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sábado, 31 de outubro de 2015

EU SEI QUE VOU AMAR-TE



É verdade. Vinícius e Tom escorregaram na norma culta, mas o nosso pacote de turismo interplanetário se encarregará de consertar o erro de português. Ou a licença poética, como queiram. Durante toda a viagem, a bordo de estofadíssima espaçonave, os pombinhos recém-casados terão como ininterrupto fundo musical "Eu sei que vou amar-te", regravação da belíssima porém gramaticalmente equivocada "Eu sei que vou te amar".

A terráquea e miseravelmente comum lua de mel se transformará em inesquecível lua de Marte, podendo os nubentes optarem por uma esticadinha até uma das duas luas do planeta vizinho, Phobos e Deimos. Tanto em uma quanto na outra, encontrarão uma serenidade ainda maior do que em solo marciano, tão visado pela mídia dos humanos nos últimos tempos. Além do que não há sondas da NASA vasculhando as luas de lá, o que é uma garantia da mais de plena privacidade.

Vermelho é a cor da paixão, e o planeta escarlate não poderia ser melhor cenário para momentos de fogo e volúpia, capazes de avermelharem de vergonha todo o sistema solar e quiçá as galáxias das redondezas. Dunas e montes ainda virgens do contato humano acolherão os corpos dos casais e ouvirão suas juras de amor eterno. Após saciada a carne, um revigorante banho com a água salgada recentemente descoberta. A mesma água encontrada nas paradisíacas praias do Pacífico estará aguardando os dois (quem sabe três, a essa altura dos acontecimentos).

Ao abrirem a janela da suite nupcial e darem com a linda visão da terra, bem distante, onde ela sempre deveria estar, e sentindo a indescritível delícia de ser humano longe de quaisquer outros exemplares da espécie, vai ser difícil querer voltar. Já prevendo essa possibilidade, levaremos um provimento extra de oxigênio, água potável e comida para pelo menos 16 dias a mais em solo marciano. Lembrando mais uma vez que o nosso pacote, no trajeto de retorno, inclui uma deslumbrante escala de três horas e meia nos anéis de Saturno.

© Direitos Reservados

sábado, 24 de outubro de 2015

MUNDO CÃO



I
Foi uma alegria quando o Seu Totó apareceu com o humaninho em casa. Uma graça - de terninho, gravata e sapato preto de bico fino.
- Qual a raça dele, pai?
- Não sei direito, Lassie, mas parece que é lavrador. Estava abandonado num caminhão de boia-fria. Que judiação, deu uma pena. Não resisti e resolvi adotar. Não era você que ficava me infernizando, pedindo uma humaninho? Pois então.


II

- Vamos ter que passar no human-shop pra comprar arroz e feijão pra ele, disse Dona Lulu.
- Não precisa ser no human-shop, querida. Hoje em dia tem seção de produtos pra ser humano em tudo que é supermercado. Podemos dar uma olhada no Cãorrefour, no Rextra ou no Cão de Açúcar.
- Nada disso, papito, melhor uma loja especializada. Aí a gente já aproveita e compra escova de dente, desodorante, talco de chulé, uns maços de cigarro e uma garrafa de pinga.
- É, e também não pode demorar muito pra vacinar, disse o Tobi. Paralisia infantil, sarampo, catapora, tétano...
- Pera aí, cachorrada, assim não é possível. Se for comprar tudo o que inventam pra criação de gente o meu salário na Purina não vai dar. Tem até psicólogo e academia de ginástica pra esses bípedes sem rabo. Não há dinheiro que chegue.


III

- Mami, olha só, o humaninho não para de falar. O que será que ele quer latir com isso?
- Eu sei lá, o que eu sei mesmo é que não quero saber de bagunça aqui dentro de casa.
- E alguém pode me dizer se os humaninhos mordem?
- Ouvi falar que não, mas ficam mordidos quando estão sem dinheiro. Grana pra eles é a mesma coisa que osso pra nós, Lassie.
- Ah, isso é verdade, ô se é. Outro dia lá na escola o Pedro Pintcher apareceu com um saquinho de dinheiro. Aí a gente ficava jogando notas e moedas pro humano de estimação do Diretor. Ele saía correndo que nem louco atrás, precisava ver! E nem era adestrado, o danadinho.


IV

- Humanos também adoram televisão.
- Igual a que a gente tem aqui, com os franguinhos girando?
- Claro que não, eles não raciocinam. Gostam de novela, grupos de pagode, programas idiotas de auditório e outras atrações onde as fêmeas humanas abanam os rabos e os machos ficam arfando, com as línguas de fora. Isso é o máximo que o QI deles alcança.
- Tobi, meu filhote, já colocou o jornal lá fora pra ele fazer xixi?
- Já coloquei agorinha, mas ele pegou o jornal e começou a ler. Vê se pode.
- Ué, tá negando a raça? Menos mal, enfim um humano se instruindo. Só espero que a leitura não se reduza ao horóscopo.
- E que nome vamos dar pra ele, heim? João, José, Antonio, Daniel, Orozimbo...
- Que tal Praxedes?
- Lindo.
- É, Praxedes tá legal.


V

Exausto com o alvoroço do primeiro dia, Praxedes se espreguiçou na casinha e tentou dormir, mas o sono não vinha. Ligou a TV que instalaram pra ele, no cercadinho. Como sempre, só havia pastor em todos os canais. Pastor alemão, pastor belga, pastor capa preta, pastor com pedigree, sem pedigree, filhotes, adultos. Zapeando pela programação, pôs-se a imaginar um mundo menos cão e mais humano, onde os animais domésticos fossem os cães e não as pessoas. E viu-se dono de uma próspera rede de pet-shops, morando numa casa de três andares e cheia de cachorros no quintal.


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sábado, 17 de outubro de 2015

APARIÇÃO



Quando dei por mim, de pé no meio da sala de jantar da fazenda, não saberia dizer de onde vim e nem por quanto tempo estive dormindo ou inconsciente. A dor nas costas e o andar vacilante eram indícios de anos amargados no leito, mas a minha impressão é que estava retornando de um rápido desmaio. 


Me chamou atenção acima da lareira um retrato meu, tirado há uns dez dias quando muito, e que mais parecia o meu bisavô Honorato, pelo amarelado da fotografia. A queda do cavalo estava fresca na lembrança, e minha ida ao photographo foi na terça anterior ao acidente. Por que tão gasta a imagem e carcomida a moldura?


Mais uns passos e na cozinha me deparo com uma caixa branca de formato retangular, aparentemente de metal e quase do meu tamanho. A maçaneta sugeria uma porta e a abri, sentindo um frescor delicioso que contrastava com o mormaço da fazenda, àquela hora da noite. Dentro, bebidas e alimentos de feitios estranhos, iluminados por uma luz que ficava no fundo da caixa fria.


Numa das paredes do living havia uma espécie de tela preta envidraçada, de proporções próximas às de uma janela, onde se via um sujeito falando com um terno um tanto esquisito. Tentei tocá-lo, era impressionantemente real e muito mais nítido que um quadro. Sua boca se mexia mas dela não saía som algum. O silêncio tomava conta. As lâmpadas, muitas e todas apagadas, em nada se assemelhavam aos lampiões de querosene que até outro dia eu acendia ao anoitecer e apagava pela manhã.


As pessoas, umas quinze, contritas e concentradas em torno da grande mesa, oravam e invocavam meu nome. Fugia da minha compreensão o que se passava, pois todas eram a mim desconhecidas. Nem mulher, filhos ou parente próximo. Desgostava-me o incômodo daquela macabra assembleia tendo lugar ali dentro, profanando a Fazenda Santa Carolina e minha mesa de jacarandá. Era legítimo que retomasse meus domínios, queria enxotá-los dali, eles todos com suas roupas e penteados de péssimo gosto, a mencionarem insistentemente meu nome, em transe insano e de olhos fechados. 




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sábado, 10 de outubro de 2015

TELEMARKETING PARA TELEBLOQUEIO DE TELEMARKETING




(Imagem: www.operadordetelemarketing.com) 

- Boa noite. O Sr. Antonio, por gentileza.

- É telemarketing, né? Olha, não estou precisando de nada não.

- Nos impressiona o fato de o senhor ter conseguido nos identificar. Tomamos todo o cuidado para não falar no gerúndio...

- Com gerúndio ou sem gerúndio, essa jeito de fala decorada e esse timbre de locutor de aeroporto não me enganam.

- Por obséquio, senhor, só um instante da sua atenção. Tomamos a liberdade de contatá-lo para livrá-lo em definitivo desse inconveniente. Sabemos o quanto as centrais de vendas por telefone andam importunando sua vida, e...

- Se sabem, então porque também praticam esse tipo de sadismo?

- Podemos garantir, senhor, que esta será a última chamada de telemarketing que o senhor atenderá. Isso, claro, se o senhor optar pela adesão aos nossos serviços. Nossos computadores interceptam as tentativas de contato e não deixam o telefone do cliente tocar, para não atrapalhar o seu sono ou o que quer que esteja fazendo. 

- Mas já não tem uma lei que protege o cidadão contra esse tipo de abuso, minha filha?

-  Correto, senhor. Existe o bloqueio ao telemarketing do Procon de São Paulo, mas tem que preencher um formulário, aguardar 30 dias e o solicitante corre  o risco de empresas descumprirem a solicitação e insistirem em continuar ligando para o seu número. Com o nosso serviço, isso é impossível. Ele funciona por mecanismo de interceptação, uma tecnologia inédita desenvolvida pelos nossos programadores. Seu telefone não chega a tocar. 

- Isso seria a glória.

- De maneira geral, os serviços mais inteligentes conseguem ludibriar os identificadores de chamada, fazendo rodízios dos números. Para se livrar do incômodo o senhor precisaria saber os números utilizados em rodízio por cada uma das centrais de telemarketing, o que seria impraticável. Algumas centrais adotam um expediente bastante engenhoso. No lugar de um número de telefone, aparece no visor de quem atende apenas um "01". Tudo para dificultar a identificação. Um outro estratagema muito comum é ligar e, assim que a pessoa atende, simplesmente desligar. É que só pelo fato da ligação ter se completado, o sistema já entende como efetuada na hora de apurar  o cumprimento de cota do operador.

- Brasil - sil - sil, né, minha filha? É o telejeitinho brasileiro.

- Estamos com uma promoção especial apenas para esta semana, e disponibilizamos ao senhor um mês de cortesia do serviço. Na eventualidade de receber qualquer ligação de telemarketing no período, nós depositaremos em sua conta o valor equivalente a uma mensalidade, a título de ressarcimento por falha de serviço. Poderia me fornecer agora os dados do seu cartão para habilitar imediatamente o telebloqueio, por gentileza? Lembrando que o primeiro mês é test-drive.

- Mas quem falou que eu vou querer experimentar isso? E se for ver, falha de serviço você já cometeu, filhota. Você  disse "lembrando", isso é gerúndio. Gerúndio não vale, confere?

- Aceite minhas desculpas, senhor, é que vim há poucos meses de outra empresa da área. Mas estou em tratamento fonoaudiológico para me livrar da dependência. O senhor há de compreender, o próprio termo "telemarketing" é um gerúndio em inglês, o gerúndio é algo que está no DNA do operador. Mas, voltando ao nosso assunto...

- Aí, olha o gerúndio aí de novo! Infringiu o regulamento duas vezes. Sinto muito, terei que desligar. Se insistir, poderei estar ligando para o seu chefe.



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sábado, 3 de outubro de 2015

AMORECOS



I
- Me dá um trago, vai.
- Ué, não é você que ontem mesmo disse que ia parar de fumar?
- Hum, olha quem fala. Você parou, por acaso?
- Mas também não prometi nada. Eu prometo coisas que posso cumprir. Esse céu lindo, por exemplo, esse veludo azul com respingos de prata...
- Nossa, baixou o Olavo Bilac?
- Então, esse céu aí que nem em Shangri-lá se vê assim. Eu sequestraria agora e decalcaria nos seus seios, se você mandasse eu estaria disposto.
- Então traz.
- Eu disse que estaria disposto. Futuro do pretérito. Agora não estou.
- Ah.

II
- Só eu mesmo, uma tonta, tão pouco voluntariosa, sem amor-próprio nem coisa melhor pra fazer em casa, tão minimamente exigente, pra vir torcer por você num inter-clubes de peteca às 4 da tarde de sábado.
- O amor é lindo, honey.
- É lindo e bobo, besta, mentecapto, retardado, autista, acéfalo. Tenha dó, até fazer xixi é mais emocionante que isso.
- E depois daqui? E sua quedinha por esportistas ofegantes? E esse meu fogo todo, aquecido pelo jogo? Que me diz?
- Sei, sei. Quero ver se essa peteca você vai deixar cair...
- Isso é uma ameaça?
- Não. Uma esperança.

III
- Ai, como eu detesto quando você faz isso.
- O quê? Mexer a bebida com o dedo? Très chic, tolinha. Isso é absolutamente in, se é que você me entende. Vai se instruir nos manuais de etiqueta da Glorinha Kalil pra depois implicar comigo.
- Deselegante, convencido, animal bruto. Devia ter deixado você lá, correndo atrás de peteca com seus amigos gordos.
- É. Pena que você não resistiu ao papai aqui.
(plof)
- Mas o que é isso? Hein, o que é isso? Nunca imaginei que alguém teria coragem de me jogar um absorvente usado na cara!!!
- E eu jamais sonhei em ter que me contentar com o 16º colocado num inter-clubes de peteca. Prefiro ir pra cama com a própria peteca.
- Fique à vontade. Tá dentro do guarda-roupa.
- Sim. Como os amantes esperando a saída dos maridos cornos.

IV
- Pensa que é fácil, no melhor da história aquele cheiro de cebola na sua mão?
- E pensa que é gostoso meia dura de chulé, pasta sem tampa, jornal jogado?
- Prometo que mudo.
- Ah, tá. Do mesmo jeito que prometeu decalcar o céu nos meus seios. Duvido que mude...
- Você não entendeu. Quando eu falo em mudar, é mudar daqui.

V
- Olha o tempo que você tá aí lixando essa unha. Se vocês mulheres soubessem da tara dos homens por unha lixada...
- Você pode não reparar, mas há quem dê valor. Ô se há.
- Em unha lixada?
- Em unha lixada.
- Quem por exemplo?
- Use seu poder de dedução.
- Reticente e misteriosa. Não deixa no ar, não. Começou, agora conclui. Quem?
- Preocupadinho, bem?
- Tsc, tsc. Aliviado. Pra reparar na unha, não deve ser lá muito homem...
- Nem jogador de peteca.
- Ah, vai pr’aquele lugar, vai!
- Já estou nele. Faz tempo.




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