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domingo, 7 de junho de 2020

LOURENÇO GAIVOTA, MEU PACIENTE




I
- Dona Veridiana, tem certeza que o próximo paciente é mesmo o Lourenço Gaivota, o autor do livro "A Mágica Secreta"?
- Claro, ele acabou de preencher a ficha aqui comigo. E eu conheço o rosto dele, né? Tá todo dia aparecendo na televisão... Olha, eu estou falando com o senhor baixinho porque ele está aqui bem perto de mim. Pagou consulta particular, eu disse que só tinha encaixe e ele falou que tudo bem. Chegou aqui esbaforido, tá todo trêmulo.
- Nossa, surreal isso... eu arrumando um encaixe no meu reles consultório para o Lourenço Gaivota. Se contar ninguém acredita. 
- Posso mandar entrar?
- Deve. Mas espera um pouquinho aí, só o tempo de dar uma ajeitadinha básica no divã. É o Lourenço Gaivota, né? Deixa eu caprichar.




II
- É tudo da boca pra fora, só retórica e invencionice. E marketing, doses rinocerônticas de marketing. Eu falo para meus leitores as coisas que eu gostaria de escutar de alguém, compreende? Sou tão humano, fraco, carente e falível quanto qualquer outro filho de Deus.
- Meu mundo caiu! Para com isso, você tá de brincadeira. Você influencia meio mundo com seus cursos e palestras! Se você não é "o cara", ninguém mais é!!!
- Oi?
- Gaivota, tá vendo aquela pilha de livros ali ao lado do abajour? Você é o autor de todos eles. Eu ficava na fila da extinta Livraria Siciliano pra pegar os exemplares saídos do forno, não via a hora de devorar tudo o que você escrevia. Perdi a conta das noites de autógrafo, com filas dobrando o quarteirão, você ia assinando os livros sem nem olhar pra cara de ninguém.
- Nem pra sua, com certeza.
- Nem pra minha. Mas não estou me queixando, não. Eu sou um psicanalista como outro qualquer. Imagina que o guru do Roberto Shinyashiki e do Lair Ribeiro ia lá saber da minha existência. Mas vai em frente, continua.
- Então, tudo ia bem até um tempinho atrás, mas agora esse conflito, de ter inventado uma persona que eu não sou, não está me deixando mais nem sair de casa. Nem escovar os dentes. Nem olhar pra minha cara no espelho. Nem respirar direito. Nem...
- Calma, Lourenço. Aceita um chá de maracujá com antúrio?
- Imagina, não tomo essa merda nem sob tortura.
- Mas você aconselha este chá várias vezes ao dia nos seus livros...
- Procure escolher melhor as pessoas a quem você dá ouvidos, meu caro.
- Pois saiba, senhor Lourenço Gaivota, que pra mim funciona, tem profundos efeitos terapêuticos.
- Bom, se pra você funcionou... sorte sua. Atribua isso a um efeito placebo.
- Não é possível, isso não está aconteendo. O Lourenço Gaivota em pessoa tentando me convencer que Lourenço Gaivota, ou seja, ele próprio, é um farsante.
- Tudo o que eu fiz até agora é autoajuda barata, com fundamento científico zero. Digo mais, heim. E essa vai doer: a minha editora mantinha sob contrato pelo menos uns quatro ou cinco ghost-writers pra inventar aquela porcariada toda. Eles criavam tudo, faziam os powerpoints para as palestras, as "colinhas" que eu levava para os programas de TV. Você não tem noção do aparato fake a meu serviço.
- Bom, fake por fake, estamos quites.
- Oi?
- Está vendo algum diploma pendurado na parede?





Esta é uma obra de ficção.
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