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sábado, 21 de agosto de 2010

A VELHA NÃO ERA DE SE JOGAR FORA



Ilustração: Marco Fraga


Assim que a velha teve o piripaque fatal que a levou dessa para outras e mais interessantes esferas, veio vindo à tona aquele amontoado de estranhas coisas, denunciando que a sua notória avareza era mais grave do que se supunha. Além do estrito controle com a economia doméstica, que a tornou folclórica na vila, descobriu-se que Dona Anacleta Miguelina Ribeiro não se desfazia de nada - ainda que esse nada fossem despojos, utensílios gastos e embalagens vazias.

Milhares de tubos de pasta de dente esvaziados até o último milímetro, encaracolados de tão retorcidos, como se uma morsa os tivesse espremido. Mechas de cabelo cortados – provavelmente todas as mechas de todas as vezes em que esteve no cabeleireiro, separadas em sacos de lixo de 120 litros e organizados por anos. Os cabelos ainda castanhos em 1939, grisalhos de 1961 a 1974, branco-lilases de tintura dos anos 80 em diante. Um pote de dois litros de sorvete Yopa guardava o que o esparadrapo na tampa identificava como “Unhas roídas”, enquanto um cartucho de Pringles continha as denominadas “Folhas secas de quaresmeiras, recolhidas próximas às mesmas no outono de 1978”. No criado-mudo, uma latinha oval de pastilhas para garganta há pelo menos sete décadas era o depósito dos dentes de leite e os do siso da recém-saudosa Anacleta, aquela que nada jogava fora. Nem mesmo conversa, pois era por natureza quase muda.

O que parecia ser um cubículo de despejo, abaixo da escadaria do casarão, estava abarrotado de zíperes emperrados, botões de camisa partidos ao meio, meias com furos nos calcanhares e algumas centenas de caroços de manga chupados. Palitos de dente usados jaziam simetricamente alinhados embaixo do divã da sala de estar. E havia mais, muito mais. Cotonetes melecados de cerume, depositados num baú de vime em meio a retrozes e agulhas de tricô. Tocos de vela aos montes, cordões umbilicais de todos os porcos paridos na propriedade, restos de sabonete, latas enferrujadas de ervilha e massa de tomate, canetas esferográficas secas de tinta e com as tampas mordidas. Seco também encontraram o poço artesiano, mas não vazio. Ali se amontoavam válvulas de rádio e lâmpadas queimadas, misturadas a maços de cigarro amassados – cujas marcas iam rejuvenescendo à medida em que se aproximavam da boca do poço – Fulgor, Chesterfield, Kent, Continental sem filtro, Minister, Hollywood, Free e Dunhill, pela ordem cronológica. Apontamentos encontrados numa gaveta da cômoda mostravam, dentre outras coisas, um duto de razoável diâmetro que ligava a fossa séptica da propriedade à horta, para que se aproveitasse o “conteúdo” como adubo para a alface tenra que servia à mesa.

Encontraram o corpo onde quase sempre se esparramava a maior parte do dia, a assistir televisão. Foi sentindo a vida esvaziar de si, sem revolta ou desespero, deixando apenas o invólucro seco e gasto. Mas antes rabiscou um bilhete, pedindo que não a jogassem fora no grande lixão dos mortos.

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1 Comentários:

  • Marcelo!

    É realmente impressionante e acredito seja pura ficção, jamais imaginada por grandes escritores e cineastas.
    Como seria o humor dela, e sua convivência familiar e social?

    Anacleta já vivia em um lixão, e no entanto pede para não a jogarem no grande lixão dos mortos, em seu último bilhete. O que me faz crer que ela tinha consciência sobre a representação do "lixo" propriamente dito. Claro que não se julgava um lixo, pois era vaidosa, pintava os cabelos e tinha hábitos de higiene que consta nos milhares de tubos de pastas de dente guardados e guardados com uma certa organização.

    A avareza é um desejo meio sórdido de acumular riquezas, mas acumular objetos já usados e gastos, incluindo mechas de cabelos e maços de cigarros, é um apego ao que foi vivido e já é passado. E se era hábito ver televisão, ela certamente dormia, pois parece que mesmo em novelas há personagens que chegam perto disto, mas outros o recriminam. Bem mas aí não se sabe o que ela assistia.

    "Apontamentos encontrados numa gaveta da cômoda mostravam, dentre outras coisas, um duto de razoável diâmetro que ligava a fossa séptica da propriedade à horta, para que se aproveitasse o “conteúdo” como adubo para a alface tenra que servia à mesa."

    Adubos de lixo e ainda faziam a alface ficar tenra. E não exalava nenhum cheiro que incomodasse? Se não pessoas, pelo menos os lixeiros? Ao que o texto indica, ela no entanto ia ao salão de beleza e tomava banho, enfim os hábitos de higiene eram mais ou menos normais.

    Incrível, mas me despertou um sentimento de solidão profundo. Apegar-se a estas coisas, e não viver a vida, nada jogar fora, como se o que ela já tivesse consumido e usado fossem sua única riqueza é um apego doentio de uma solidão ímpar.

    Enfim há pessoas que tem hábitos extravagantes e o esquisito e esdrúxulo compõem as diferenças entre os seres humanos.

    Fiquei com pena da Anacleta. Dentro de uma organização social, ela fez uma organização própria, que pelo menos rendeu um texto, mesmo que imaginário, mas um alerta.

    Nascemos nus , sós e sem nada. Assim também morreremos. Essa bagagem não condiz com o normal.

    A única "bagagem" que valorizo e acho que todos também, é a cultural. O que aprendemos e exercitamos, certamente não morrerá quando morrermos. Acho.

    Um texto bem diferente, mas curioso.

    Um forte abraço!

    Mirze

    Por Blogger Unknown, às 21 de agosto de 2010 às 03:33  

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