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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

ANJOS ACHAM DIFÍCIL MANTER A GUARDA



Veja como são as coisas. Há cinquenta anos - e isso é um piscar de olhos nas cronologias serafínica e querubínica - , cada anjo dava conta de guardar dois, três, até mais viventes de carne e osso. A vida era calma e o perigo era pouco. Agora, se bobear é preciso um regimento dos nossos para pajear cada humano. E o déficit funcional se vê em todas as esferas celestes, entre os anjos da guarda municipal, estadual e federal. 

Quanto mais a humanidade inventa traquitanas e afazeres, mais perigo se corre e mais desavisados temos que ficar puxando da beira do precipício. Os malditos smartphones são os piores exemplos do que estou dizendo. Eles distraem a atenção de todos o tempo todo, nos deixando em sobressalto, sem saber a quem acudir primeiro e sem poder pregar olho para recuperar as forças. Crianças não fazem seus deveres, casais brigam sem motivo, velhinhos deixam de jogar damas para fazerem a alegria dos hackers nos sites de banco e lojas virtuais. É só cilada, uma atrás da outra. 

A mesma tecnologia que dá inteligência a celulares está produzindo gerações de acéfalos. E joga milhões de profissionais para as estatísticas dos economicamente inativos. O desemprego deixa as pessoas desorientadas pelas ruas, o que nos obriga a ficar virando seus pescoços para os dois lados a cada cruzamento que atravessam, para não aumentar ainda mais os já estúpidos índices de acidentes.

A eleição do zen-budista Donald Trump, somada à incontestável sanidade mental daquele ditador norte-coreano, fez soar a trombeta de alerta máximo aqui nas nuvens. As chances de um tilt global e irreversível são todas e mais algumas, e não há previsão para publicação de edital para contratação de novos anjos da guarda. O último aconteceu lá pelos idos da revolução francesa e, embora sejamos eternos no cargo, a população aí embaixo é  extraordinariamente maior que o nosso efetivo. Só para se ter uma ideia: em 1800, o mundo contava com 978 milhões pessoas, enquanto que hoje só na China são um bilhão e quatrocentos milhões. E o nosso exército angelical permanece com o quadro inalterado...

Outro agravante é a expectativa de vida. Apesar de estarem correndo cada vez mais perigo, estranhamente vocês estão conseguindo viver muito mais. É um paradoxo, mas é verdade. A evolução da medicina e das tecnologias envolvidas nos sistemas de segurança viária talvez expliquem um pouco essa intrigante realidade. O fato é que, mais uma vez, sobra para nós. Além de cada um dos nossos se ocupar de mais gente, essa mesma gente não veste o paletó de madeira de jeito nenhum, e está vivendo o dobro de seus bisavós. Junte a isso as maternidades abarrotadas de recém-nascidos e chegamos a uma situação caótica, beirando o descontrole absoluto. De anjos da guarda estamos nos transformando naqueles caras que ficam girando pratinho no circo. Tire esse riso da cara, por favor. O assunto é sério, e você ri porque não é com você. 



© Direitos Reservados


sábado, 18 de fevereiro de 2017

POUR ELISE - A GESTAÇÃO




I
- Sr. Beethoven, temos que admitir que seu nome chegou até nós não só pelo inegável talento musical. Também soubemos que está sempre precisando de dinheiro, para ir remediando seus problemas de surdez. Certo?
- Hein? Pode repetir? Espera aí, deixa eu colocar minha trombeta de ouvido. Ah, agora sim. Prossiga. 
- Um dinheirinho extra, Ludwig, um freela. O que me diz?
- Opa, aí sim. Sempre dá um gás no orçamento, né.
- Pois gás, justamente gás, é a palavra. Gosto de gente com intuição apurada, creio que vamos nos dar bem.


II


- Tem que ser algo suave para não irritar as pessoas, porém marcante o suficiente para alertar a vizinhança que o caminhão de gás está nas imediações. 
- É preciso muita habilidade para isso... juntar essas duas coisas não vai ser nada fácil.
- Por isso viemos atrás de um gênio. Conhecemos seu portfólio, Beethoven. Sua campanha "Pão, pão, pão, pão" ficou no ar tanto tempo, não é mesmo? Realmente marcou época. Até hoje, a gente passa pela prateleira do supermercado, vê o tal pão e lá vem a musiquinha na cabeça...
- Musiquinha? Veja como fala!! Aquilo é um tema primoroso, estava guardando para utilizá-lo em uma sinfonia, se o senhor quer saber. Porém, com as contas vencendo e as já vencidas, acabei sacrificando esse meu achado musical por uns míseros tostões. Que renderam bilhões em vendas para o dono da marca.


III


- Está muito chato isso. Fui eu que fiz, mas nem eu estou aguentando. Tenho que compor uma segunda, talvez uma terceira parte, para alternar um pouco com esse tema principal.
- Não, não. Aí fica muito grande. Tem que ser algo curto e fácil de reconhecer, para ficar repetindo mesmo e ser a nossa marca registrada. Controle sua autocrítica, Beethoven. Confie em mim, está ótimo. Lembre-se que o cliente sempre tem razão, não discuta comigo. Tá aqui seu dinheiro.
- Deus sabe o quanto estou precisando de uma grana agora, mas isso não é tudo. Vai dar BO, vão começar a reclamar, o Datena vai chamar ao vivo das ruas cobrindo o protesto dos moradores... aí vão descobrir quem fez a música, e mais cedo ou mais tarde vai sobrar para mim. Não, não. Pegue o seu dinheiro e procure outro compositor.


IV



- Alô.
- Sr. Beethoven?
- Alô!
- Alô, é da residência de Ludwig Van Beethoven?
- Fala mais alto!
- Alô...
- Espera um pouco, deixa eu pegar minha trombeta. Ah, agora sim, prossiga. 
- Sr. Beethoven, vamos direto ao assunto: ouvimos o tema musical que o senhor compôs para a companhia de gás, nos encantamos por ele e queremos saber quanto o senhor quer para nos ceder os direitos exclusivos de utilização. 
- De novo com essa história, assim não dá... Meu amigo, o dono da companhia de gás deve ter lhe dito que eu achei o resultado final enjoativo, que eu reneguei o tema e não aceitei vender a música. Nem para eles, nem para o senhor, nem para ninguém. 
- Por favor, não desligue, escute a minha proposta! Somos do Serviço de Atendimento ao Consumidor de uma grande multinacional, e precisamos de uma música que entretenha o nosso cliente enquanto ele aguarda na linha para falar com nossas atendentes... 



© Direitos Reservados
Imagem: sonsdavida.com.br

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

PASTÉIS DE BELÉM - O SEGREDO






- Que bom que veio. Sente-se.
- Obrigado.
- Como já deve saber, é um cargo vitalício. Nossos chefes de cozinha, uma vez admitidos, ficam conosco a vida toda. E ganhando muito bem.
- Muito bem quanto?
- Não se preocupe com isso. Dinheiro não é problema. O que precisa ficar bem claro é que, a partir do momento em que você entrar aqui, vai morrer a serviço do negócio. E de boca fechada.
- Sim, mas quanto?
- Diga-nos o que você imagina ser um salário astronômico. Esse salário dos sonhos nós multiplicamos por seis, para não perdermos tempo discutindo assuntos assim, tão sem importância. Tá bem para você?
- Não imaginava que isso desse tanto dinheiro. Ora pois...
- São milhares de pastéis vendidos por dia, que as pessoas comem em pé, depois de horas na fila. Em alguns domingos, chegamos a vender 45 mil unidades. Todos tentam copiar nossa especialidade, aqui em Lisboa e mundo afora. Os resultados são constrangedores. A nata utilizada nas outras receitas tem gosto de nada, a massa resseca, empelota e desanda. E olha que eles vêm tentando uma imitação que preste desde 1837...
- Que intrigante esse mistério.
- O segredo não está escrito em lugar nenhum, por medida de segurança. Ele é revelado verbalmente pelo dono da confeitaria ao cozinheiro chefe, em uma sala sem janelas e com isolamento acústico. O cozinheiro só sai da sala fechada após decorar de memória a receita completa. Isso feito, nosso proprietário vai com ele até um cartório de Lisboa, para lavrar um termo de compromisso onde o novo contratado jura guardar o segredo, responsabilizando-se criminalmente caso ele seja divulgado. 
- E depois?
- Depois vem um estágio probatório que dura de dez a doze anos, onde, dentre outros desafios, o novo guardião será obrigado a fazer a receita no escuro e com apenas uma das mãos. Esse é apenas um exemplo, as provações são diárias e de dificuldade crescente. É, o pastel é doce mas não é mole não.
- Compreendo.
- Nosso guardião do segredo, que estava no posto há 47 anos, faleceu há 3 dias. Precisamos eleger com urgência o novo pontífice de Belém. Nossos headhunters apontaram você por unanimidade, levando em conta dois critérios: maestria confeiteira e personalidade discreta. Basta que você aceite e a gente manda soltar a fumaça branca na chaminé da cozinha, he he he...
- Certo.
- Só não podemos esperar muito. Em 72 horas sem pastéis, já constatamos um espantoso número de cancelamentos de pacotes turísticos para Lisboa. Sem exagero algum: a falta dos pastéis de Belém na cidade vai provocar um abalo sísmico na balança comercial portuguesa. E você não quer ser o responsável por isso, concorda? 
- Bom, acho que agora preciso contar o meu segredo para você. Na verdade, estou aqui só escutando e me fingindo desentendido. Sou obcecado pelos pastéis de Belém, e minha vida se resume a desvendar sua fórmula. Saio do trabalho e me debruço em incontáveis ciclos de tentativa e erro, até cair exausto no sono. Descobrir o segredo assim, de mão beijada, seria perder o resto da motivação que ainda tenho. Nem todo o dinheiro do mundo pagaria a satisfação de decifrar por mim mesmo o mistério dessa lenda lusitana. Ainda que tenha que morrer tentando. Agora, se me dá licença, são seis da tarde e tenho programadas mais dezoito tentativas antes de dormir. 





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Imagem: pasteisdebelem.pt