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sábado, 26 de abril de 2014

ASPONE É PARA OS FORTES





Se finjo estar trabalhando, a câmera flagra e meu superior imediato pode me cobrar explicações sobre o que estava fazendo -  já que ele, por ser meu chefe, certamente sabe que eu não deveria estar fazendo nada, pois fazer nada parece ser a ordem natural das coisas nesse lugar. Se assumo a inércia, deixo comprovado em vídeo que não tenho porque estar aqui, que sou dispensável e devo ser dispensado.

Tenho uma sala só minha, o que torna impossível uma análise de rotina dos colegas para determinar um padrão de comportamento. Não há comparativo, nem como saber se estou acima ou abaixo da curva média de produtividade.

A câmera de segurança está bem às minhas costas e grava ininterruptamente. Qualquer tentativa que faça de vandalismo ou destruição da lente será captada. Tento transmitir um bom-mocismo de fachada, a coluna ereta no encosto da cadeira, o “Fale com a gente” da empresa o tempo todo na tela, a mão no queixo e o ar de quem está intrigado em busca da solução de algum problema, de um improvável e redentor problema.

Simular conversas ao telefone também é expediente inútil. O controle de ligações descobriria que o meu ramal não tocou hoje, nem ontem, nem nas últimas semanas, nem nunca. Uma interessante saída seria o celular, mas levá-lo ao ouvido dezenas de vezes por dia denunciaria desvio de atenção às funções, falta grave e passível de advertência.

Entre fazer nada e fingir estar fazendo alguma coisa há um hiato tênue, e é aí que tenho que me equilibrar para tentar me segurar enquanto posso. Mas não é fácil. Parece-me infinitamente mais estressante manter-me neste vácuo do que trabalhar de estivador 16 horas por dia. O estivador não tem o que esconder nem disfarçar, só tem a estiva pela frente e câmera alguma por trás.

No começo, tentei ser pró-ativo. Quando assumi minhas funções (?), há 11 anos, sugeri um layout novo para as cartas do jogo de paciência, talvez com um background customizado e até um sonzinho, para quebrar a monotonia. Argumentei que os joguinhos padrão que vinham com o sistema operacional não tinham muito atrativo, e acabavam por dispersar o foco do colaborador e minar seu interesse pela rotina de trabalho. Dispunha-me a acionar o departamento de TI para encampar o projeto comigo. Estou esperando até agora pela resposta à minha sugestão.

Não há saída além de rezar ou praticar meditação, tomando cuidado para que o sono não tome conta e tombe involuntariamente a minha cabeça sobre o  teclado ou me arrume um fio de baba, fatalmente captado pela câmera.

O melhor a fazer é posicionar-me imóvel, sentado à frente do computador, de tal forma que a câmera não capte o que está na tela e nem consiga definir se estou ou não digitando algo. Essa imobilidade de corpo e mente resulta em completa exaustão ao fim das oito horas regulamentares. Deixo o trabalho trêmulo de dores em todas as juntas, com os nervos em frangalhos e a respiração suspensa, sem saber ao certo o que viram de mim e como avaliaram o que viram. Se me deram o flagra de fazer ou de não fazer aquilo que não tenho a menor ideia do que deva ou não ser feito. Que me salve uma justa e providencial licença médica, mas para consegui-la tenho que me queixar. E prefiro não correr o risco.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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