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sábado, 15 de junho de 2013

DIVÃ NO DIVÃ



Foto: Google Imagens




- Sim, pode falar.

- Por onde eu começo?

- Escolha o começo que lhe parecer mais interessante.

- Eu sou da área. Diria que dificilmente um profissional pode estar 
mais ligado à seara freudiana do que eu.

- Não diga, é mesmo? Você é psicólogo, psicanalista, psicoterapeuta?

- Nada disso. Eu produzo divãs. Trabalho numa fábrica deles há mais 
de vinte anos. Este divã mesmo, fui eu que fiz. Conheço cada um dos 
meus divãs, centímetro por centímetro.

- Que peculiar. Jamais analisei um fabricante de divãs, e arrisco afirmar que 
essa é uma experiência única nos anais da psicologia.

- Neste divã aqui está escrito "Diva" em baixo relevo, próximo a um 
dos pés do móvel. É minha marca registrada de autoria. Basta levantar 
um pouco ele do chão que já dá pra ver.

- Por que você escreveu "Diva" e não "Divã"?

- Tenho trauma de tio. Não de til, de tio mesmo. Irmão do meu pai, no 
caso. Era pequeno e peguei ele na lavanderia de casa, um pouco mais 
próximo da minha mãe do que seria conveniente a um cunhado com bons 
modos e castas intenções.

- Fale-me mais sobre isso.

- Por favor, pulemos essa parte. Acho que hoje já estou razoavelmente 
bem resolvido em relação a esse episódio.

- Será?

- Ah, sim. Depois que mamãe se foi, passei a administrar melhor o 
trauma.

- E o meu é o primeiro divã em que você se deita ou já passou por 
outros?

- Já deitei essa velha carcaça em cima de milhares de outros. Fazendo 
os testes de controle de qualidade na fábrica e também fora dela, 
testando a qualidade dos analistas.

- E eu? Já tenho uma avaliação preliminar?

- Ainda é cedo. Mas tive ótimas referências suas.

- Você é telegráfico. Parece que vai ser difícil arrancar coisas um 
pouco mais subjetivas suas.

- Acertou em cheio. Sou mesmo muito assertivo no que digo e no que 
pretendo fazer. E em cinquenta minutos de consulta dá para resolver 
muita coisa. Quero dizer, algo de prático, e não ficar nesse blá-blá-
blá estéril.

- Por exemplo?

- Por exemplo, colocar os fantasmas para fora.

- Pois vamos a eles.

- O senhor me arruma uma faca?

- Faca?... serve esta?

- Serve sim.


(...)


- Espera um pouco, o que está fazendo? Para com isso, você está rasgando 
todo o divã...

- É só uma incisão, estou libertando os fantasmas. Estou soltando 
mamãe de sua longa prisão.

- Fique calmo, não me faça pedir ajuda.

- Vem, mamãe, vem... saudade, minha velha.

- Que horror, o que são esses ossos?

- Então, eu poderia explicar tudo direitinho, doutor. Mas acho que não precisa, concorda? Foram alguns anos procurando pelo número 
de série do divã até encontrar o dono, que o vendeu para outro 
analista, que o revendeu para o senhor...

- Não pode ser. Você acabou de falar que tinha superado o trauma.

- Eu precisava tranquilizá-lo para poder também ficar tranquilo e 
fazer o que precisava ser feito. Agora, se me permite, eu e mamãe temos pressa. Se quiser um divã novo, temos vários modelos para pronta entrega. Quer ficar com o meu cartão?


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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