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sábado, 29 de abril de 2017

MUTIRÃO DO TABULEIRO




O Governo Federal, dando continuidade ao Programa "Espaço do Cidadão", promove em nível nacional o Primeiro Grande Mutirão do Tabuleiro.

Em entrevista coletiva, o Chefe da Casa Civil afirma: "Imagine o espaço que ocupam caixas e mais caixas de jogos de tabuleiro dentro de uma casa de padrão médio, sendo que cabem milhares de games em qualquer smartphone de camelódromo. E para baixar de graça. Está mais do que na hora de tirar esse entrave do dia a dia da família brasileira e dar espaço para uma vida mais confortável a todos".

Ele continua: "O Governo entende que é direito inalienável do contribuinte chegar em casa depois do trabalho, tomar o seu banho, petiscar o seu torresmo com Cinzano e jogar uma partidinha de gamão antes de se enrolar nas cobertas. Mas temos que modernizar o nosso Código Civil. A lei que trata do jogo de tabuleiro em ambiente doméstico ainda é do tempo do Getúlio Vargas. Precisamos atualizar isso, dando aos brasileiros a prerrogativa de trocar os velhos tabuleiros de madeira pelas versões eletrônicas, muito mais atraentes. Nosso Brasil mudou e a legislação tem que acompanhar essas transformações."

O Chefe da Casa Civil esclarece que os jogos deverão ser entregues nos postos de arrecadação de cada cidade. Todos serão incinerados, e a previsão é que sejam recolhidas em torno de 5 milhões de caixas de xadrez, damas, trilha, ludo, War, Detetive, resta-um, Banco Imobiliário e congêneres. 

O Programa "Espaço do Cidadão" não para por aí. "Mês que vem será a vez dos livros - esses trastes acumuladores de ácaros e de traças. E no caso dos livros iremos premiar as pessoas que trouxerem para o mutirão maior quantidade dessas porcarias que ameaçam a saúde pública. Teremos dois critérios: o número de volumes arrecadados e o número de páginas por volume. Por exemplo, "Guerra e Paz", "Dom Quixote", "Os Miseráveis" e "A Montanha Mágica", que têm milhares de páginas, encorpam muito mais os fogueirões que iremos fazer. Então é justo que quem os trouxer tenha direito uma recompensa maior do que aquele que entregar um ou outro livro fininho de literatura infantil ou do Paulo Coelho, compreende? Ainda estamos estudando que tipo de prêmio será esse, pois queremos incentivar a participação efetiva da coletividade. Em tempos de Kindle e e-readers chineses a menos de 150 reais, não tem cabimento o sujeito manter uma biblioteca em casa. Lembro mais uma vez que o nosso objetivo maior é dar ao cidadão o espaço que ele merece". 

A última, porém não menos importante etapa do Programa, será a eliminação de toda a papelada burocrática no relacionamento do cidadão com o governo nas diferentes esferas - municipal, estadual e federal. "Do pagamento de uma conta de água à declaração do Impostos de Renda, tudo poderá ser resolvido pelo celular", promete o ministro.  



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sábado, 22 de abril de 2017

CENTRO DE VALORIZAÇÃO DA VIDA DO SALVA-VIDAS





- Pronto, Centro de Valorização da Vida do Salva-Vidas – CVVSV. Por favor, seja breve pois nossas linhas estão congestionadas.
- Tô sem vidas pra salvar. Antes tivesse cem vidas pra salvar, tá me entendendo?
- Entendo sim. E como entendo. Você é o décimo sexto que liga hoje. Ontem foram trinta e cinco.
- Ninguém tá precisando ter a vida salva, moça. Mar calmo, banhistas felizes com Sundown 45 besuntado até no cofrinho, nenhum desavisado se debatendo na rebentação. Um tédio. Gosto de viver perigosamente, pra isso escolhi essa vida de salvar a vida dos outros.
- Relaxe, pense que poderia ser pior. E se tivesse que resgatar dez vovôs gordos e sem preparo físico se afogando ao mesmo tempo? Daqueles que levam melancia, torta de sardinha e papagaio pra praia, já pensou?
- Mas pelo menos eu me sentiria útil, ainda que conseguisse salvar um gordo só. Bem ou mal estaria honrando o salário no fim do mês. O duro é ficar tomando sol o dia todo naquela cadeira em cima da escada. Me sinto um usurpador, um verme sem serventia, um chupim do orçamento da prefeitura. A senhora, como contribuinte, não se sente explorada? Por favor, me ajude, faça alguma coisa.
- Meu amigo, por acaso a culpa é sua se está tudo bem? Você saberá cumprir o seu dever, caso aconteça alguma coisa. Por que você não faz um curso de aperfeiçoamento, um módulo mais avançado pra sua função? Sei lá, ou então abra-se a novas possibilidades de relacionamento... uma respiração boca-a-boca com alguém atraente do sexo oposto, sabe como é, salva-vidas também é gente.
- Sei, sei. Vem ver as coisas que me aparecem pra salvar, vem ver. Isso quando aparece, né. A praia aqui é de periferia, minha filha. É a maior relação dentadura por banhista da América Latina.
- Você também podia pedir transferência pra algum lugar com mar mais agitado, tipo aquelas praias de surfistas em Saquarema.
- Mais alguma alternativa?
- Temos sugerido com frequência a pintura de paisagens marinhas em aquarela. O único problema é o salva-vidas se distrair demais com o hobby e não prestar atenção ao serviço.
- Chega, essa foi sua última chance. Não me convenceu, o buraco no meu caso é mais embaixo.
- Pelo amor de Deus, mude de ideia. Se não por você, pelo menos por mim.
- Como assim?
- Nosso índice de reversão das tentativas de suicídio nos últimos seis meses é de apenas 4,9%. Caso não consigamos melhorar esta estatística, nossa equipe toda será demitida. Você não está mesmo querendo salvar vidas? Pois então, sua oportunidade é agora. Salve a nossa, moço!
- Jura que é verdade? Não está dizendo isso só pra dar uma levantada na minha autoestima? Este argumento está me cheirando a script decorado aí da equipe de atendimento.
- Onde você está no momento?
- Estou aqui, no meu posto de observação, falando do celular. Mas com um cano de revólver enfiado no outro ouvido. Tem até um pessoal lá embaixo olhando desconfiado pra mim.
- Calma, segura a onda.
- Bom, isso é tudo o que eu queria, se houvesse alguma pra segurar.
- Moço, olhe pra trás. Guardas-noturnos, ex-boxeadores, enroladores de bobinas de transformador, mulheres barbadas de circo e outros suicidas contumazes bem que gostariam de estar no seu lugar, só aí, de frente pro mar... considere-se um privilegiado.
- Poupe o seu latim para um caso menos perdido que o meu. Além do mais, meu crédito está acabando.
- Me dá seu número que eu ligo!
- Vai dar caixa postal.


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sábado, 15 de abril de 2017

ATAQUE DAS FORMIGAS ASSASSINAS



Um novo tipo de golpe baixo anda roubando o sono dos empresários. Dos grandes, médios, pequenos e até dos MEIs. Trata-se do já famoso e polêmico marketing multinível, também conhecido como pirâmide, só que aplicado à difamação. À mais instantânea e eficaz difamação. 

Embora exija um certo rigor logístico, o funcionamento é basicamente simples. O entrante elege o concorrente que mais o incomoda em sua área de atuação, elenca um rol de calúnias a seu respeito e passa a fazer parte da "engrenagem", digamos assim. 

Na qualidade de noviço no esquema, o indivíduo terá como tarefa inicial destruir a imagem de aproximadamente 120 produtos ou serviços, via mensagens enviadas aos serviços de proteção ao consumidor. É o trabalho braçal das "formiguinhas" que compõem a base. Feito isso, aguardará uns três meses até que chegue ao topo da pirâmide e seja a vez do extermínio do seu concorrente de mercado, quando centenas de milhares de supostos consumidores insatisfeitos entrarão simultaneamente no "Reclame Aqui" e congêneres com quatro pedras na mão e ávidos por linchar o seu desafeto comercial. 

O sistema conta com uma base de quase 500.000 integrantes. Cada um deles com o seu IP, que é o que dará legitimidade estatística à coisa. É a fraude perfeita, não tem como dar errado. A exemplo de toda pirâmide bem arquitetada, o sujeito entra realmente comprometido em fazer sua parte porque sonha com a contrapartida quando chegar ao topo. É o gostinho da sabotagem que alavanca o processo, e tudo acaba funcionando com a precisão de um relógio suíço.

Outra segurança importante é que, mesmo sendo falsos, os relatos não parecerão forjados, pois as reclamações terão estilos diferentes. Cada  participante receberá instruções orientando quanto aos pontos que deverão ser criticados, escrevendo à sua maneira.

O poder de destruição é incomensurável. Por mais que a empresa-vítima apresente desenvoltura de defesa, o ataque em massa de “clientes lesados” arrebenta a sua imagem da noite para o dia. Como o que cai na internet jamais desaparece, o dano à marca é tamanho que é mais fácil começar do zero do que tentar juntar os cacos. 


*Esta é uma obra de ficção. Por enquanto.




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sexta-feira, 7 de abril de 2017

NA ESTEIRA DO MESTRE




O "grande estalo" me ocorreu quando conversava, dia desses, com um discípulo desgarrado da seita. Ele reconheceu-me na fila do açougue, enquanto aguardava que me embrulhassem 500 gramas de coraçãozinho.

- Venerável Duña, manancial infindável de sabedoria, guru dos gurus, mestre dos mestres... como está Vossa Divindade?

E, olhando ansioso para o relógio, prosseguiu sem me deixar responder:

- Ando meio sem tempo de cultuar o Oráculo, sabe como é, essa vida corrida da gente... mas estou na esteira de seus ensinamentos!!! E lá se foi apressado, com seus dois quilos de patinho moído debaixo do braço.

Aquilo me abriu na mente um clarão mais luminoso que pôr do sol de calendário de quitanda. "Na esteira dos ensinamentos"... É isso!!!! É isso!!!! Genial e profético: os ensinamentos deveriam estar na esteira!!!!

De imediato passei a caraminholar, com os botões do meu desbotado hábito, de que forma colocaria em prática aquela beatífica ideia.

Já há tempos vinha quebrando a cabeça, em busca de alternativas que impulsionassem a divulgação da doutrina duñesca pelos quatro cantos do globo. Doutrina que, como todos sabem, foi codificada por Juan de la Duña, meu bisavô materno, e pode ser sintetizada na máxima "O espelho da vida é a sombra do infinito". 

Utilizar as esteiras das academias de ginástica como veículos dos ensinamentos sagrados seria a salvação da minha lavoura de jiló. Isso era indiscutível. Imaginava o fim das humilhantes pregações nos semáforos, tentando arrebanhar adeptos em meio a buzinadas e xingamentos. As esteiras fariam esse papel, enquanto eu e os demais Veneráveis da Ordem cuidaríamos de missões mais nobres e estratégicas.

Meu plano, concebido dois dias depois enquanto desenrolava um fardo de arame farpado na roça do Noviço Hector, consistia nos seguintes pontos: 

. Os principais enunciados e dogmas da seita seriam estampados nas esteiras ergométricas, prefrencialmente em letras amarelas para facilitar a leitura sobre o fundo preto. De tal forma que o usuário, ao acionar o equipamento para exercício, os tivesse literalmente a seus pés - um após o outro. As mensagens iriam se sucedendo, em efeito quase hipnótico na mente do aluno, repetidamente, até se entranharem no subconsciente. 

. Com isso, teríamos um duplo ganho: a disseminação do verbo duñesco junto aos jovens frequentadores de academias, e a diminuição do tédio da rapaziada fitness, já que o fato de caminhar ou correr em esteiras sem ter alguma coisa para ocupar a mente é geralmente monótono e desestimulante. 

. No caso de academias maiores, que contam com monitores de TV ou telões à frente das esteiras, adaptaríamos as mensagens sapienciais às telas. Mil vezes melhor e mais edificante assistir aos ensinamentos duñescos do que às persversões dos videoclips, aos cacarejantes cantores de forró universitário ou o nada saudável bate-estaca da música eletrônica. 

. Uniríamos, assim, o culto da forma física à saúde espiritual – o que seria um diferencial das academias para a fidelização de seus clientes. 

Eu, o Duña, venerável e sapientíssimo, profetizo desde já um futuro celestial para a nossa congregação.



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