.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

DEMASIADO HUMANO


Atlas levava o mundo nas costas, e eu inadvertidamente acabei me transformando na versão atualizada do personagem mitológico. A diferença é que Atlas não tinha cobrança, nem a mídia no encalço, nem uma crise que pegou o atlas – desta vez geográfico - inteiro no contrapé. Tudo bem, eu quis que fosse assim, eu escolhi esse objetivo e exauri as forças que tinha e as que não tinha para alcançá-lo. Fiz acordos, abri concessões, renunciei a mim para ser o que agora sou.


Como eu já imaginava, é mesmo muito solitário ser tão absurdamente poderoso. Solitário a ponto de você não se conceder o direito de pensar um pouquinho com seus botões sem que de imediato apareça um arsenal de costureiras para pregá-los.


A uma entidade messiânica como eu não se dá a prerrogativa de estar a sós com quem quer que seja, nem comigo mesmo. Esta é a questão, ou talvez a contradição: a solidão do poder é tamanha que não abre a possibilidade de se ficar sozinho, nem para ir ao banheiro. Você é isolado do cotidiano feito um vírus no laboratório, mas junto com 150 cientistas que não tiram o olho do tubo de ensaio.


Sou o ícone de uma sociedade que não admite que eu me socialize espontaneamente e seja simplesmente um homem de bem, vacinado, protestante e pagador dos meus impostos. Imagino que haja milhares de pessoas pelos quatro cantos do planeta rezando neste momento pelos meus futuros atos. Só eu não posso ter carne e osso e pedir por mim - alguém certamente estará na escuta, ainda que seja inaudível a prece.


Eu posso criar e destruir fronteiras com a mesma caneta que, se dependesse de mim, estaria agora fazendo palavras cruzadas, o jogo da velha ou qualquer outra bobagem que não me forçasse a mudar a vida de ninguém. Confesso que durante o pronunciamento de ontem, enquanto falava solene e pausadamente para a câmera, tinha a mão direita dentro da gaveta de minha mesa. Segurava firme a foto em que estou no colo de mamãe, era uma maneira de me sentir forte, como se o retrato fosse uma âncora a me salvaguardar no mar intempestivo.


Sou um emblema, um deus de ébano pretensamente redentor dos males da humanidade, e transformei a rotina anônima e sem ostentação de minha mulher e de minhas filhas no filé dos paparazzi. Abro meu laptop e tenho vontade de deletar sem ler, como se fosse spam, o mais recente relatório confidencial enviado pelo Secretário de Defesa.


Queria muito, como todo americano praticante de golfe e comedor de pasta de amendoim, jogar paciência durante o expediente sem ser visto pelo chefe. Pois juro, como jurei sobre a Bíblia outro dia, que meu sonho de supremo mandatário é ter um chefe a quem seja obrigado a prestar contas de meia em meia hora, que perca as estribeiras comigo, que me xingue de incompetente e corpo-mole, mas que pertença a uma instância superior à minha e me diga o que deve e o que não deve ser feito. Estar no topo do organograma pode muito bem ser pior que estar abaixo da linha de miséria. Náuseas de tudo e ânsia de ser Barack, e só Barack de novo.




© Direitos Reservados



0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home