.

sábado, 26 de novembro de 2016

O "PATRIOTA ELEGANTE" FECHA SUAS PORTAS



A notícia é triste e a perda é irreparável. Com lágrimas nos olhos, moradores dizem que não conseguem imaginar a cidade sem as coloridas vitrines do “Patriota Elegante”.

Há motivos para essa nostalgia. Rara era a casa que não tinha no quintal, entre uma jabuticabeira e um pé de graviola, um mastro para se hastear a bandeira nos dias cívicos - transmitindo aos nossos guris belos exemplos de amor à pátria. Havia sorteio na família para eleger quem teria a honra de ir puxando a cordinha até colocar o lindo pendão da esperança lá em cima, ao mesmo tempo em que um parente encarregado da sonoplastia mandava ver na sonatinha um compacto com o hino nacional, interpretado pela Banda dos Fuzileiros Navais. 

Mas nada é para sempre. A extrema sazonalidade da demanda (basicamente Proclamação da República, Dia da Independência e Dia da Bandeira), aliada à atual crise econômica em que antipatrioticamente nos meteram, explicam o fato do "Patriota" perder de vez a elegância, a freguesia e o fôlego para continuar na praça.

O 19 de novembro deste ano marcou o estrebuchamento final desse herói da resistência varejista. Cheia de dívidas com bancos e agiotas, a casa tinha como última esperança de salvação aproveitar o Dia da Bandeira para desencalhar pelo menos 950 unidades do nosso símbolo augusto da paz. É claro que nem implorando à alma do Duque de Caxias eles iriam conseguir isso, e a consequência aí está. 

O tempo áureo para o segmento foram os 21 anos do governo militar, especialmente quando dos festejos da Semana da Pátria. Todos os alunos das escolas públicas eram obrigados a alfinetar na blusa do uniforme uma fitinha verde e amarela ou uma espécie de broche semelhante a uma medalha, só que de pano. Eram centenas de milhares de quilômetros de fita assimilados compulsoriamente pelo mercado, que fizeram a fortuna dos proprietários das grandes redes de artigos patrióticos. 

À medida em que a demanda por esse tipo de produto ia perdendo força, maiores eram os lampejos criativos dos donos de lojas para tirar do vermelho a produção verde e amarela. Já não tinham grande saída os pins de lapela com o retrato de Floriano Peixoto, nem as gravatas modelo José Bonifácio de Andrada e Silva, nem as caixas de charuto baiano fumados por Getúlio Vargas. O upgrade veio com a inclusão de serviços voltados aos novos perfis de consumidor, como tatuagens com o brasão da República ou com a célebre frase de Tiradentes: "Dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria". Na tentativa de seduzir o público feminino, as lojas introduziram em seu portfólio a chamada "Nail Art", ou design de unhas, com a pintura de miniretratos da Imperatriz Leopoldina e da Princesa Isabel. Aproveitando o recente revival da barba cheia e bem cuidada, os rapazes passaram a contar com o Dom Pedro II Style como mais uma opção no catálogo patriótico. 

Nada disso, porém, adiantou. O "Patriota Elegante" sai de cena, levando à fila do seguro-desemprego cerca de 35 funcionários e deixando saudade em sua minguada clientela. Pelas esquinas da cidade, comenta-se que seu tradicional prédio da Avenida 15 de Novembro será locado para mais uma unidade da Pastelaria do China.



Imagem: clubedeartesanato.com.br 
© Direitos Reservados

sábado, 19 de novembro de 2016

KEITH RICHARDS - A REGENERAÇÃO



O Keith Richards que o mundo conhece, ou imagina conhecer, é mais que uma celebridade que tem simpatia pelo capeta. Faz muito tempo que esse Keith, um modelo de perdição física e espiritual, já não existe mais. Acreditem: essa é a pura verdade. Mais pura que o pó branco que quase arruinou sua vida e por pouco não o levou, ainda nos anos 60, para os quintos dos infernos. 

Há um novo homem vivendo dentro de uma carcaça carcomida, totalmente liberto do pecado, mas que é obrigado – por contrato – a fingir que é um coquetel ambulante de cocaína, álcool e barbitúricos. A sua libertação foi tão completa que hoje não suporta nem mesmo aquele cigarro no canto da boca, que é forçado a ostentar em todos os shows. Uma encenação mesquinha, uma blasfêmia aos olhos do Criador.

O que ele queria mesmo, para a glória dos céus, era transformar a “Satisfaction” em “Ressurrection”. Mudando, é claro, aquela letrinha tola e egoísta e fazendo dela um hino de louvor. Forte e poderoso, capaz de exorcizar tudo quanto é coisa ruim. Seria uma espécie de acerto de contas entre o novo e bem-aventurado Keith e aqueles excessos loucos do passado. 

Quando eu falo em “novo Keith” é preciso deixar claro que ele não é tão novo assim. A grande mudança de vida aconteceu mais ou menos na época em que “Start me up” estourava nas paradas, lá no começo dos 80. Imaginem vocês o conflito entre o eu limpinho, regenerado, totalmente liberto do pecado e das drogas e aquela imagem de devassidão libertina que ele precisava manter para que os Stones continuassem sendo os Stones.

Deus sabe quantas foram as vezes em que tudo o que ele queria era passar horas ajoelhado em fervorosa oração, mas era coagido a subir em diabólicos palcos pelo mundo afora, fazendo turnês atrás de turnês e mostrando ao show-business uma imagem que não era mais a dele. Keith tentava convencer o Mick a transformar o grupo em uma superbanda Gospel, oh Senhor, como seria divino se isso um dia acontecesse... Mas aquele ateu incorrigível ria e debochava toda vez que ele tocava no assunto. Mostrava a língua, as nádegas e o maldito contrato que o obrigava a ir em frente com o teatrinho.

É claro que, ao assumir uma imagem de regeneração, os Stones perderiam grande parte dos fãs acumulados em mais de 50 anos. Mas ganhariam certamente uma legião de fiéis convertidos à causa da caridade cristã. E essa atitude talvez os redimisse do erro de terem tomado a estrada errada, onde quanto mais enchiam sua conta bancária mais se esvaziavam como seres humanos. 

Lembro que uma vez, numa madrugada chuvosa, Keith ligou para o Mick falando da visão que acabava de ter, onde incorporavam em seus gigashows uma enorme piscina de 250x250m, cheia de água abençoada, na qual batizavam milhares de ovelhinhas a cada apresentação. Só que Mick mais uma vez não levou Keith a sério, dizendo que a sua visão devia ser efeito retardado de alguma viagem de heroína. Mandou um rouco “fuck you” e bateu o telefone na cara dele. Mas deixa estar. O Todo-Poderoso, em sua misericórdia, há de levá-lo um dia ao caminho da salvação. 


Esta é uma obra de ficção. Por mais que o Keith jure ser verdade.


© Direitos Reservados

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

REVOLUÇÃO DE ISOPOR



Antes de mais nada, agradeço a presença de toda a diretoria do shopping a esta convocação extraordinária.

Bem, indo direto ao assunto: por meio de pesquisas, detectamos que mais de 90% dos homens odeia aquilo que 100% das mulheres adora: experimentar roupas. Para eles, é tortura chinesa entrar e sair de loja, e dentro de cada loja entrar e sair do provador, e dentro de cada provador entrar e sair de ternos, jaquetas, camisas, calças, sapatos... fora isso tem aquela vendedora excessivamente prestativa, em geral comissionada, que fica atrás da cortina perguntando a toda hora se ficou bom. Se não ficou, sem problemas - ela já está a postos com outras nove peças na mão, prontinhas para entrar e sair da máscula carcaça.

Diante dessa constatação surgiu a ideia, que motivou essa nossa reunião. O negócio funcionaria da seguinte forma: o sujeito vem até o shopping, tira a roupa em uma sala reservada e é escaneado em 3 dimensões. A partir disso um software faz todos os cálculos e cria virtualmente um clone do físico da pessoa. Os dados são transferidos para uma máquina modeladora - que irá produzir um manequim em isopor do macho em questão. Todo o processo não leva mais que dez minutos.

Finalizado o boneco, nossos funcionários saem batendo perna pelo shopping procurando os itens solicitados pelo cliente, de acordo com a predileção por marca, cor, numeração, estilo, etc. Encontrando em alguma loja um produto que tenha a cara do nosso amigo, o funcionário põe no boneco e vê se ficou bom. Se sim, nosso cliente é avisado por celular que na loja tal, por tantos reais, tem uma calça x que cai com perfeição no corpo dele. A foto do produto vai junto, e o sujeito só tem que aprovar ou não a compra.

Logicamente que alguns itens ficam fora do serviço. Roupas íntimas, por exemplo. Os lojistas não deixariam experimentar, ainda que o boneco seja de isopor. Com óculos a coisa também não funciona, pois são milhares de armações disponíveis. Além do mais, o rosto não será detalhado no processo de escaneamento, por uma questão de privacidade. Vai que algum credor da pessoa de carne e osso reconhece o seu modelo de poliestireno e resolve atrapalhar a compra ou esquartejar o boneco? O mesmo pode acontecer com um oficial de justiça ou até com alguém da polícia que esteja no encalço de um eventual consumidor foragido... Então, decidimos que o rosto da estátua terá aquela feição padrão de manequim de butique, para não termos problemas.

Enquanto isso o contratante do serviço fica no cinema, toma um chopp ou aproveita para comer um negócio - ele só não pode comer ou beber muito, sob pena do boneco de isopor, ao final da compra, não corresponder mais à silhueta do original.

Resumindo: ao mesmo tempo em que a gente tem a chance de empurrar mais produtos no cliente, ele segue consumindo na praça de alimentação e nos setores de entretenimento. Isso não é um diferencial, é uma revolução mercadológica! No início, podemos causar estranheza e até alguma rejeição, com os nossos funcionários andando pra baixo e pra cima com os bonecos de isopor debaixo do braço. Porém, com o tempo, a conveniência vai vencer a resistência. Podem ter certeza.

Bom, em linhas gerais, é esse o projeto. Perguntas? Dúvidas?


© Direitos Reservados

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

NEM QUEIRA SABER O QUE ACONTECE LÁ DENTRO



A nossa sociedade secreta pode ser tudo, menos secreta. Paradoxalmente, só nos popularizamos a partir do momento em que alguém começou a inventar e a espalhar que tínhamos um rol infinito de segredos guardados a sete chaves. Ou seja, aquilo que presumivelmente calávamos é que fez com que caíssemos na boca do povo. 

A especulação sobre quem somos e o que fazemos não cessa. Falam de fantasiosos símbolos, adereços, elementos com significados ocultos. Dizem que o que se faz em nossa sede, dos rituais de iniciação (nem sabemos o que é isso) ao conselho magno sacerdotal (heim???), inclui derramamento de sangue e lágrimas, sacrifícios de animais em altares de marfim e até uma misteriosa escrita em código, da qual se tenta inutilmente desvendar a sintaxe.

Com toda a sinceridade, é desconcertante e vexatório ter que revelar a esses bisbilhoteiros - gente que chega aqui em nossa sede arfando por revelações bombásticas e decifrações de enigmas - que não existe segredo algum naquilo que fazemos. E quanto mais afirmamos essa simples e cristalina verdade, mais esse povo pensa que estamos despistando e guardando insondáveis mistérios somente para nós. 

Queremos apenas ajudar ao próximo, e essa missão de servir é vista pelos maledicentes como uma espécie de "falso propósito", de conversa pra boi dormir. Se não cobramos nada de quem quer que seja, inventam que é porque somos tão ricos e não temos mais onde enfiar dinheiro. Se nos reunimos às quartas-feiras, às 7 da noite, começam a elocubrar significados cabalísticos e numerológicos, relacionando aritmeticamente o dia da semana ao horário: o 4 da quarta mais o 7 da noite é igual a 11, assim como 11 é a numeração da sede, da mesma fora que 11 lembra as duas palmeiras plantadas simetricamente em frente ao templo, de onde se deduz que o 11 do Palmeiras entrou no time por influência de alguém graúdo do templo, eleito por 11 encapuzados para cumprir um mandato de 11 anos, renováveis por mais 11.

Enfim, chegamos à conclusão de que é inútil qualquer tentativa nossa de rebater tantas imbecilidades e calar a boca dos desocupados que as formulam. Até mesmo este texto será motivo para que criem uma maluca teoria da conspiração, na qual algumas palavras contidas nele formam uma mensagem ultrassigilosa, que só uns poucos eleitos saberão decifrar. Algo ligado ao fim do mundo ou coisa parecida. Tsc, tsc. Melhor parar por aqui.



© Direitos Reservados