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sábado, 2 de novembro de 2013

COMPANHEIRA SOLITÁRIA





Cumprida a pena de 35 anos na solitária, pelo assassinato coletivo de 48 velhotas cambojanas, Emiliano Skud, também conhecido como O Perverso do Marrocos, surpreendeu a mídia mundial com a insólita decisão de não abandonar seu cubículo escuro.

“Por estranho que possa parecer, a solidão me proporcionou encontros memoráveis”, disse ele, comunicando-se de dentro da cela para uma multidão de repórteres com os ouvidos grudados à porta. “Fui finalmente apresentado a mim mesmo, e não estou disposto a abrir mão do autoconhecimento que ganhei nesses anos todos. Nos primeiros tempos, cada risquinho que fazia mentalmente nas paredes do meu cérebro eram os dias já vencidos cumprindo pena. Depois, esses mesmos risquinhos ganharam outro significado. Passaram a ser os dias ganhos nos meus mergulhos interiores de regeneração. Foram momentos de proveitoso tédio, que jamais serão esquecidos. A vida devassa que levei e os crimes que pratiquei nada mais eram que tentativas de fugir da minha verdade e ouvir tudo o que o silêncio e a escuridão precisavam me dizer”.

No decorrer dessas três décadas e meia, Emiliano teria sido por quatro vezes beneficiado com o regime de prisão semiaberto, por comportamento exemplar. Nunca se ouviu uma tosse, um pigarro, um bocejo que fosse vindo do seu compartimento. Declinava  de todas as oportunidades de banho de sol no pátio do presídio e agradecia polidamente os incontáveis indultos de Natal, recusando-se a usufruir do benefício.

Ao que se sabe, uma única vez o ilustre detento rompeu a sua habitual e absoluta discrição. Há aproximadamente sete anos, Skud acionou a campainha chamando o carcereiro, para avisá-lo de que a goteira, instrumento de tortura psicológica, não estava mais pingando. Solicitava providências para que se procedesse ao reparo o quanto antes, pois sem ela não conseguia mais se concentrar em seus processos meditativos. Argumentava ser a goteira um direito seu, previsto na condenação assinada pelo juiz.

Sua conduta irrepreensível muitas vezes colocava em situação embaraçosa os delegados e juízes diretamente ligados ao seu caso. Certa ocasião, ao saber que seria levado à força para fora da colônia penal, Emiliano Skud anunciou, via bilhete passado por debaixo da porta da solitária, que praticaria um harakiri em frente às câmeras, no momento em que cruzasse os limites da prisão. Contradição das contradições: a faca conseguida por Emiliano, que todos os outros presos utilizariam para se libertar da cadeia, seria uma arma para mantê-lo lá.  

Sem outra alternativa, a direção do presídio voltou atrás e decidiu mantê-lo em sua amada solitária. Foi por essa época que ocorreu a Skud a ideia de usar sua faca para assassinar alguns de seus colegas. O estratagema parecia perfeito: aceitaria finalmente sair para um banho de sol matinal e consumaria a chacina, o que o manteria por mais umas boas décadas em seu dolce far niente sombrio e gotejante. Porém, caiu em si e lembrou-se a tempo do novo homem em que havia se transformado. Deu um longo suspiro e mergulhou em sono profundo.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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