.

sábado, 22 de janeiro de 2011

SEM AÇÃO


Ilustração: Thiago Cayres



Com o fim do viva-voz, os negócios na BM&F passam a ser integralmente realizados pelo chamado GTS (Global Trading System) – um sistema eletrônico que as corretoras acessam de seus escritórios e dispensa a negociação feita pelos operadores em pregão.
Último Segundo - IG



Lá se vão dois anos desde que o meu valor de mercado despencou a zero, da noite pro dia, igual ao crash de 29. Mas ainda acordo no meio da noite com a orelha encostada no ombro, como se estivesse falando em três telefones ao mesmo tempo. Os músculos tensos, as mãos afrouxando um nó de gravata imaginário, gritando para ninguém: “Eu compro!”, “Eu vendo!”, “Fechado!”. Esgoelo até ficar quase rouco e ser acordado pela patroa, essa coitada que só não me largou ainda por causa da igreja. E vai um tempo até que eu desabe do saguão da BM&F para essa desgraça dessa cama, que já nem se dão ao trabalho de arrumar mais porque não saio mesmo dela, com a síndrome do pânico empapando de suor frio esse meu pijama listrado.

Agora o telefone toca de verdade. Um outro ex-operador, dos áureos tempos da ciranda financeira, me convidando para uma pescaria. Eu digo que sim, mas pesca me lembra rio, que me lembra Vale do Rio Doce, que me lembra o que nem preciso mencionar pra não começar a suar frio de novo. Desligo, faço de conta que caiu a ligação.

Maldita internet, malditos Home Brokers. Agora qualquer Zé Arruela administra, deitado na cama como eu, a sua carteirinha de ações. Se acham muito espertos e quebram logo a cara, lógico, porque não têm o jogo de cintura e a astúcia do papai aqui. Sou do tempo da Bovespa pré-painel eletrônico. Tinha uma lousa enorme e o pessoal, com giz e apagador, ia atualizando as cotações na munheca. Se contar ninguém acredita. E a grana pingava direitinho, tão constante e farta que eu nunca me preocupei pensando que um dia a fonte pudesse secar. Torrava o que vinha na farra regada a Chivas. Ganhava na corretagem e reinvestia boa parte na própria bolsa, comprando na baixa e vendendo na alta. Às vezes jogava tudo no papel mais azarão, e nunca dei com os burros n’água.

Volto aos jornais do dia, esparramados no lençol. Laboratório farmacêutico procurando voluntários pra teste de remédio contra a síndrome do pânico. Interessa. Vou lá conferir, pagam bem e ficam monitorando as melhoras e os efeitos colaterais. Serão dez anos fazendo parte de um grupo de controle, e tenho que assinar uns papéis isentando o laboratório em caso de óbito ou danos irreversíveis a essa carcaça velha. Tudo bem, não tenho nada a perder. Mas, antes, vou dar uma de operador Home Broker desconfiado e checar na bolsa a saúde das ações da tal empresa. Vai que... nossa, nem pensar. Olha o suor frio de novo.



© Direitos Reservados

1 Comentários:

  • Marcelo!


    Excelente!!!

    Por acaso estagiei na Bolsa de Valores do RJ, e assistia todo o estresse dos operadores. Ficava impressionada! Achava que em algum momento um deles sofreria um infarto, ou coisa parecida.

    Ajeitar o nó da gravata era quase uma dança em coreografia, realmente um ambiente tenso, onde jamais eu trabalharia. A tensão nas quedas e altas dos valores passava até para quem, só como eu, assistia.

    Imagino que no mínimo, a síndrome do pânico deve estar espalhada em muitos, que escaparam de outras doenças piores.

    Seu humor inteligente, fez o homem ligar “pesca-rio-Vale”. Fantástico! Deve ser esse o caminho.

    Agora só mesmo um psiquiatra para resolver e acabar com os sintomas.

    MUITO BOM!

    Parabéns!

    Forte abraço!

    Mirze

    Por Blogger Unknown, às 22 de janeiro de 2011 às 02:51  

Postar um comentário

<< Home