FAZENDANDO-SE
Ia abrindo a picada no facão. Pelo queimar do
sol, meio dia e meia, se tanto. No verde fechado luziu a chave, a dourada
chave-mestra dos lugares improváveis. Velha Dita benzedeira, dai-me caminho
bom. Pai do mato e das estrelas, daqui não tem retornar nem arrependimento de
ver coisas que não carecem ser vistas. Desse ponto por diante é por minha conta
e risco. Lembrava a mãe que dizia: "do mato guarde distância".
Limpou o achado no brim cáqui, e no retomar da
trilha um jacarandá dos baitas se fez porta à sua frente. Nessa hora virou
rosto, e dá-lhe Salve Rainha implorando proteção – o acorrido não era
acontecência cristã. Temor de obra do cão, vontade de colo quente.
A dobradiça rangeu, e foi sugado num tranco
para dentro da casa grande. Deu com a carcaça no gelo das pratarias, baixelas
da mesa posta para um jantar de calendário incerto. Botou reparo no pedaço de
varanda que se via da janela, e assim ficou tempo imenso até que um ruído de
saias o trouxe, em saltos mortais, às anáguas e espartilhos da sinhazinha que
ia entrando. E varava livremente as camadas todas de pano e de castidade, mas
num remorso de incesto que não cabia explicar. Uma ancestral de si, ali a pleno
frescor, quem não garante que era? Sinhazinha de respeito e jeitos misteriosos,
empunhando livro e leque, o olhar mirando o caminho da entrada da propriedade.
De novo o efeito centrífuga, sem chance de
escapatória. Foi sendo puxado de costas rumo ao carrilhão de mogno. Por entre
molas e engrenagens, laçou o ponteiro de minutos e ali ficou bem montado até
que o das horas viesse e o levasse são e salvo ao XII do mostrador. Um cheiro
de óleo de máquina se misturou ao de tinta, no instante em que se deu conta que
estava no quadro da sala, de moldura quebradiça, herança do engenho velho.
Retrato de gente austera, ele era o homem da tela, e em frente a ele outro
homem, paleta e pincel nas mãos, dava os últimos retoques. Um passo atrás para
olhar melhor o todo da obra acabada. Vira a cabeça pra um lado, vira a cabeça
pro outro. Falta um tonzinho de amarelo queimado na testa, acima dos cílios.
Agora sim, a assinatura. Nome e data sobre tela. Ali ficará, imóvel, pelos
séculos dos séculos, olhando quem se achegasse à sala da grande sede da Fazenda
Santa Lúcia.
© Direitos Reservados
Marcelo Pirajá Sguassábia é
redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e
eletrônicas.
Blog:
Email: msguassabia@yahoo.com.br
0 Comentários:
Postar um comentário
<< Home