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sexta-feira, 1 de março de 2013






Parcela do IPVA, água, luz, telefone, escola.
Podia muito bem pagar por internet, caixa eletrônico, débito automático. Mas não confiava em nada disso, gostava mesmo da autenticação mecânica. Ali, preto no branco. Vai que amanhã dá pau geral no sistema, como provar que tá pago?

Pra falar a verdade, nem queria que a fila andasse. Tinha hora no dentista daí a 40 minutos. E sair de um suplício para outro era demais. Um sacrifício pede recompensa, e não mais sacrifício. Boca aberta ao torturante motorzinho, boquiaberto com o buraco no orçamento. Não, não. Ligaria pro consultório, desmarcando.

O saco sem fundo de trabalhar pra ganhar, ganhar pra pagar as contas, pagar as contas pra continuar na estatística dos economicamente ativos. E assim sucessivamente – do mesmo jeito será com seu filho e destino igual terá seu neto, se até lá esse mundinho não explodir numa hecatombe.

Ontem tinha ido almoçar com a Débora. Como sabia esnobá-lo, a cachorra. Ô Débora desalmada. Deixa estar que ainda me vingo, ele pensou. E a vingança veio a cavalo, naquele safado PF de padaria. Arroz, feijão, batata souté, salada de tomate e... rúcula.

Sentados à mesa, ela aciona o seu mais radiante sorriso em direção ao carinha da mesa ao lado. Foi quando se deu o desastre: aquele tiquinho de rúcula entre os alvíssimos incisivos. Quanto mais metida e insinuante a darling se mostrava, mais a verdura tornava bizarra aquela diva de subúrbio. Era nojento, constrangedor, hilariante. E a Deborazinha se achando.
Ele regozijava-se intimamente com aqueles míseros milímetros quadrados de rúcula, cujo poder de destruição ecoava por toda a Panificadora Doce Mel.

Contou: 28 à sua frente, sendo 7 office-boys. Aquelas caras de segunda-feira, mesmo sendo uma quinta que anuncia a sexta que traria o redentor fim de semana.

Se estudasse direitinho não estaria ali e não seria o que era. Esse ser de cera, dez horas por dia com o traseiro soldado a uma poltrona de escritório sem apoio para os braços. Essa previdente figura que não sai de casa sem guarda-chuva e talões de zona azul.

A cordinha de nylon a balizar a fila. Em todas as filas, de todos os bancos, a mesma cordinha e o mesmo dim-dom anunciando o caixa livre. Um passo à frente.

Olhou para o cartaz, na parede próxima ao subgerente. Um casal, dois filhos e um cão de guarda simpático, todos transbordando de felicidade graças ao seguro de vida que, além de cobrir morte, invalidez permanente e renda cessante, ainda oferece sorteios mensais de casas, carros e notebooks.

De novo a imagem da Débora, com sua carruagem transformada em abóbora ao meio-dia. Foi-se o encanto, seu sapatinho de cristal virou pantufa de palhaço. A Débora a quem a rúcula tornou ridícula.

Dim-dom. Chegou sua vez.
Olha no crachá da moça: outra Débora. Ela diz “pois não” sorrindo. E sem rúcula nos dentes.




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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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