavirus.com.br


Eu nunca mais vou comer um bife acebolado como aquele. Nem tudo o que vinha de guarnição, que era farta e servia dois, três ou até mais, dependendo da fome: um vinil meio empenado do Cat Stevens, uma jaqueta jeans com um botom pela paz e mais umas vinte páginas do "Diário de Dany" - que seriam devoradas logo após o bife. Já soava anacrônico o "Diário de Dany" naquele fim de linha permissivo para uns poucos e inocente para quase todos, o rincão que por costume amávamos por não nos caber nada melhor. Mas quem poderia, aos 14, parar de lê-lo? O Diário que era, além de livro, espelho das acnes minhas e da vizinhança inteira. Seria bacana se pudesse dar um jeito no All Star cano alto antes que ela chegasse, pois todas as estrelas da noitinha que ia descendo não ofuscariam, de jeito nenhum, a nhaca que não chegava a ser chulé, mas que tomava conta e poderia atrapalhar aquele beijo. Aquele longamente arquitetado e que não veio, mesmo com o All Star bem longe na hora em que ela apareceu e fincou estaca vitalícia com seu patchouli. A estaca dela fincada no drácula de mim, mas nem pensar a minha nela. Não era de se deixar fincar, sedentária e obediente, do jeito que vovó sonhava e mamãe fazia gosto. Ia e vinha, leve e livre, como a asa delta da abertura da novela. Asas ou velas, não lembro. Mas tinha um mar lindo de globopixels cocacólicos na tela da TV de tubo, tão calendário de quitanda, um avesso 100% de favela. De volume em volume da Barsa, de degrau em degrau de igreja à espera dos fiéis para mais uma protocolar cerimônia de batismo, era uma dormência distraída e inconsequente. De coçar até enjoar e ir pela enxurrada em pedras portuguesas, rolando com cuidado para não corromper inutilmente a vida quieta. Hoje fica claro que não havia razão nem propósito em desafiar o conformismo dos velhinhos de charrete, aguardando no ponto o que nunca vinha nem poderia chegar. Porque aonde se tentasse ir, tudo daria sempre no mesmo lugar.

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sábado, 16 de janeiro de 2016

PELO SIM, PELO NÃO



- Quais são seus pecados, meu filho?

- Ecumenismo descontrolado, padre. Estou aqui para confessá-lo e obter sua absolvição. Qual é a minha penitência?

- Mas o ecumenismo em si não é um pecado. Em tempos de intolerância religiosa, é até uma virtude. O próprio Papa participa de rituais ecumênicos.

- Tem mesa branca no Centro daqui a quinze minutos, padre, pelo amor dos santos todos! Vê se adianta o expediente, quantos Pai Nosso e quantas Ave Maria?

- Calma, desse jeito a sua pressa acaba contando como pecado também... Vejo que você está aflito e ansioso. Me explica melhor essa sua compulsão ecumênica.

- Há controvérsias, mas pelo sim, pelo não, vamos assumir que Deus está em toda parte e que são muitos os caminhos que levam a Ele. Quero me garantir e percorrer pelo menos os principais, entende? Vai que Deus ao invés de Deus seja Alá, ou que ao invés de Alá seja Oxalá, entende? Como é que eu posso ter certeza de qual Deus que tá valendo?

- Essa sua fé indefinida não o levará a lugar nenhum.

- Veja bem, o inferno ou o umbral não estão exatamente nos meus planos. E também não me interessa reencarnar como tratador de ornitorrinco em zoológico da Tasmânia nem como refém do Estado Islâmico. Quero fazer a lição de casa direitinho agora pra ficar tranquilo e com a minha vaga assegurada na glória celeste.

- Benza Deus, que neura...

- Mas aí começam os conflitos, padre. Por exemplo, em casa eu tenho um oratoriozinho colonial com a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Praticando essa devoção eu mato dois coelhos - sei que matar é pecado, mas é só força de expressão: ganho ponto positivo no Catolicismo e na Umbanda, pois Nossa Senhora da Conceição e Iemanjá são a mesma pessoa. Só que os protestantes e os evangélicos não aceitam imagem de santo. E se a gente analisar só o Protestantismo, vai ver que ele se segmenta em diversas vertentes, cada uma delas com características próprias. Aí fica difícil. E o bicho pega também no caso do Hinduísmo, que por ser politeísta conflita com o Deus único dos cristãos. Como se não bastasse temos ainda o Budismo, postulando que Deus é na verdade tudo, e não um ser definido e específico. Não é mole não, padreco. Eu tento de todo jeito ficar com um pé em cada canoa, mas as canoas se multiplicam mais do que casais de bichos na arca de Noé. Bom, em resumo: esse mundo está por pouco e eu quero mais é me safar.

- Você defende o ecumenismo não para fortalecer a fraternidade entre os homens, mas para salvar sua pele. Você o instrumentaliza e o torna manipulador. O Todo Poderoso sabe exatamente de suas intenções ao vê-lo em cima do muro. 

- Falando assim o padre me faz lembrar do muro das lamentações. Estive lá no ano passado e é bom que volte outras vezes, por precaução. Indo apenas uma vez, posso dar a entender que fui só pra cumprir tabela. A fé exige entrega, perseverança e sacrifício, ainda que o dólar tenha rompido a barreira dos quatro reais e o meu programa de milhagem esteja zerado há muito tempo. Quantos Pai Nosso e quantas Ave Maria, padre? Quer um Salve Rainha também?


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sábado, 9 de janeiro de 2016

ABDUZIDO



O abade Nathanael começou, de fato, a acreditar cegamente em Deus depois da primeira volta no disco voador. Até então, sua fé um tanto vacilante fazia-o crer burocraticamente no Ser Supremo em 3 pessoas, conforme os catecismos, sem maiores contestações. Mas no íntimo o incomodava saber que o que sentia estava longe de ser adoração convicta, a despeito dos 28 anos de abadia. Parecia estar enganando a Deus, se existisse, e a si, de cuja existência também tinha sérias dúvidas. Até que o pequeno ser ocre e pegajoso lhe apareceu no claustro, lhe tomou pela mão e o levou, por entre nuvens, ao cerne de todas as perguntas até então sem respostas.

Cada pequena luz do painel da nave disparava uma lembrança. O machado rachando a lenha para mortificar a carne e elevar o espírito. O ofício em oração e canto, o banco duro, a geada emudecendo o sino, o genuflexório. O olhar do ET era para ele uma homilia muda, havia um sermão interminável sendo dito e escutado naquele silêncio solene e sem gravidade. Atravessavam os dois, em segundos, nebulosas inteiras. A abadia, em todo o seu esplendor, cheirando a vela e incenso, talvez fosse um delírio de madeira e mármore, e toda sua vida uma distração momentânea da qual acordava agora. Talvez fosse a vida de verdade um voo a esmo junto ao ET, e que tudo o que imaginava ter vivido não passasse de uma soneca tirada ali, na poltrona de co-piloto. Mas explicar como aquele o hábito puído, o crucifixo e o olhar contrito refletido nos instrumentos de bordo?

Assim foi aquela volta, a primeira de tantas. Entre uma lua e um sol qualquer do calendário, lá estava o serzinho ocre, como que cumprindo uma missão celeste, pronto para de novo levar consigo o abade. 

Um belo dia, foi a vez do abade tomar o ET pela mão e levá-lo, escondido debaixo do hábito, para assistir à missa matinal. Desobedecendo a recomendação de ficar calado, ele soltou um sonoro "Ele está no meio de nós" após o padre dizer "O Senhor esteja convosco". Lançou um olhar cúmplice para o abade e sacou da algibeira extraterrestre um retratinho de família, com ele pequenino na pia batismal, rodeado pelo pai, a mãe e os padrinhos. Todos ocres. Todos boa gente como ele. 


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