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domingo, 23 de agosto de 2020

DA SÉRIE PARANOIAS PANDÊMICAS 3 - KINDLE COMO PANO DE FUNDO

 



É a unanimidade pandêmica por excelência, como pano de fundo das lives de jornalistas, escritores, políticos, infectologistas e congêneres: a estante de livros, repleta de volumes os mais variados e organizados por ordem alfabética, cor da capa, gênero, assunto ou autor. Em alguns casos, de propósito, são dispostos sem separação alguma, resultando em uma espécie "casualidade" meticulosamente estudada por decoradores, para conferir um ar blasé ou de robusta cultura geral. Uma coisa meio "bagunça organizada", dando a entender que o proprietário da biblioteca é de fato um devorador dos próprios alfarrábios.



Personal stylists (ou personal cults, melhor dizendo) de todos os naipes e orçamentos divergem quanto a escolher livros que escancarem os títulos nas lombadas ou optar por um toque mais discreto e até misterioso, com capas mais clássicas, puídas e cheias de arabescos, sem os títulos estampados. E dá-lhe garimpos incansáveis nos sebos para comprar metros e metros de livros que ostentem tais lombadas, independente do que tenham dentro.



Só que é tanto disso, a toda hora e em todas as telas, que o background ficou velho. Virou paisagem, cansou como cansados estamos dessa pandemia interminável.



Agora, tudo indica que atingimos o platô da neurose intelectualoide, elevando a coisa à enésima potência do minimalismo: as toneladas de livros começam a ser substituídas por três ou quatro kindles, escorados por aqueles elefantinhos de granito ou mármore, que serviam de aparadores dos então livros de papel - que já cansaram a beleza.



Que evolução, gente! Para se ter uma ideia, um Kindle Oasis de 32 GB tem armazenamento suficiente para encurralar um mínimo de 16.000 e-books, em meros 224 centímetros quadrados (16x14). Isso, em volumes analógicos, daria quase a metade da antiga biblioteca do José Mindlin, o maior bibliófilo desta inculta Terra Brasilis.



Aí, para não perder a pose e reverter o aparente miserê bibliográfico às suas costas, o dono da live saca displicentemente, sem tirar os olhos da câmera, um dos três kindles que "lotam" a sua estante, e cita uma frase de Nietzsche para encerrar sua transmissão. Chic. Ponto para o personal cult.









Esta é uma obra de ficção.

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Foto: https://blog.gdeltproject.org/imagery-of-bookcases-are-soaring-on-cnn-during-covid-19-as-interviewees-call-in-from-home/



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