ÊNIO
Arrimo
de família, o Ênio luta com dificuldade de dar pena. Esfola-se, o pobre, pra
conseguir levar pra casa um quilo de acém ou de fraldinha de quando em quando
pra misturar com a farofa. Mas nem sempre foi assim. Tempo houve em que o Ênio
era notório esbanjador em questões monetárias. Época das vacas gordas, no
funcionalismo público. E funcionalismo público, pelo menos naquele em que o
Ênio “funcionava”, sabe como é: querendo ou não, o sujeito vai sendo atingido
por promoções ao longo do tempo. Basta que não roube, não pegue dinheiro em
troca de favores ou não dê vazão aos apelos da carne no ambiente da repartição.
Eram os três únicos senões, mas ao terceiro o Ênio não resistiu - foi pego em
escancarada bolinação com uma colega de trabalho, na mesa do superior imediato.
É
bom que se diga que Ênio é apelido, ganho junto aos companheiros de bar. Antes
da sem-vergonhice fatídica, foram 20 anos de ênios e mais ênios no histórico de
bons serviços do camarada.
Explica-se:
num período de 10 anos, por exemplo, desde que não tenha faltas injustificadas,
o servidor empossado na mesma autarquia de Tarcísio Carlos (o verdadeiro nome
do Ênio) fará jus a um decênio, incorporado regular e vitaliciamente ao
salário. Só que um decênio traz com ele outros e numerosos ênios. Junto com o
prêmio pela década de assiduidade, terá acumulado também 2 quinquênios, 3
triênios, 5 biênios e 10 anuênios. Aos 20 anos de serviço a coisa melhora um
pouquinho: terá adicionado ao holerite um vintênio, dois decênios, 4
quinquênios, 6 triênios, 10 biênios e 20 anuênios. Uma verdadeira metralhadora
de estatal generosidade, disparando benesses em progressão geométrica.
Ênio
ria-se do apelido dado por seus amigos boêmios da iniciativa privada. E, se de
certa forma sentia-se culpado em acumular tantos ênios sem méritos que os
justificassem, também não se mexia para devolvê-los aos cofres públicos. Dessa
forma, um triênio aqui virava um fogão de seis bocas e acendimento automático
pra patroa; um deceniozinho ali virava intercâmbio no Marrocos para o seu
caçula, e assim por diante.
Planejava
gastar o vintênio recém-conquistado na compra de uma quitinete em bairro nobre
da cidade, para fazer neném mais confortavelmente com a colega de trabalho. O escandaloso
flagrante chegou para ruir o plano, mas não conseguiu derrubar o direito
adquirido. O reforço de caixa chegou, mas ao invés de quitinete virou reserva
financeira, que amenizou por algum tempo a nova e dura realidade do nosso
incauto amigo.
Hoje,
ele vive do milênio. Mais especificamente, trabalhando como lavador de calotas
no Lava Rápido Terceiro Milênio – de propriedade do Saulo, antigo colega do
Ênio, que soube juntar seus ênios sem meter a mão em cumbuca.
© Direitos Reservados
Marcelo Pirajá Sguassábia é
redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e
eletrônicas.
Blogs:
www.consoantesreticentes.blogspot.com
(contos e crônicas)
www.letraeme.blogspot.com
(portfólio)
Email: msguassabia@yahoo.com.br
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