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sábado, 17 de janeiro de 2009

EM BRANCO


Só sei dizer que a carta veio parar na minha mão sem remetente nem destinatário. Mas estava, que diabos, na minha caixa de correspondência. Abri e encontrei três folhas sem nada escrito. Dei de ombros: não sabia de quem vinha, também não era para mim, que importava? Poderia ser um código de alguém para outro alguém, uma senha que significasse alguma coisa que só a ambos faria sentido. Mas por que na minha porta, se não era eu nem uma nem a outra parte interessada? Outra hipótese seria uma espécie de intervenção urbana, obra de teor filosófico e performático de algum artista underground, querendo dizer que nem tudo tem de ser de alguém para alguém e com algum propósito específico. Um manifesto pelo resgate do nada às nossas vidas, nesse mundo over de informação. Passei cola novamente no envelope e coloquei a carta na primeira caixa de correio que vi na rua.


Ao trabalho, ao trabalho. Três reuniões naquele dia, duas delas sem previsão de término nem de conclusão prática. Quando Daniel explicava os dezesseis gráficos de pizza no flip-chart, Letícia adentrou à sala e me entregou um envelope, branco como a maior parte dos envelopes, mas de uma alvura já minha conhecida. Não havia dúvida: era a mesma carta. De novo. Reconheci pelos sinais da recolagem e pela re-absurda falta de remetente e destinatário. Como, de volta para mim? Eu lá tenho cara de posta restante dos Correios e Telégrafos?


Roí as unhas e parte dos dedos, ansioso para o fim da reunião. Parti como um raio à sala de Letícia, para saber quem tinha entregue a carta a ela. Foi embora mais cedo. Indisposição. Joguei a carta no lixo, mas antes marquei com a caneta um x no canto inferior direito do envelope, na parte do remetente. Assim poderia identificá-la irrefutavelmente, caso o milagre voltasse a ocorrer.


E ocorreu. Findo o expediente, no caminho para o estacionamento algo me chamou a atenção. Na vitrine da loja de departamentos, a TV transmitia ao vivo o sorteio de uma promoção qualquer. Uma loira de pernas de fora retirou uma carta da montanha. Lá estava ela. A câmera deu um zoom no pequeno x do canto do envelope, como se quisesse mostrar a mim, e só a mim, que a coisa era mesmo indestrutível. Vi a mulher lendo e os lábios se mexendo, anunciando o nome do contemplado ao lado do auditor do concurso. O ruído do trânsito não me deixou ouvir o nome que só eu desconhecia, o mistério que só a mim parecia ser mistério.


Um drink para arrumar as ideias e adivinhar uma lógica para aquilo. O garçom me trouxe, junto com o segundo uísque, um envelope que a pessoa da mesa oito pediu para me entregar. Olho para a mesa oito. Ninguém. Só a carta, a mesmíssima, de novo no meu colo. Ok, eu a levaria para casa. Não dava mais para fugir um do outro. Guardei-a com cuidado dentro da Bíblia, no hall de entrada do apartamento. A página com o Salmo 91 estava em branco, assim como as outras. Na estante, os demais livros todos em branco. A agenda, ao lado do telefone, em branco. Os álbuns de retrato em branco. A certidão de nascimento e a identidade em branco. Então olhei pela janela e vi o néon com o nome da companhia de seguros ficando ininteligível. Percebi que as coisas escritas se extinguiam, sem função. Até mesmo os nomes nas folhas de cheques e as marcas nas portas dos refrigeradores. Me ocorreu que Letícia poderia estar morta e eu não ficaria sabendo, pois no dia seguinte os jornais provavelmente não trariam obituários. Nem qualquer outra notícia.

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