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sábado, 29 de agosto de 2015

DO ALÉM



Nem imagina você, raro e por isso mesmo estimadíssimo leitor, o que é acordar tiritando em pleno inverno, correr para o chuveiro e ouvir o estouro da resistência, dizendo “Sorry, Mané”. Era o começo de um calvário atordoante, que iria se estender por todo aquele interminável dia.

Já ouviu falar em malabares na cara? Pois é, depois do banho siberiano, foi o que ganhei ao parar no primeiro semáforo a caminho do trabalho. O malabarista devia ser iniciante. Por um erro de cálculo o pino entrou pela janela do meu carro e deixou um razoável hematoma entre meu nariz e o olho esquerdo.

Próximo semáforo. Por míseros 50 centavos, o rapaz da cadeira de rodas me regalou com 3 pacotes de bala de goma. Na primeira mastigada caiu uma restauração. Discretamente, cuspi na rua o ex-pedaço de dente. Um guarda municipal viu e me multou por sujar via pública. Tentei explicar. Ele riu do meu incisivo pela metade, enquanto me entregava a autuação.

Liguei pra empresa avisando que ia chegar mais tarde. Parei no dentista pra arrumar o estrago. Na hora de pagar, peguei o talão de cheques mas não havia nenhuma folha. Precisava ir ao caixa eletrônico mais próximo. Mas tive que ir atrás do carro, que sumiu. Corri pra delegacia registrar a queixa. Para lavrar o B.O. precisava apresentar o RG. Cadê? Devia ter caído na hora em que tirei do bolso o talão, no dentista.

Voltei ao consultório, a pé. No caminho, fui assaltado. Queria tudo o bandido. Mostrei o nada do talão sem cheques. Em represália, uma coronhada. Também, convenhamos: isso é bem que se entregue a um ladrão sério, consciencioso, que luta pra ganhar a vida? Perdi os sentidos com o golpe, a última coisa que me faltava perder. Mas logo recobrei. Tinha que enfrentar o pior, que ainda estava por vir.

“O senhor mora onde?”, alguém perguntou. Estava tão atordoado que tive de pensar pra responder. Uma assistente social me levou, num táxi com a suspensão vencida e o escapamento aberto. Tão aberto que chamou a atenção da multidão reunida em frente à minha casa.

Sim, um helicóptero tinha caído exatamente sobre ela. Intacto, só o bidê do banheiro da empregada, que estava sendo saqueado no momento em que cheguei. Gritei: “Macacos me mordam!” e um macaco, saltando das ruínas do que era o armário de mantimentos, me mordeu. Com um naco de braço a menos, fui escalando os escombros à cata do único retrato de mamãe, ao menos isso tinha de salvar.

De frente para uma câmera e de costas para mim, uma repórter da Globo, vestindo tailleur cinza, falava alguma coisa sobre o trabalho dos bombeiros. A tragédia estava sendo televisionada. O celular tocou. Era meu chefe. “O senhor não disse que estava no dentista? O que está fuçando aí, na casa que caiu? É, a mentira tem perna curta, Seu Sérgio. Além de faltar ao trabalho, ainda tira proveito da desgraça alheia. Está demitido.”

Morri enquanto procurava o remédio para o coração. E para que fique claro que não houve causa mortis, e sim uma série delas, ditei este texto psicografado pelo autor deste blog.

P.S.: Se alguém achar o retrato de mamãe, favor ter a bondade de afixá-lo junto ao meu, em minha sepultura no cemitério da Consolação. Deus lhe pague, aí embaixo ou aqui em cima.

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