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sábado, 10 de julho de 2010

REFÉNS


Poderia apertar aquele parafusinho minúsculo e a coisa voltaria a funcionar perfeitamente. Bastaria um quarto de volta em sentido horário, com uma chave philips e pronto. Problema de mau contato. Mas olhei pra cara da freguesa e vi que ela devia usar Lancôme da testa à unha do pé, e que só aquele solitário na mão direita valia mais que a minha oficina inteira. Então pintei a coisa bem preta para valorizar o serviço. Pelo menos três dias na bancada, para testes no voltímetro. Provavelmente era o diodo do transistor com o relê de amperagem em corrente descontínua, e pra trocar a pecinha só substituindo a placa toda – importada do Japão. Seria uma das hipóteses, mas para ter certeza, só abrindo tudo e aferindo cada um dos componentes na oficina.

- Olha, dona, por enquanto a senhora acerta comigo a visita técnica. Pode ficar tranquila que só toco o serviço com a aprovação do orçamento. Mas se for isso mesmo que estou pensando, melhor vender como sucata e comprar outro. Também não vale a pena levar à Autorizada, eles vão querer cobrar umas três vezes mais da senhora. Mas olha, pode ficar à vontade, pelo amor de Deus, não estou querendo forçar nada, faça como quiser...

Daí a três dias ela liga perguntando se o orçamento está pronto. Valorizo um pouco mais, digo que tenho que baixar o manual de especificações atualizadas do produto no site do fabricante e peço que ligue de novo depois de amanhã, mas que provavelmente é aquilo que lhe disse. Ela torna a ligar no sábado às nove, eu prometo para segunda. Na segunda eu confirmo a morte prematura de todo o circuito impresso. Ela vende para mim mesmo o aparelho ainda na caixa por R$14,50 e já pede que eu encomende um novo. Falo com aquele meu brother da Santa Ifigênia, e combinamos 350% em cima do preço de custo. A título de honorários. Aperto o parafuso da belezinha que me caiu no colo por R$14,50 e passo pra frente pelo preço do novo, para outro cliente.


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Está tudo esquematizado, Lontra. A gente começa falando em possibilidade de apendicite - pela alta ingestão de milho verde na véspera associada à estafa física causada por 16 voltas ininterruptas no pedalinho do lago municipal, conforme relatado pelo próprio paciente.

Mas vamos devagar para não assustar a família, até porque a gente sabe que o cara não tem nada. Se começar a meter muito medo, eles vão atrás de uma segunda opinião e aí a gente se encrenca.

Ratazana libera os trâmites necessários para os exames preliminares, os raios X e os laboratoriais de rotina. Esquema quinze/quinze/quinze pra cada um dos três, como acertado. Golfinho, homem de confiança do Pantera, coordena todo o processo de diagnóstico por imagem (lembrando que aí o esquema é sessenta/dez/dez/dez/dez e que é indispensável a rubrica do Potranca, para a perícia não pegar).

Daí pra frente a gente coloca o infeliz num tomógrafo e diz que o milho verde do quiosque reagiu quimicamente no duodeno e seus grãos transmutaram-se em quistos, um caso incomum mas não propriamente raro nos anais da medicina. Aí a gente diz que é necessária uma ressonância para sacramentar o diagnóstico. Como todos sabem, este exame ter de ser no cash. Mas tudo bem, sondei a ficha e vi que o infeliz é fazendeiro em Palmas. Quanto aos honorários fica 50% para mim e a outra metade para dividir com o zoológico, conforme organograma. Peço que o Avestruz envie cópia deste aos demais envolvidos, que deverão deletar esta mensagem assim que lida. Bom trabalho a todos.

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1 Comentários:

  • Marcelo!

    Excelente texto e atualíssimo!

    Somos reféns em qualquer lugar. Às vezes me pergunto quando e onde começou isto. Não era assim no tempo em que meu pai tinha farmácia. Meus valores são outros e repudio essa nova teoria de enganar e levar vantagem. Money and Kidnap.

    É preciso que haja uma revolução por baixo na cultura, nos valores. A televisão passa essa imagem, o que não acontece com os jornais. Leio o jornal e formo uma opinião baseada em meus princípios morais. A televisão hipnotiza e manipula opiniões em massa.

    Há cinco anos estou com diverticulite no duodeno. O meu clínico, quando diagnosticou, chorou. Passou para mim o exame, e disse: "faça o que for possível", mas não opere, nem permita que lhe operem, pois o óbito é imediato.

    Passo de médico em médico e uma opinião cirúrgica foi-me indicada. Logo depois veio uma ordem do hospital negando o procedimento, pois não poderia macular o nome do hospital que perde pontos dependendo do número de óbitos.

    Enfim continuo doente, perdi todos os meus empregos, e comecei a escrever. Sempre ao lado da cama, pois não posso ficar muito tempo sentada, nem em pé, nem deitada. A alimentação foi reduzida ao mínimo. E eu me pergunto: a medicina avançou mas não tem sucesso em coisas mínimas.

    Até quando seremos reféns: Quem levantará essa bandeira, se ninguém reage. às vezes penso que estamos como as vítimas do holocausto. Porque eles não reagiam, se eram em número muito maior. Não temos líderes. Não existe mais moral, e os valores são esses que você tão bem deixou explícito neste excelente artigo.

    Parabéns, Marcelo!

    Espero que o seu grito ecoe.

    Beijos

    Mirze

    Por Blogger Unknown, às 10 de julho de 2010 às 09:07  

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