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sábado, 26 de novembro de 2011

SUBTRAÍDO DA MULTIPLICAÇÃO


Imagem: Thiago Cayres
Esteve a bem dizer na multiplicação dos pães e dos peixes, aquela dos evangelhos, mas nem por isso saiu com a fome morta. Chegou segundos depois, e do milagre do Messias viu farelos e mais nada. Acabaram com tudo, pensou, comeram a não poder mais e nem um bocado restou ao meu estômago nas costas. Quis mesmo o filho do Criador que fosse assim? E se sim, por que comigo e não com outro? Clamava alento e pena da multidão saciada, que não o via, que já na sesta se estirava digerindo seu fastio, que não conhecia e nem soubera esperar por ele - um parente distante de Zebedeu. Era aquele que teve o azar de chegar depois da fartura que o Salvador fez servir. Assim refletia, quando sentiu a pontada no pé - espinha de peixe esquecida pelos famintos da hora. Santo sou eu que não como, e que do peixe só levo a dor deste machucado – desabafou, erguendo as mãos para o céu. E seguiu caminhando por meses, devagar e meio manco, até que encontrou as botas que Judas havia perdido.






© Direitos Reservados

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

OPERAÇÃO PAÇOCA




Imagem: Thiago Cayres

Conforme noticiado em primeira mão pelo site mexeriqueiros.com, o cantor e compositor Evandro Vil foi detido na tarde de ontem, após procedimento de busca e apreensão de paçoca em seu apartamento de cobertura.



Pioneiro e expoente do movimento Rustic Music, com proposta estética baseada em uivos e gritos primais, Evandro Vil a princípio negou qualquer envolvimento com a droga encontrada, afirmando tratar-se de armação para incriminá-lo. Entretanto, no decorrer do interrogatório, o astro acabou por confessar o delito, com a ressalva de que a paçoca destinava-se exclusivamente ao consumo próprio.


Cabe lembrar ao leitor que, pelas leis do país, a posse, o consumo e o refino de paçoca constituem crimes inafiançáveis, qualquer que seja a quantidade e a forma de processamento - em pó, no formato "rolha" ou prensada. Alguns países fronteiriços com a República do Congo toleram o consumo em porções de até 2,5g para alívio de pacientes terminais, com histórico de prisão de ventre comprovado por atestado médico.


Foram apreendidos três pacotes fechados e um começado de 1kg cada, divididos em tabletes individuais de 3cm x 5,5cm. O fato de os fardos confiscados serem prensados leva à óbvia dedução de tráfico - a exemplo dos quadradinhos de haxixe e de Cannabis sativa comercializados pelas quadrilhas de entorpecentes.


A substância ilegal estava acondicionada em compartimento blindado, camuflado atrás dos discos de ouro conquistados pelos CDs "Sou mesmo rústico" e "Rústico Acústico". Corre no meio artístico a informação de que o bolachão de vinil de "Sou mesmo rústico" contém, quando girado ao contrário, mensagens subliminares que fazem a apologia do consumo de amendoim.


Fontes ligadas à delegacia de narcóticos afirmaram que o generoso lote de paçocas vinha sendo há algumas semanas rastreado pela alta inteligência da PF, tendo desaparecido na última quinta-feira no chamado triângulo das bermudas - região da Rua 25 de Março formada pelas lojas "Ao Bermudão Elegante", "Bermuda'style" e "Samba-Canção & Cia". Ainda segundo os investigadores, o carregamento seria dividido em pequenos lotes, colocados nos bolsos das vestimentas e dali distribuídos Brasil afora.


O advogado de defesa de Evandro Vil argumenta que uma celebridade da estatura de seu cliente jamais atuaria no prosaico e pouco rentável tráfico de paçoquinhas. E que, se fizesse da contravenção o seu negócio, optaria por drogas mais pesadas e sofisticadas como a amêndoa, a castanha-do-pará e a macadâmia. Informou ainda que pelo menos 2 dos 3 kg da paçoca interceptada seriam destinados a rituais da recém-fundada seita "AMÉM DO-IN", que agrega alguns dos dogmas do cristianismo à milenar prática oriental.


Contradizendo esta versão, a PF declarou que junto às paçocas foram encontrados dezenas de maços de notas de 1 e 2 reais, o que é um forte indício da venda a varejo do alucinógeno na própria casa do artista. E faz um alerta à população em geral para que se afaste de guloseimas de origem duvidosa e batizadas com nomes inocentes e insuspeitos, como "Madre Úrsula", "Nana Nenê" e “Sacizinho”.










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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.



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http://www.consoantesreticentes.blogspot.com/  (contos e crônicas)


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sábado, 12 de novembro de 2011

VIU UMA, VIU TODAS - PARTE 2





Receita culinária na TV é aquele arroz e feijão básico, sem tempero e requentado. Experimente um pedacinho:


I


- Eu vou desprezar as pontas, porque no caso só nos interessa o miolinho. E sem as sementes, lógico, pra não azedar na hora do cozimento. Isso, pronto... olha só que maravilha. Uma dica: não joga os talinhos no lixo, não. Isso aqui dá uma sopa espetacular e muito nutritiva, rica em vitamina C. É como eu sempre digo - na cozinha nada se perde, tudo se aproveita.


II


- Agora os ovos. São quatro mas nós precisamos só das gemas, então presta atenção como é fácil separar das claras. Ô câmera, chega mais perto pro nosso telespectador ver como é que faz...
Bom, enquanto a nossa cebola vai dourando com o alho e o azeite, nesta outra panela a gente já pode começar a preparar o molho de anchovas. Lembrando que o creme de leite, já sabem: só fresco.
Aí você me pergunta: posso substituir a sobrecoxa pelo peito? Pode, aí fica a seu gosto. Porque afinal culinária também é invenção, cada um dá o seu toque. Vamos aproveitar pra repetir a receita, mas você também nem precisa anotar nada agora, tá tudo lá no site do programa.


III


- Gente, pena que televisão não tem cheiro, porque o aroma aqui tá uma coisa de louco. O pessoal da produção tá com água na boca, todo mundo doido pra cair matando na comida quando terminar o programa.


IV


- Televisão é tempo, pessoal. Então faz de conta que já se passaram quarenta e cinco minutos com o forno a 180 graus e tchan tchan tchan tchan... dá só uma olhada que coisa mais linda. Daí é só juntar o molho branco de anchovas e decorar com esses raminhos de alecrim. Comida a gente também come com os olhos, então é muito importante a apresentação, o aspecto do prato na hora de ir pra mesa.
Minha nossa, deve estar ruim isso, heim? Vamos fazer o sacrifício de experimentar um pedaço só pra matar de inveja você que tá aí em casa.


Huuuummmmmm!!! (girando a cabeça pra cima, fechando os olhos e lambendo os beiços)


Huuuuuummmmm!!! (expressão de orgasmos múltiplos)


Huuuuummmmmm!!! (Chef quase cai de costas, depois fica com cara de quem está tentando verbalizar o gosto que está sentindo)
Meu Deus do céu, coisa de louco. Agradecemos a sua audiência e até a próxima quinta com mais uma receita de dar água na boca!


V - Enfim, o acaso acrescenta um ingrediente novo.


Close no prato pronto encerra a transmissão. Na tela sobem os créditos do programa, mas a equipe técnica esqueceu de colocar a trilha de encerramento. Ou seja, o sinal de áudio no estúdio permaneceu aberto e o programa é ao vivo).


Voz do Chef em off:


- Porra, Denilson, da próxima vez vê se espirra um pouco mais de laquê na gororoba, pra dar mais brilho. Olha só como ficou sem graça esta merda!!! Caramba, quantas vezes vou ter que falar? Bom, cês limpam a bagunça aí que eu tenho que ir embora pro meu restaurante. Sim, porque se depender da merreca que os caras me pagam aqui eu acabo morrendo de fome, tá certo?




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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.


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sábado, 5 de novembro de 2011

VIU UMA, VIU TODAS




Com raríssimas variações, entrevista de ator em talk-show é sempre a mesma coisa. Ainda que pegue a conversa já começada, dá pra entender tudo. Inclusive que ela é exatamente igual às outras.







(pergunta óbvia do apresentador)






Bom, acontece que eu estava de férias em Nova York, como eu faço todo ano, quando eu vi a peça em cartaz na Broadway. Me apaixonei de cara pelo texto e voltei pra rever o espetáculo umas oito vezes. Quando eu regressei pro Brasil, ainda no aeroporto eu liguei para o (Diretor consagrado), convidando pra fazer a direção. Pra minha surpresa ele também conhecia o texto e topou na hora.






(pergunta óbvia do apresentador)






Ah, tem o talento mas também vale a sorte, viu. Tipo estar na hora certa no lugar certo e ao lado das pessoas certas. Aí a carreira anda sozinha, uma coisa vai puxando a outra. Pelo menos comigo, a ida pra televisão foi bem por acaso mesmo, quando o Daniel Filho apareceu num ensaio que estava fazendo pra uma peça do Guarnieri. Assim que acabou o ensaio, ele foi até o camarim e me fez o convite pra substituir o (Ator Consagrado), que estava com amigdalite e teve que se afastar das gravações. Hoje muita gente comenta que não conseguiria imaginar outro ator fazendo aquele personagem...






(pergunta óbvia do apresentador)






São linguagens completamente diferentes. A minha formação você sabe que vem toda do teatro. Fiz a Escola de Arte Dramática, o Tablado com a Maria Clara Machado e trabalhei um tempo com o Abujamra e o Zé Celso, grande Zé Celso do Oficina. O teatro é aquela coisa cara a cara, tem o improviso, um dia nunca é igual ao outro. Televisão é linha de produção, a interpretação é mais contida, a impostação de voz é diferente, a câmera e o microfone pertinho. E conforme se comporta a audiência a história vai mudando. É uma indústria, né, a gente tem que acatar as regras do jogo.






(pergunta óbvia do apresentador)






Eu acho assim, é uma troca, entendeu? A gente manda energia pro público e recebe energia de volta. É uma troca mesmo. No caso da comédia, tem o "timing", você tem que ter o tempo certo da piada, e isso depende também muito do humor da plateia naquele dia. Você sobe no palco e já sente - hoje vai rolar legal, o público tá mais receptivo, ou não... é mais ou menos por aí.






(pergunta óbvia do apresentador)






Tem uma hora em que você não consegue mais se livrar do papel, e incorpora o personagem na sua vida mesmo. Você quer matá-lo mas ele já ganhou vida própria, é mais forte que você. E aí você se pega na sua casa agindo como o personagem, falando como ele, pensando como ele. É muito louco esse processo. Precisei de uns anos de análise até aprender a lidar melhor com isso.






(pergunta óbvia do apresentador)






Depois da temporada eu pretendo dar um tempo, ficar com a família, viajar um pouco. Já tenho dois convites pra novela, mas por enquanto eu ainda estou analisando.






(despedida óbvia do apresentador)






Imagina, o prazer foi meu em estar aqui com você e com esta plateia maravilhosa. Mas, antes de ir embora, se você me der licença eu queria citar os patrocinadores da peça, tudo bem? Você sabe, mesmo com a lei Rouanet, não é nada fácil nesse país encontrar empresas que prestigiem e apoiem a nossa cultura.






(pergunta óbvia do apresentador)






De quarta a sábado, às 20h30 e aos domingos às 18 e às 21. Espero vocês lá, heim?






(apresentador, obviamente, pede pra repetir)






De quarta a sábado, às 20h30 e aos domingos às 18 e às 21.






(apresentador diz que já volta e pede pra não mudar de canal)




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