ÚLTIMA VONTADE
- Como era
da vontade do senhor Arquibaldo Calixto, e passados 30 dias do seu sepultamento,
cabe-me agora abrir este envelope, à frente de todos da família, para
conhecermos o destino que se dará ao seu espólio. Posso começar?
- Corre
logo com isso, doutor, que eu já estou gastando por conta o que me é de
direito.
- Aos
dezoito dias do ano da graça de dois mil e ... bla, bla, bla, bla, bla, bla.
Ei, espera aí...
- O doutor
tá ficando verde, a mão tremendo... o que está escrito nesse negócio?
- Ele...
ele está dizendo aqui que deixou tudo... não é possível... deixou tudo para
mim! Lendo para vocês, textualmente: "Meus filhos e minha mulher não são
merecedores de consideração nem de coisa nenhuma, muito menos de herança".
Desculpem, não sou eu que estou dizendo, é o que está escrito aqui, o desejo do
falecido. Que situação, a minha. O envelope estava lacrado, vocês testemunharam
a abertura. Continuando: "O senhor Salustino, na qualidade de titular do
cartório da cidade, vem demonstrando, perante a lei de Deus e a dos homens, que
é um sujeito digno e de caráter incorruptível, qualidades que nenhum membro da
minha família possui". É constrangedor isso tudo, eu fico embaraçado...
- Continua,
doutor.
- Bom, o
texto avança e entra em pormenores que denigrem muito cada um de vocês. Acho
que não é o caso de prosseguir...
- Começou,
agora vai até o fim. Vamos ver até onde chegou aquele velhote filho de uma...
- Como
vocês sabem, pela lei, eu sou apenas um executor testamentário, legalmente
incumbido de fazer valer a vontade dos falecidos... Olha, eu posso ter recebido,
por este testamento, a herança. Mas também posso abrir mão dela em favor de
quem eu desejar. Menos da família Calixto, é claro, pois esta não foi a
designação do morto. Ai, que situação!
- Então, o
que o senhor pretende fazer?
- O que me
parece correto, num caso desses. Penso em transferir o que me cabe em favor da
Igreja, ou dos mais necessitados, alguma instituição de caridade. Não ficaria
bem eu aceitar toda essa fortuna, ainda que esteja no meu direito. Só fazendas,
são 16. Bom, vocês sabem tanto quanto eu o tamanho do legado.
- O senhor
doutor está é se fazendo de santinho. Decerto vai providenciar uma
triangulação, passando os bens para um orfanato, por exemplo. De comum acordo
com o mentor da entidade, depois de um tempo faz ele doar tudo para a amante
que certamente o velho tinha e não queria deixar no desamparo. Essa sacanagem
deve ter sido combinada "de boca" com o velho, antes dele bater as
botas. Essa é que é a verdade, não é? E o senhor doutor há de ficar com uma
parte boa da dinheirama, em troca do servicinho prestado...
- Não fosse
eu um homem justo e ponderado, já lhe teria arrebentado todos os dentes com
essa insinuação difamante.
- O senhor
não seria tão perverso. Além de me deixar sem um tostão, eu ainda ficaria
banguela. É ruim, heim.
- Em
respeito ao saudoso Arquibaldo, vou prosseguir a leitura. Bla, bla, bla... Ai,
meu Deus do céu, essa não!
- Fala,
desgraçado, que foi agora?
-
Continuando o que o finado determinou: "Isso tudo o que eu escrevi até
agora não vale nada. Sei que a leitura do testamento é presencial e em voz
alta. Se até este momento da leitura ninguém da minha maldita família
interromper para falar alguma coisa, minha herança será repartida, na forma da
lei, entre os herdeiros legítimos. Mas, se alguém questionou alguma coisa,
então o dono do cartório pode, de fato, ficar com tudo. E se assim for, que
faça bom proveito.
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