A SÍNDROME DOS LIVROS ILEGÍVEIS
O
DESBOTAMENTO
Como
muitas das desgraças desse mundo, a síndrome dos livros
ilegíveis foi se instalando de forma silenciosa e quase
despercebida. Quando os títulos dos volumes começaram a
sumir aos poucos das lombadas, muitos não deram importância,
atribuindo o fenômeno à luz do aposento, à vista
cansada ou algo do gênero. A manhã do dia seguinte
invalidaria essas hipóteses, revelando que nada é tão
ruim que não possa ser pior.
TODO
LIVRO É QUALQUER LIVRO
Das
pequenas estantes domésticas às prateleiras das grandes
bibliotecas, os livros foram todos se tornando indistintos. Era
preciso abri-los e iniciar a leitura para identificar a obra. Mas a
desgraça maior viria algumas horas mais tarde: relatos de
todas as partes do mundo informavam o gradativo desaparecimento dos
textos, transformando os livros em cadernos de anotações,
com centenas de páginas em branco.
AS
TENTATIVAS INFRUTÍFERAS
Pensavam
alguns abnegados que, enquanto houvesse um pálido traço
de letra antes do inevitável apagamento, haveria tempo de pelo
menos tentar reforçar a caneta o conteúdo. Mas a tinta
recém-aplicada também apagava-se à medida em que
ia sendo posta no papel. Esgotados pelo esforço inútil,
os heroicos voluntários quedavam-se inconsoláveis,
vendo o conhecimento do mundo ser tragado pelo nada e sem explicação
plausível.
Outros
disparavam feito loucos suas câmeras fotográficas sobre
as páginas dos livros e documentos ainda não
contaminados, tentando salvar o que pudessem da ruína para
depois reproduzir seu conteúdo, quando o pesadelo passasse.
Donos
de cartório desesperavam-se na impossibilidade de administrar
o caos, assistindo as propriedades perderem seus proprietários,
esposas perderem seus maridos, pessoas perderem nomes, devedores
serem libertos de credores, testamentos se anularem por nada
testamentar.
O
CONTÁGIO
Da
ausência de conteúdo nos livros deu-se em seguida a
perda da função das letras, que tornaram-se formas
gráficas sem significado algum. Um “s” continuava sendo um
“s”, com a diferença de que agora não servia para
nada. Olhava-se aquilo como a representação de uma
minhoca, uma cobra, um pedaço de mola ou algo parecido. A
epidemia do insignificado alastrou-se e infectou as bulas e rótulos
dos remédios, que assim tornaram-se potenciais causadores da
morte ao invés da cura, já que não mostravam o
que eram nem que alívio ofereciam. A única e perigosa
alternativa era a tentativa e erro na ingestão de medicamentos
e dosagens, o que não raro resultava em óbito. Mesmo os
mortos não escapavam à fúria destruidora de
letras: no campo santo, já não se distinguiam nem os
nomes dos finados, nem seus inspirados epitáfios. Tudo sob a
terra se ajuntava em um genérico cadáver.
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