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sábado, 16 de maio de 2009

VESTIBULANDO


Que alívio, crenças e rezas não foram vãs. O além parece existir mesmo, nada indica que isso seja uma alucinação da anestesia.
Do outro lado estou só e nu. Nem asas nem túnicas translúcidas e afins, o que atribuo ao fato de ser noviço na função, prestando um vestibular que me dará uma vaga no céu, no inferno ou noutro paradeiro não catalogado pela Bíblia. Faltou, por enquanto, o que sempre disseram que havia: o túnel luminoso que puxa irreversivelmente o recém-presunto, os parentes que já se foram aguardando com bolo, guaraná e faixa de boas-vindas, a vida do lado da carne passando como um filme rápido enquanto desligam as máquinas e decretam morte cerebral.

Ao invés disso, eis-me aqui a poucos metros de quem fui, quase à altura do teto, feito astronauta num treino sem gravidade, sem noção precisa do que sucedeu e muito menos do que está por vir. Bóio no corpo, se é que assim ainda posso chamá-lo, e no entendimento. Vai acontecer o que está fadado e que não me cabe saber, embora sinta o poder insuspeito do arbítrio mais livre, que me permitiria, se quisesse, fechar os olhos e abri-los um segundo depois na ponte do Brooklin ou em Jacarta. Tão inédita quanto mágica, essa nova faculdade não me seduz como seria de se supor. Prefiro estar aqui em cima e assistir ao que farão de mim e do espólio quase nulo a ser em breve repartido.

A estranha rédea sobre a consciência reforça a desconfiança de que esteja ligado debilmente à minha carcaça, e viva agora um impreciso devaneio de que me livrarei em poucas horas, reassumindo o sujeito com CPF, RG e obrigações a cumprir. Ninguém me assegura que não seja isso, e essa ausência de governo e coordenadas me perturbam. Mexem agora num tubo ligado ao meu braço, mas não vejo nenhuma tentativa de ressuscitação. A enfermeira anota alguma coisa na prancheta que nem tento decifrar, os óculos que usava parecem continuar fazendo falta.

Previsíveis providências a serem tomadas nos próximos minutos: avisar a família, preencher os prontuários de rotina, acionar o pessoal da remoção, retirar toda a tripa – inclusa aí a meia portuguesa/meia aliche devorada antes do acidente, completar o vazio das vísceras com algodão embebido em formol, costurar, vestir e meter o infortunado que vos fala (ou vos falava) num modelito clássico de mogno maciço. Cubro o rosto daqui de cima para não ver o rosto de baixo escondido até a testa com o lençol azul. “Near death experience”, uma vez entrei num site que falava sobre isso. Se retornar posso dar meu testemunho, já engrossando as estatísticas dos que quase foram. Mas pelo jeito fui mesmo, embora sem garantias de ter ido ao certo, estando assim até segunda ordem nesse lodo movediço.

A televisão do quarto fala sobre mim, mostrando uma foto antiga em que ainda tinha barba. Ou foi muito feia a causa mortis ou era famoso e não me recordo. A enfermeira cruza minhas mãos sobre o peito e aumenta o volume do aparelho para ouvir a reportagem, ao mesmo tempo em que a imprensa vai invadindo o quarto e disparando flashes.

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