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sábado, 24 de dezembro de 2016

NATAL DE ARAQUE




(Republicação de texto de 2007)


- E então, como foi na entrevista?
- Vou ter que engordar uns 22 quilos se quiser pegar a vaga de Papai Noel. O recrutador disse que a barba está boa, mas meu rosto está muito chupado.
- Só que pra você engordar vai ter que comer, e se tivesse o suficiente pra comer não tinha que procurar esse bico. Não dá pra colocar uns enchimentos debaixo da roupa? Um almofadão, um edredon fofo?
- Não adianta... Papai Noel tem cara gorda, tem braço gordo. E nos gordos de verdade até a voz é diferente. A minha é um fiapo, Maria... parece aquelas de Pato Donald quando entrevistam bandido no Jornal Nacional.

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Bem, analisamos todos os candidatos e apesar da magreza optamos por você. O esquema é o seguinte: você acomoda o peste nos joelhos e faz o interrogatório, observando rigorosamente esta sequência:
. Você é um bom menino?
. Se comportou durante o ano?
. Obedece papai e mamãe?
. Vai bem na escola?
. Come toda a chicória do prato?
Depois de ouvi-lo mentir em todas as respostas, você pega a cartinha da mão dele, lê em voz alta, coloca ela no saco, dá um beijo na testa do ranheta e enfia dentro do envelope o folheto da loja que tem o brinquedo que ele pediu. Aí você diz pro melequento entregar o envelope pro pai dele, falando que é a resposta do Papai Noel, ok? O que converter em venda você leva meio por centro. Feito, meu velho?

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O turno era de 14 horas ininterruptas. O assento do trono tinha uma pequena tampa que dava direto para um outro trono, da Celite, pra que Papai Noel não precisasse sair dali pra nada. A fila tinha de andar, fazer o quê. E calculando a conversa de cada pentelho com o bom velhinho, mais a pose pra foto, tínhamos a média de 2 minutos e meio por peralvilho.

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- Gui, olha só o Papai Noel!!!
- Ô mãe, é Natal ou primeiro de abril?
- Por que a pergunta, Gui?
- Papai Noel chega de trenó, não de helicóptero como esse aí. Não tem tatuagem da Harley Davidson e do Che Guevara perto do cofrinho. Não fede cachaça. Ah, e na roupa desse velhinho aí tem uma etiqueta escrito “Casa das Festas”. Estranho, não? Esse não é Papai Noel. É um mentiroso sem vergonha.
- É isso mesmo, o senhor é um impostor. A gente passa o ano todo dizendo para os filhos que mentir é feio, que se disser mentira não ganha presente de Natal. Aí chega aqui no shopping e encontra um Papai Noel fajuto, mais suspeito que brinquedo chinês. Nem criancinha lactente cai nessa esparrela. O senhor não passa de um artigo de 1,99!
- É, vamos processá-lo por falsidade ideológica, mãe. Esse Papai Noel cover não tem nada a ver. O verdadeiro Nicolau deve estar indignado com esse rascunho genérico.
- Chuta o saco dele, Gui, chuta. Isso!

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O escândalo do Noel desmascarado espalhou-se mais rápido que as renas do Noel de verdade. Tiveram de arrumar um substituto às pressas, este afiançado pela administração do shopping como legítimo. O risonho, bonachão e desta vez suficientemente gordo Santa Claus distribuía ho-ho-ho’s por onde passava. No mais, os piscas, as bolas multicores, as guirlandas e os sinos badalando anunciavam um natal a preceito, como deve ser. Contudo, um guri capcioso, na hora de subir ao colo do obeso acetinado, viu o que não devia ver: uma fitinha do Senhor do Bonfim amarrada no punho do Papai Noel. Do verdadeiro Papai Noel.
- Ô manhêêêêêêêêêêêêêê! Vem cá ver uma coisa!


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sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

AGORA COM AMPLO ESTACIONAMENTO



Bem-vindo. Retire seu ticket de estacionamento e boas compras. 

- Ali era o banheiro da suíte, bem onde está o Santana prata. Quando é que o Doutor Ribeiro, fazendo a barba ou tomando banho, lá pelos idos de 1976, iria imaginar que uma porcaria de uma lata velha acabaria atropelando a sua banheira de granito e o bidê da sua senhora... É um carro antigo hoje, né? Mas em 76 essa geringonça ainda nem existia. Coisa doida. Dá nó na cabeça e angustia a gente.
- Você conhece bem a planta. Até parece que fez o projeto da casa.
- Não, eu era só um amigo da família. Aliás, esse carro, o Santana, é quase do tempo do Opala. Nos últimos anos eles tinham um Opala lindo na garagem, só vendo que beleza de automóvel. Eu era colega de classe do Serginho, filho do casal. 
- Tudo acaba, queridão. De pouquinho em pouquinho, a vida vai matando tudo o que encontra pela frente. Não poupa nada nem ninguém.

Oferta-relâmpago imperdível pra você aproveitar: margarina Doriana, pote 500 gramas, só R$3,78.

- Alguns lugares não poderiam ter direito ao fim. A casa dos Ribeiro era uma instituição da cidade. É uma amputação urbana, uma coisa antinatural e desrespeitosa ela não existir mais. Está vendo aquela Pajero, do lado do Onix? Ali ficava a sala de jantar, que dava em "L" pra de televisão. Um pouco mais pra lá tinha a porta principal, ladeada por enormes vitrôs de correr, que do ponto de vista dos meus oito anos aparentavam ter uns quinze metros. Olha, vou te falar... pra quem entrou tantas vezes naquela casa linda, era mais fácil ver tudo em ruínas do que dar com isso o que estou vendo agora.  Esse pátio imenso de cimento, com essas faixas amarelas demarcando as vagas, esse barulho horroroso de carrinho de supermercado vindo pra lá e pra cá. Não é justo. Não é digno do que foi aquela família, nem da história que viveram nesse chão aqui, sabe?
- Ih, caramba. A gente aqui conversando e olha só... o Pinho Sol vazou bem em cima das peras.

Omo Dupla Ação. Deixa o branco mais branco, tira as manchas mais difíceis. Remove toda a sujeira sem estragar suas roupas.

- Tem tantos anos tudo isso, já era pra ter apagado da lembrança. Daqui a pouco o Doutor Ribeiro vai ser só um nome de rua. E mais um pouco, ninguém vai saber quem foi o Doutor Ribeiro e porque a rua tem esse nome. É triste. 

Para sair, insira o seu ticket de estacionamento. Volte sempre!


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sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

LÚCIA FOI PARA O CÉU

lucia

Era uma vez a recatada Lúcia, que farta de tudo abandonou o jogo. E após lançar-se de um penhasco próximo, deu consigo a flutuar e a atravessar paredes. Livre do carne e da gravidade, vestiu-se de luz e pôs-se a vagalumear calma e displicentemente. A chave do tempo nas mãos, todo o espaço de outros mundos a percorrer como quisesse. Via-se agora como sonhava ver-se, intercambiando entre as várias Lúcias dos dias felizes. Via-se Láctea universo afora. Via-se as muitas que fora outrora. Mamava sôfrega o leite da mãe, pulava sela e batia cara contando até cem – lá vou eu!


E lá foi a Lúcia. Já foi tarde da imundície desses dias mutilantes. Um bilhete só de ida com destino a never more. Ao entrar no vagão do itinerário eterno, pegou uma janelinha na poltrona nove. Desceu na estação seguinte, onde topou com a Lúcia em seu vestido verde de babados brancos. Recém-entrada nos dezesseis, recende a sândalo e odor de fêmea. Lúcia olhando Lúcia, encontram-se finalmente, estranham-se mutuamente.


Embarque para Saturno na plataforma 2. Lúcia cósmica cintila, enlaçada em seus anéis. Alianças várias, de formatura, de noivado e casamento. Aceita, Lúcia, esse sujeito como esposo? Pode ser que sim, pode ser que não. Provavelmente talvez. Núpcias de Lúcia. Gastando a vida em meio a trapos, afazeres e panelas de pressão. Faz as unhas, tinge o cabelo, fuma, ganha filhos e olheiras. Os dias voaram, os meses voaram, os anos voaram e Lúcia também. É, agora Lúcia voa para onde bem entender. A senhora Lúcia, senhora de si.

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sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

QUIXOTE MODERNO S/A



- Recebemos uma denúncia de Quixote Moderno S/A, que o acusa de extrair mogno nativo para confecção de seus bonecos de ventríloquo.
- Ah, então foram eles... nada me espanta, vindo dessa gente. Essa Quixote Moderno S/A não tem autoridade moral para denunciar e nem acusar ninguém. Seu imenso latifúndio de geradores eólicos provocou uma catástrofe ambiental na região, e nada de punição até hoje. Teve até uma turma do Greenpeace fazendo protestos e se amarrando às hélices dos moinhos. Ou melhor, dos aerogeradores. Todos viram, deu no Jornal Nacional semana passada. E os responsáveis aí, soltos. Eles me perseguem porque um dos meus bonecos deu a entender, em um programa de auditório, que a Quixote Moderno é uma verdadeira desgraça ambiental. Depois disso eles botaram detetive atrás de mim, para flagrar qualquer passo em falso e destruir minha reputação. 
- O erro da Quixote Moderno não justifica a ilegalidade cometida pelo senhor. Essa questão não vem ao caso.
- Mas o meu delito é pequeno demais perto do crime ecológico deles. Para fazer seu fabuloso parque de 9.000 geradores, em duas semanas foram para o chão 5.700 hectares de mata que a natureza levou milênios para formar. Várias espécies de animais e plantas foram extintas e até o clima foi afetado por aqui. E vocês me enchendo a paciência por causa dos meus bonecos!
- Se tantas árvores foram derrubadas para montar o latifúndio eólico, por que o senhor não as aproveitou como matéria-prima de suas criaturas?
- Ah, então quer dizer que se eu me servisse das toras ceifadas criminosamente estaria tudo certo? Olha, na época da devastação eu até pensei em pedir um ou outro toco para a Quixote Moderno. Mas minha produção de bonecos é tão pequena, mas tão pequena que fiquei até envergonhado. Forneço meus bonecos para ventríloquos de circos, teatros e TVs de todo o Mercosul, mas mesmo assim são pouquíssimas unidades. O ventriloquismo não encanta mais as crianças de hoje. Sem falar que a Quixote Moderno só venderia aquela quantidade colossal de madeira a quem levasse tudo de uma vez, para desocupar rapidamente a área. E pagando uma fortuna, é lógico.
- Entendo o seu ponto de vista. Mas se por um lado eles exterminaram um patrimônio florestal enorme, por outro eles se redimem produzindo energia limpa, gerada pelo vento.
- O senhor está defendendo aqueles criminosos? Quanto é que está levando nisso, heim?
- Faça o favor de me respeitar, posso prendê-lo.
- Então, não perde tempo. Melhor me prender agora, porque se eu sair daqui vou correndo fazer dois novos bonecos de ventríloquo - um com a sua cara e outro com a cara do CEO da Quixote Moderno. E nem queira o senhor saber as falas que eu vou botar na boca de vocês dois!
- Ô Denilson!...
- Pois não, Dr. Sancho.
- Liga pra Quixote Moderno, diz que o homem tá aqui comigo e que eu estou aguardando instruções.
- Sim senhor, Dr. Sancho.


Imagem: mad-intelligence.com
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