SÃO DEMAIS OS PERIGOS DO PASSADO
Desafinando
o coro dos saudosos, eu digo que nem tudo foi de se guardar em álbum
de retratos. Nem todos aqueles anos foram de coisas e gentes que
justificassem lugar nos quadrantes nobres da cachola, lá onde
a nostalgia fermenta, entorpece o senso prático e debilita a
saúde do indivíduo.
A
fila da vida anda. Aquela história de que “bom mesmo era no
meu tempo” é tudo chorumela de maricas, nhém-nhém-nhém
de quem não sabe enxergar o quanto ser astronauta é
melhor que ser troglodita.
Saudosismo
faz sentido se há do que sentir saudade. Mil vezes os racing
games dos PS4 que os insalubres carrinhos de tábuas de
caixote, rolemãs e pregos cheios de tétano. Esse
negócio todo é muito romântico e bucólico
até você imaginar o seu filho cercado desses perigos.
Sem o selo Abrinq. Sem o carimbo do Inmetro. Sem o aval da vigilância
sanitária e uma viatura do SAMU a postos em caso de
emergência.
Me
chegam pelo olfato umas coisas que não são de agora,
nem de Deus. Milho verde, mato depois da chuva, flor de laranjeira.
Se tudo isso fosse de Deus não vinha do mesmo lugar que a
esquistossomose, a Doença de Chagas, o amarelão, a
maleita, a dengue e suas variantes. Você pode achar divertido
empinar papagaio até que o seu menino enrosque a rabiola da
pandorga num fio de alta tensão. Ou que chamem você às
pressas para reconhecer a cabeça dele no IML - decapitada por
uma linha de cerol sem dono conhecido.
Melhor,
bem melhor é tocar a vidinha seguro e trancafiado no
condomínio. Aproveitar as tardes de sábado besuntando
álcool gel nas mãos, protegido por benditos e bem
erguidos muros com cerca elétrica. Da cidade pequena, lá
de onde eu vim (não espalhe), quero exorcizar suas esquinas
tacanhas, suas conversas de comadre, aquele sol que castiga o seu
coreto inútil, o sol que descora a cal dos postes, que mata
cozidas as lagartas nos quintais e não dá trégua
aos meninos que voltam famintos da escola às suas casas com
suspeitas de desidratação.
Aí
você me vem com “saudadinha” do velho que vendia raspadinha
na praça, que bom que era, etc. Mas aí eu lembro você
da água de torneira que ele devia usar pra fazer a barra de
gelo e dos coliformes fecais que muito provavelmente infestavam
aquele xarope de groselha - de procedência ignorada e lotes
não-rastreados. Meu Pai Amado, que perigo. Que perigo.
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