.

sábado, 27 de março de 2010

QUEM FOI QUE NÃO


Quem foi que não teve, certo dia, uma certa tia de nome Ruth, Dirce ou Ester que fazia compota de goiaba como ninguém, e que vendia o muito que não consumia a 16 o quilo pela vizinhança? E quem foi que não teve, olhando a compota, a impressão de serem orelhas de anão em calda de açúcar ou céus da boca vítreos? Quem foi que não teve certo carro, de marca incerta com o passar dos anos, mas que levava todos a toda parte em tempo suficiente? E quem foi que não teve, dentro desse carro, o enjoo de criança no banco de trás, a caminho da montanha que no fim das contas não levava a nada que valesse a pena guardar na lembrança? Quem foi que não teve certa veia torta, que palpitava de nervoso no pescoço ao ver passar o amor eterno que durou dois meses e depois mudou-se sabe Deus pra onde? E quem foi que não teve, desse amor não consumado, o desejo que tivesse sido – ainda que sem jeito e no meio do mato? Quem foi que não teve certo desconforto de sentir-se ausente no meio da missa de sétimo dia do tio-avô do primo do amigo distante? E quem foi que não teve, no canto do ofertório, um olhar sacrílego e mal intencionado no decote enorme da filha da mãe daquela sirigaita? Quem foi que não teve certa calculadora, daquelas pesadas, que mal calculava a obsolescência que se aproximava? E quem foi que não teve, na soma de tudo, zeros à esquerda dos zeros à esquerda dos zeros à esquerda bem depois da vírgula? Quem foi que não teve certa camiseta, com emblema da escola, toda autografada com velhos amigos hoje desbotados? E quem foi que não teve, vestindo a camisa, uma vontade louca e irremediável de matar a aula, mesmo sendo a última de todas as aulas? Quem foi que não teve certo resfriado que cobriu de mantas, de caldos e pílulas seu impulso insano de ganhar o mundo pela cachoeira fria e cristalina por onde desciam nove mil canoas? E quem foi que não teve, estando gripado, o colo materno que jamais supunha o que se passava pelos seus miolos na febre que ardia? Pergunto: sim, quem foi que não?

© Direitos Reservados

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home