ASPONE É PARA OS FORTES
Se finjo estar
trabalhando, a câmera flagra e meu superior imediato pode me cobrar explicações
sobre o que estava fazendo - já que ele,
por ser meu chefe, certamente sabe que eu não deveria estar fazendo nada, pois
fazer nada parece ser a ordem natural das coisas nesse lugar. Se assumo a
inércia, deixo comprovado em vídeo que não tenho porque estar aqui, que sou
dispensável e devo ser dispensado.
Tenho uma sala só
minha, o que torna impossível uma análise de rotina dos colegas para determinar
um padrão de comportamento. Não há comparativo, nem como saber se estou acima
ou abaixo da curva média de produtividade.
A câmera de segurança
está bem às minhas costas e grava ininterruptamente. Qualquer tentativa que
faça de vandalismo ou destruição da lente será captada. Tento transmitir um
bom-mocismo de fachada, a coluna ereta no encosto da cadeira, o “Fale com a
gente” da empresa o tempo todo na tela, a mão no queixo e o ar de quem está
intrigado em busca da solução de algum problema, de um improvável e redentor
problema.
Simular conversas ao
telefone também é expediente inútil. O controle de ligações descobriria que o
meu ramal não tocou hoje, nem ontem, nem nas últimas semanas, nem nunca. Uma
interessante saída seria o celular, mas levá-lo ao ouvido dezenas de vezes por dia
denunciaria desvio de atenção às funções, falta grave e passível de
advertência.
Entre fazer nada e
fingir estar fazendo alguma coisa há um hiato tênue, e é aí que tenho que me
equilibrar para tentar me segurar enquanto posso. Mas não é fácil. Parece-me
infinitamente mais estressante manter-me neste vácuo do que trabalhar de
estivador 16 horas por dia. O estivador não tem o que esconder nem disfarçar,
só tem a estiva pela frente e câmera alguma por trás.
No começo, tentei ser
pró-ativo. Quando assumi minhas funções (?), há 11 anos, sugeri um layout novo
para as cartas do jogo de paciência, talvez com um background customizado e até
um sonzinho, para quebrar a monotonia. Argumentei que os joguinhos padrão que
vinham com o sistema operacional não tinham muito atrativo, e acabavam por
dispersar o foco do colaborador e minar seu interesse pela rotina de trabalho.
Dispunha-me a acionar o departamento de TI para encampar o projeto comigo.
Estou esperando até agora pela resposta à minha sugestão.
Não há saída além de
rezar ou praticar meditação, tomando cuidado para que o sono não tome conta e
tombe involuntariamente a minha cabeça sobre o teclado ou me arrume um fio de baba,
fatalmente captado pela câmera.
O melhor a fazer é
posicionar-me imóvel, sentado à frente do computador, de tal forma que a câmera
não capte o que está na tela e nem consiga definir se estou ou não digitando
algo. Essa imobilidade de corpo e mente resulta em completa exaustão ao fim das
oito horas regulamentares. Deixo o trabalho trêmulo de dores em todas as
juntas, com os nervos em frangalhos e a respiração suspensa, sem saber ao certo
o que viram de mim e como avaliaram o que viram. Se me deram o flagra de fazer
ou de não fazer aquilo que não tenho a menor ideia do que deva ou não ser feito.
Que me salve uma justa e providencial licença médica, mas para consegui-la
tenho que me queixar. E prefiro não correr o risco.
© Direitos Reservados
Marcelo Pirajá Sguassábia é
redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e
eletrônicas.
Blog:
Email: msguassabia@yahoo.com.br
0 Comentários:
Postar um comentário
<< Home