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sábado, 18 de junho de 2011

OU NÃO



ILUSTRAÇÃO: THIAGO CAYRES

Sou motorista de táxi, sim, e com orgulho de um tamanho que olha, vou falar pra você, se bobear nem cabe no porta-mala. Nem no porta-mala do Logan, que leva pra mais de 500 litros.



O Francisco Petrônio, seresteiro de marca maior, antes de ficar famoso com a “Festa Baile” e os Bailes da Saudade pelo Brasil afora, foi taxista – naquele tempo chamado “chauffeur de praça”. E foi cantando pra um e outro enquanto dirigia que um belo dia um sujeito levou ele pra fazer teste na TV Tupi, e deu no que deu. Largou do ponto e ganhou programa de auditório. Veja você, meu colega. Como já estou no bico do corvo e é muito tarde pro estrelato, vou me conformando em levar celebridade pra baixo e pra cima. Se não dá pra ser uma, pelo menos vou tocando a vida perto delas.


Vai daí que, de taxista, eu passei pra motorista particular. Comecei com o Jackson do Pandeiro, quando tinha uma Belina II que fundiu o cabeçote. Essa Belina era minha, não era dele não. Dirigi para o Luiz Gonzaga, o velho Lua, que era conhecido do Jackson. Fiquei depois até 2003 com o Alceu Valença e daí pra frente tô direto oferecendo meus préstimos pro Seu Gilberto Gil.


Não vou dizer pra você que é o melhor emprego do mundo, mas o Seu Gilberto é muito boa pessoa, quando dá pra entender as esquisitices que ele fala. Em vez de cortar caminho e ir direto ao assunto, o cabra gosta de ficar dando volta. Comigo então, nem se fala. E aí fica naquela: “você pegue a direita, ou não. Você me leve até o apartamento de Bethânia, ou não”. E fico nesse vou-não-vou até ele aprumar as ideias e resolver pra onde vai. Mas às vezes custa, heim. Ah, custa. O homem parece que tem a cabeça que nem carburador engasgado, rateia que parece bateria pra pegar no frio. Já ouvi falar na televisão que ele fuma aquele negócio que o Fernando Henrique disse que não traga, mas eu a bem dizer nunca vi nada, nadinha que desabone a pessoa do Seu Gilberto.


No caminho ele tem o costume de ficar sempre com o laptop aberto, às vezes me pede o bloco de anotação que levo no porta-luva e fica rabiscando rápido, diz que é pra não esquecer depois. Só não entendo porque me pede o bloquinho, já que tá com o computador no colo. Ele me disse que são uns começos de música e letra que ele vai fazendo. Quase sempre o trajeto é da casa dele pro aeroporto, daí ele fica uma temporada boa fora e eu confesso que até pego o carro de vez em quando pra dar uma vadiada, que ninguém é de ferro. Teve um dia que juntei uma quenga no banco de trás, lá na garagem da casa de Salvador, e fiz o serviço sem pressa porque sabia que o Seu Gil estava lá em Moçambique e a Dona Flora tinha ido pro Rio, passar uns dias com a Preta. Na volta ele reparou numa mancha esbranquiçada no estofamento, eu falei que era canjica que a netinha do Seu Gil tinha derrubado quando fui buscar ela na escolinha. Ele engoliu (a história) e não falou mais nada.


Uma vez o homem encasquetou e inventou de me pedir pra ficar falando a esmo enquanto o sinal não abria. Assuntei ele pra saber o que era esse negócio de “esmo” que eu nunca que tinha ouvido falar, não. Falei que conhecia torresmo, mas aí ele deu aquela risadona dele e disse que não era isso, falou assim: “Desencana, Oduvaldo, desencana”, e começou a assobiar aquela música do abacateiro e depois aquela outra que manda o abraço pro Chacrinha. Ê, Seu Gilberto...






© Direitos Reservados


Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.


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sábado, 11 de junho de 2011

SÍTIO ARQUEOLÓGICO



Deus sabe o quanto acho tedioso e sem atrativo esse novo caminho de terra batida a que chamam de “Paulista”. Mas enfim, a vida na administração dos cafezais pede ares urbanos, e não me resta alternativa a não ser usufruir deste meu casarão no planalto de Piratininga, já que as economias escassas impossibilitam os três meses de veraneio pelo velho mundo a que estava acostumado.



Anuncia-se para amanhã um grande comício com o candidato Campos Salles. Passo ao largo de manifestações públicas, ainda mais correndo o risco de encontrar no meio do populacho o dono da casa bancária da qual sou devedor.


Dona Veridiana Prado convidou-me para um sarau no sábado, e não sei ainda que desculpa sacar do bolso do colete para que não seja forçado a ostentar, entre os abonados paulistanos, meu único e puído fraque. Que vergonha ver o brasão de minha família perder o brilho de outrora, conquistado bravamente à custa da cana e do ouro. Agora fico à mercê dos altos e baixos deste amaldiçoado café, submetido aos caprichos do mercado externo – este monstro oscilante e alheio ao poderio dos meus antepassados.


O cheiro de mofo de casa fechada precede o desfazer das malas. Tomo assento na cadeira da varanda e recebo da mucama um refresco de tamarindo. O ar parado, a avenida muda, só um farfalhar de árvores e o voo de uma ou outra perdiz. Quase a pegar no sono, um criado me acorda com um objeto curioso nas mãos, que encontrou enquanto escavava um buraco no quintal para transplantar uma palmeira.


É uma placa. Nem de ferro, nem de madeira, nem de baquelite. Nada que se assemelhe a material conhecido. Sobreposto ao fundo branco da coisa, toda rachada e coberta de terra, uns estranhos dizeres em vermelho: “Multipark”.






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sábado, 4 de junho de 2011

FEIRA VINTAGE




O relógio



De hoje acho que a gente não escapa. Estamos brilhando como nunca, improvável que ao menos um desses turistas de sandália e meias ¾ não se apaixone. Meus queridos, são 208 anos com a corda toda, trabalhando 24 horas. Chega de garoa e de poeira nessa carcaça suíça. Tudo tem seu tempo, e o meu por aqui já está chegando ao fim.






O bule de prata


Acreditem ou não, já fui posto uma vez na mesa de café da manhã do Getúlio Vargas. Mas pra falar a verdade ele nem ligou pra mim. Estava cheio até o bico de café preto, fumegava convidativo, só que o baixinho de São Borja preferiu chimarrão. Eram dias difíceis, um pouco antes do tiro no peito. Anos depois fui à leilão, embrulhado numa nojenta folha de jornal, levado num porta-malas por cinco intermináveis horas. Lustrado, fui parar na cristaleira de uma quatrocentona de Sampa, moradora de um apartamento de enorme pé direito na Alameda Santos. Logo em seguida houve a briga dos herdeiros e ganhei esse amassado vitalício, ao ser arremessado na cabeça da amante do marido da finada. De lá para onde estamos foram mais uns meses, e daqui provavelmente não saio nunca mais. Quem se habilita em me levar quer um desconto muito alto por conta da minha escoriação.






O terço de cristal


Eu rezo para que todos permaneçamos juntos e para que minha antiga dona nunca passe por aqui, me reconheça e me leve de volta para aquela incômoda gaveta da penteadeira. Lá fiquei durante décadas numa escuridão terrível, ao lado de alguns cordões umbelicais secos e duas pontes móveis de dono(s) ignorado(s). Prefiro a luz do sol da praça, gente passando e me olhando, admirando meu brilho, deslizando de mão em mão – ainda que ninguém me leve. Quando me vendeu a velha estava na pior, precisava de dinheiro para comprar comida. Se já tiver morrido, o risco de ser reconhecido é zero porque só deixou filhos homens, e homem que é homem não se lembra com detalhes do terço da mãe. Embora, pelo que me recordo, o filho mais novo não parecia tão macho assim...






A câmera


Que tal um retrato para a posteridade? Vamos aproveitar que o Diógenes comprou um veludo novo pra gente, e esse azul marinho na luz do inverno vai dar um instantâneo e tanto. Torçam para que o meu obturador não engripe e que o meu rolo de filme já não esteja vencido... vamos lá, agora, ninguém se mexe, digam x... bule, vira um pouquinho a asa... isso... ô relógio, para um segundinho senão você vai sair tremido na foto.






O retrato


Detesto ser desmancha-prazeres, mas dentro de você, câmera, não deve ter filme nenhum. E ainda que houvesse, quem iria revelar? O tempo passou e você não registrou as mudanças, essa é a triste realidade. Eu ainda sou o que sou não sei como, pois quase todos os retratos da minha época já viraram farelos. Portanto, esqueça. Ao invés de tentar guardar, viva este bom momento enquanto nos derem chance. Sei que, sendo um retrato, não deveria falar assim. Estou defendendo uma tese que contraria a minha própria utilidade. Porém, inútil por inútil, quem dentre nós ainda acha que serve para alguma coisa?










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