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sábado, 18 de abril de 2020

DORMENTES DE MAÇARANDUBA



Tudo poderia vir abaixo nesta vida, menos os meus dois dormentes de maçaranduba. São fortalezas de dois metros e meio de altura, apoiando a viga do telhado da varanda e dando suporte para a rede. 

Quando notei aquela lasquinha à toa soltando da base, fui na fé de que era um nada, a remover passando a unha. No que encostei, o susto ao ver entrar a mão inteira. De repente a respeitável tora, vitalícia por natureza, tinha virado um adorno de isopor, daqueles de cenário de novela vagabunda. Mexi os dedos dentro dele e senti uma farinha úmida, soltando fácil a um toque do mindinho. Constatada a ruína, fiz check-up no irmão gêmeo, também na altura da base: idem idem. Sem salvação do chão para as profundezas.

Meus dois dormentes de maçaranduba já estão de cirurgia marcada para amputação dos pés. Como próteses da madeira original, uma fria armação de concreto e vergalhões será montada da grama para baixo. Barbaridade estética que, felizmente, ficará escondida pela mesma terra que acabou por gangrená-los. O que salva é que, do primeiro metro para cima, eles - assim espero - continuarão firmes como naquele dezembro de 98, quando chegaram ao meu pequeno terracinho para assumirem seu ofício. Ali se estabeleceram e se firmaram como totens sagrados, cheios de dignidade. Acima, muito acima das discussões que assistiram. Dos Natais e Réveillons de que participaram. Da lida doméstica que testemunharam e das mijadas de cachorro que aguentaram.

Na terça-feira que vem serão reduzidos a dois meios-dormentes, mas vá lá, fazer o quê? Trago comigo também só meios-sonhos, isso quando sobra tempo de ir à rede pra um cochilo.

Adeus, certezas. Não acredito nem mais um tiquinho em vocês. 




Esta é uma obra de ficção.
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