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quinta-feira, 20 de maio de 2021

TRANSPLANTE DE CORPO

 


Antropotectomia. A expressão foi cunhada originalmente pelo venerável e nunca suficientemente louvado Mestre Duña, em um de seus incontáveis rompantes proféticos. À época - e lá se vão quinze anos - , este nosso manancial inesgotável de sabedoria fazia sua costumeira preleção dominical às margens do Rio Jaguari.



Dizia o Iluminado, naqueles saudosos tempos: "Estando preservado o cérebro e os contornos básicos da face do paciente, já que são estes os diferenciadores fisiológicos que determinam se uma pessoa é de fato ela mesma, tudo o mais pode ser descartado e reinserido. E em uma única cirurgia, com duração estimada de duas semanas, computados aí os dias úteis e os inúteis".



O problema é que o assunto dá margem a polêmicas discussões filosóficas, éticas e religiosas. Por exemplo, aqueles que acreditam que o coração, além de bombear sangue, é também o centro da bondade e da maldade, irão reprovar a substituição do órgão. Porém, mais uma vez citando Duña, o bem-aventurado, antropotectomia que exclua o coração não é antropotectomia na acepção plena da palavra.



Uma outra parte da comunidade médica poderá ainda contestar a viabilidade prática desta múltipla intervenção, argumentando que o defunto doador precisará falecer gozando de saúde perfeita, para que o aproveitamento da carcaça seja de 100%. Ocorre que uma pessoa tão saudável assim não morre sem mais nem menos, a não ser em casos de morte matada ou acidente. E, em tais circunstâncias, o estrago à carcaça costuma ser grande.



Já outros medalhões da medicina afirmam que seria muito mais fácil fazer o caminho inverso. Ao invés de tirar tudo do morto e passar para o vivo com o organismo todo comprometido, seria muito mais fácil extrair o cérebro e o coração do vivente e inseri-los no defunto, provocando no mesmo uma reanimação com choques elétricos de alta voltagem.



Obviamente que um procedimento tão complexo irá custar dos olhos da cara. E, na eventualidade do paciente ser um "unha de fome", é recomendável a extirpação das mesmas, tanto das mãos quanto dos pés, antes de apresentar a conta do hospital.







Esta é uma obra de ficção.

© Direitos Reservados



segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

DA SÉRIE PARANOIAS PANDÊMICAS - A IMUNIZAÇÃO

 


Para começo de conversa, quero deixar bem claro aos senhores: a vacina boa aplicaremos em nós mesmos, digníssimos membros pertencentes à bancada. Depois, imunizaremos nossos familiares os correligionários, os cabos eleitorais e aqueles eleitores de nossas bases que sejam formadores de opinião, ou, como se diz hoje, influenciadores.



Os frascos vazios nós encheremos de água e aplicaremos no povaréu. Aí está o pulo do gato. Antes deixaremos bem claro para a opinião pública que compramos toda a produção da vacina daquele governador lá. Aquele, o inominável, compreendem?



Nesse meio tempo, a nossa central produtora de fakes espalha o boato de que fomos obrigados a comprar a vacina com superfaturamento, caso contrário não nos venderiam. Isso já vai ser um escândalo para o governador inominável, diremos que aceitamos o sobrepreço para que a população não morresse. Com isso, esquentamos uma boa grana, saímos da história como salvadores da Pátria e sujamos para os opositores.



A população, supondo-se imunizada, vai aglomerar muito. Vai aglomerar com gosto, para tirar o atraso. Acontece que, como teremos aplicado injeções de água, vai morrer gente adoidado. E colocaremos a culpa no governador inominável – afirmando que estávamos certos quando dizíamos, há muitos meses, que a vacina dele não prestava, mas que tivemos que comprar por ser a única disponível em quantidade suficiente. Sairemos do episódio como vítimas do calça justa, que cairá em desgraça.



Em seguida, entramos no Congresso com um pedido de verba suplementar emergencial para adquirir uma outra vacina no mercado internacional, que realmente funcione. Como vai funcionar, pois desta vez aplicaremos a vacina de verdade, nosso capetão será glorificado e louvado do Oiapoque ao Chuí. Enquanto isso o inominável pouco a pouco se tornará uma vaga lembrança, um capítulo negro e esquecível na história deste país.







Esta é uma obra de ficção.

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sábado, 23 de janeiro de 2021

ENCONTRO DOS BRAÇOS FORTES

 



- Sinceramente, não consigo entender como nos confundem. Sou loiro, minhas roupas de astronauta são claras como uma lua cheia. Você é negro e geralmente está de terno escuro. Precisa estar muito cego ou ter tomado todas, em algum jazz club de New Orleans, pra confundir a gente.

- A confusão é por conta do "Armstrong". Com exceção da origem norte-americana, nós não poderíamos ser mais diferentes.

- Literalmente, Armstrong quer dizer "braço forte". Isso explica muita coisa, meu caro. Inclusive o fato de ter fincado tão firme a bandeira americana lá no solo lunar. Que momento mágico, que orgulho...

- Ouvi falar que está lá até hoje.

- É. Mas quando é hoje, heim? Há quanto tempo estamos aqui, vagando por estas plagas celestes? Acho que você morreu alguns anos antes de mim, Louis.

- Foi. Agora, cá pra nós: nessas cápsulas do tempo que - comenta-se - a Nasa andou mandando pro espaço, cheias de coisas geniais criadas pelo homem, tem alguma gravação minha? Não me deixaram de fora, né?

- Não sei te dizer, Louis. Até porque essa missão não foi minha. O que eu sei é o que todo mundo sabe. Essas fotos, discos, objetos, filmes, utensílios são itens que, se algum extraterrestre achar um dia, vai saber o que de melhor fizemos durante um certo tempo.

- Diz pra mim, quando você estava lá na lua, admirando a Terra azulzinha, não deu vontade de cantar aquela canção que eu gravei, "What a wonderful world"?

- Até cantaria, Louis. É tão linda, né? O momento era bem propício, mas acho que em 1969 você ainda não tinha gravado esta música.

- Tinha sim. O disco é de 1968.

- Tá certo. Ô xará, posso te pedir uma coisa?

- Fala, Neil.

- Toca aí "Fly me to the moon"... pra lembrar dos velhos tempos.



Esta é uma obra de ficção.

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domingo, 13 de dezembro de 2020

REVIRANDO PAPÉIS, BANHAS E TRANQUEIRAS

 





O Papel, de perfil, juro mesmo: era invisível. Definitivamente, o menino não era chamado pra formar barreira em cobrança de falta.



A poucas casas do Papel, do lado direito de quem subia a Rua Prudente de Moraes, morava o Meio. Ou melhor, o Meio Quilo, antes que a molecada abreviasse o apelido. Como dá pra deduzir, o Meio poderia ter tudo, menos obesidade mórbida.



No extremo oposto do bullying mirim, tínhamos o Banha e o Quilão, sendo que este último chamava-se Aquiles, o que dava ao apelido ainda mais propriedade. Para contextualizar os tipos físicos sem ofender, digamos que ambos pagariam por dois ou mais assentos em um voo da classe econômica. O Banha era famoso pelas redondezas (sem trocadilho), em razão de sua imensa coleção de catecismos do Carlos Zéfiro, que circulavam por empréstimo e eram disputados a tapa naqueles idos de 74, 75.



Não muito longe dali morava o Zé Muié, menino já com seus quatorze anos e cuja munheca era um pouco menos rígida que o da maioria dos machinhos da turma.



Eu mesmo já fui o Pantera, por obra e graça de uma camiseta com a figura da Pantera cor-de-rosa. Meu irmão, dois anos mais novo, virou o Panterinha pois tinha uma camiseta igual. Isso alguns anos antes de virar Lagartixa, sabe Deus por quê.



Beirando o escatológico, impossível não lembrar (sem muita saudade, evidentemente) do bom e velho Ranho. Não pela pessoa em si, mas certamente pelo que lhe escorria pelo nariz 24 horas por dia.



Finalizo com o Tranqueira, que por inspiração ou não do apelido acabou enveredando pelo mundo do crime. Que suas condenações sejam leves, meu caro. Nada me tira da cabeça que, no fundo, no fundo, você parecia ser boa gente.











Esta é uma obra de ficção.

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segunda-feira, 30 de novembro de 2020

RAPID CHRISTMAS

 


Uma aceleradinha mais forte e eu não pegava o sinal fechado, e esse é de 60 segundos. Mas tudo bem, um minuto a mais ou a menos de atraso não é o que vai fazer diferença. Já devem ter ligado pra central do aplicativo reclamando da demora.



Haja máscara para ficar pondo, tirando e trocando nesse calor senegalês. Mas tudo bem, se na hora da entrega eu não tirar o capacete, tanto faz. Estão todos sempre com fome. Estão todos sempre com pressa. Querem se livrar rapidinho de mim, essa ameaça móvel de Covid-19. Fazem aquela cara de nojo na hora de digitar a senha na maquininha, um nojo que a máscara não disfarça. Não pegam nem o comprovante da operação, para evitar tocarem em algo mais vindo de mim. Já chega a encomenda, é o que devem pensar.



Chuva no lombo, mas tudo bem. Papai Noel costuma enfrentar neve. Tá suave na nave. O trenó tem rena, moto tem cavalo. Para de chorar de barriga cheia, olha no retrovisor e vê que tem gente pior que você. Agradecer sempre. Obrigado por mais um dia. Gratidão.



R$ 86,75 hoje. Vou pedir um franguinho assado, para o almoço do dia 25 não passar completamente em branco. O raio do sistema é tão bacana que é capaz de me acionar pra levar o frango a mim mesmo. Mas tudo bem, é o que chamam de magia do Natal. Algum colega conhecido vai aceitar a corrida. Quando der de cara comigo vai me chamar de folgado, mas tudo bem. Quero sentir o gostinho de receber ao invés de entregar, deve ser muito bom isso. E ai do motoqueiro se demorar muito.





Esta é uma obra de ficção.

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segunda-feira, 16 de novembro de 2020

BRAVO, MARICAS, BRAVO!!!

 


Força e gratidão aos abnegados maricas, estes heróis anônimos que bravamente perseveram no isolamento doméstico. Que insistem no despropósito de pensar no próximo e na saúde coletiva.

Bravo, maricas, bravo. Ainda que brucutus aparvalhados, com sua retórica de ocasião, desmereçam seu sacrifício logo ao romper da Alvorada, entrincheirados em cercadinhos a defecar nos microfones.

Ainda que inconsequentes sem máscara se aglomerem por raves, bailes funk, botecos, orlas e saldões de ovos de Páscoa. Conscientes do perigo, assassinos e ao mesmo tempo suicidas de caso pensado, espalhadores da praga e receptores do caos.

A vocês, maricas incorrigivelmente desmunhecados, a ordem do mérito por bravura. Por aceitarem o sacrifício do campo de concentração para que napoleões de hospício saiam por aí de arminha em punho, atirando a esmo e à toa com sua pólvora de chabu.

Esta é uma obra de ficção.

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Imagem: <a href=”https://br.freepik.com/fotos/medico”>Médico foto criado por freepik – br.freepik.com</a>


domingo, 1 de novembro de 2020

JOHNNIE E A MOÇA

 



- Boa noite, moça.

- Oi, fortão. Até que enfim este elegante e bem apessoado cavalheiro me dirige a palavra.

- Achei que você não ia querer saber de conversa comigo.

- Um tipão como você com autoestima tão baixa, que desperdício! Quantas moças como eu não dariam cada gota de suas latas para uma chance com você, seu lindo. Só no Atacadão que tem aqui perto são mais de três mil e duzentas.

- Vem sempre aqui no bar?

- Ultimamente não tenho saído da prateleira, assim como você. Com essa pandemia que não acaba nunca, não creio que a gente saia daqui tão cedo, Johnnie.

- Eu ia me apresentar. Como sabe meu nome?

- Tá escrito no rótulo, né? Não sou analfabeta. Já eu sou moça, e é o que basta, moça simplesmente. Não tenho nome, não. Já pensou se tivessem que batizar cada uma de nós?

- Se for por esta lógica, eu tenho milhões de homônimos pelo mundo. Alguns cheinhos, sendo transportados em navios e aviões cargueiros, muitos falsificados, outros pela metade e a maioria no berro. Mas, vamos direto ao ponto: de zero a dez, qual a chance da gente se misturar gostoso naquela coqueteleira ali?

- Eu diria nove. Mas com tão pouca gente no bar, esse mexe-mexe é bem improvável... Na qualidade de moça, eu entro em alguns coquetéis, não vou mentir pra você. Mas sou mais requisitada na mistura com cachaça, vodka, licor de cacau ou conhaque, pra fazer "meia de seda". Uísque geralmente tá fora da receita. Pena, viu.

- Vem cá!

- Vem você... não é você o "walker", o caminhante? Pois mostre que, além de elegante e bonitão, é também um cara gentil. Larga este rótulo quadradinho e vem aqui rodear as minha redondezas. Estou louquinha por um assédio, sabia?











Esta é uma obra de ficção.

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