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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

CHATO PRA MORRER



Há certa morbidez em falar de desejos póstumos, mas não convém adiar indefinidamente esse indesejável assunto. Seguem então algumas orientações, às quais peço obediência e respeito. 

. Sempre dormi de lado, sobre o braço direito e com as pernas levemente flexionadas. Meu caixão deve ser confeccionado respeitando essa posição, por mais estranho que possa parecer o seu formato quando fechada a tampa. E que seja também providenciado um pequeno travesseiro, roxo, com penas de ganso, que deixe a cervical reta e alinhada tanto quanto possível. Já que o sono será eterno, que não falte conforto a ele. 

. Falando em sono, o meu sempre foi muito leve. Como ninguém pode dar certeza definitiva sobre a inexistência de algum nível de consciência pós-morte, prefiro me prevenir quanto a eventuais ruídos que perturbem meu sossego. Assim, solicito a meus familiares que recubram o granito do túmulo com uma camada de 20 centímetros de cortiça, para que haja total isolamento acústico entre minha carcaça e possíveis defuntos-vizinhos chegados a uma bagunça. 

. O mencionado granito deve ter uma tonalidade entre o marrom e o rosa, numa nuance intermediária e cambiante ao longo do dia, dependendo da posição do sol.

. Diz o ditado que quem morre come grama pela raiz. Então, que minhas refeições sejam da melhor qualidade. Exijo grama do tipo esmeralda circundando a sepultura, pois pelas pesquisas que empreendi até o momento esta espécie é a que melhor resiste à infestação de tiririca e outras pragas daninhas. Na colocação, que as placas sejam dispostas simetricamente, que as regas sejam semanais - exceto de dezembro a fevereiro - e que as podas sejam efetuadas sempre que a grama atingir 3 centímentros de altura. Nem mais, nem menos. 

. Quando se morre, nem toda vaidade vai para a cova com o defunto. Há relatos de corpos desenterrados apresentarem excelente estado de conservação, mesmo com exumações feitas décadas após o óbito. Ainda que admitamos controvérsias na explicação do fenômeno, parece haver consenso de que caixões lacrados conservam o finado por mais tempo. Assim como muitas pessoas querem aparentar menos anos de vida, concedo-me o direito de aparentar menos anos de morte, e autorizo desde já a lacração do meu paletó de madeira por profissional habilitado na tarefa.
Solicito ainda que minhas roupas sejam de tecido 100% sintético, que demora centenas de anos para degradar completamente. Dessa forma, maiores serão minhas chances de parecer apresentável ao exumador. 



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Imagem: pixabay.com

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

POR QUE NÃO O JALECO BRANCO NOS BONECÕES DE AR?




Sabe aqueles bonecões promocionais de ar comprimido, que ficam de chamariz na frente de alguns comércios de bairro? Estou pensando em colocar um na calçada do meu consultório. De jaleco branco e estetoscópio no pescoço, simpaticão como ele só. Não ria, por favor. Eu nunca falei tão sério.  

Com essa crise mais crônica do que todas as piores doenças juntas, precisamos sobreviver da mesma forma como sobrevivem quaisquer outros honestos e bem intencionados prestadores de serviços. A diferença entre um excelente médico e um ótimo mecânico, além do desnível social normalmente observado, é que a nossa "rebimboca da parafuseta" fica dentro de um organismo, e não em um motor. E quem é bom no trato de rebimbocas orgânicas tem mais é que se valorizar e buscar a merecida visibilidade. Sem dramas de consciência. Temos de disponibilizar nossos préstimos de maneira não apenas objetiva, mas também original. Cada vez mais original, se quisermos nos destacar em meio a um imenso e competente exército de bons profissionais labutando por um lugar ao sol.

Já comentei com meus colegas sobre esse projeto. Alguns deles falam em agressão à ética médica, consideram a ideia aberrativa e promocional demais para a natureza da nossa profissão. Mas argumento: o fato de ter um bonecão de ar comprimido em frente ao meu consultório me torna um profissional menos sério, menos qualificado ou menos comprometido com a idoneidade no exercício do ofício?

É muito bonitinho e elegante uma plaquinha discreta, em aço escovado ou vidro jateado, na recepção de uma clínica projetada por escritório de arquitetura. Concordo que é bem mais "clean" e condizente com a nossa nobre atividade. Só que é quase inútil, não cumpre a função de sinalizar e divulgar. Ninguém acha estranho um imenso muro pintado com "Funilaria do Tião - a 200 metros" e com uma seta vermelha apontando a direção do estabelecimento. Mas se eu coloco uma tabuletinha de nada escrito "Psiquiatra - logo ali", vão querer me internar. E a comunidade médica da cidade vai entrar com pedido de cassação do meu CRM.

Entendo que o mesmo se aplicaria a outros profissionais da saúde, como os dentistas. Uma clínica odontológica poderia muito bem ter um molarzão de ar comprimido bailando pra lá e pra cá na fachada, com raiz e tudo, bem branquinho para chamar bastante a atenção. Ou quem sabe um sorrisão gigantesco, tipo aquele bocão dos Rolling Stones, porque é isso mesmo que as pessoas buscam quando vão tratar dos dentes. 

Nos Estados Unidos, é corriqueiro ver médicos promovendo verdadeiras campanhas publicitárias sobre seus serviços. Normal. Só que aqui é feio, apelativo, dá a impressão de estar se matando cachorro a grito. Mas, afinal de contas, de onde vem essa equivocada noção de que o nosso sapato branco deve ter sempre salto alto?


Esta é uma obra de ficção, não refletindo necessariamente a opinião do autor.


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Imagem: afinflaveis.com.br


sábado, 4 de novembro de 2017

ASNOS VOLANTES: SEU FIM ESTÁ PRÓXIMO




Os carros autônomos, aqueles que não precisam de motorista, já estão rodando por aí. Segundo matéria de capa da Veja da semana passada, que aprofunda o assunto e suas consequências, eles serão aproximadamente 10% da frota mundial até 2035. E quando produzidos em massa deverão chegar já elétricos, o que será uma dupla revolução. 

Tudo será muito diferente. Da forma de condução à comunicação.
As campanhas publicitárias terão que mudar completamente seus approachs aspiracionais para emplacar a novidade. O prazer de dirigir será substituído pelo prazer de não dirigir. Ninguém mais irá chamar alguém de "bração", "asno volante" e que tais. Afagos como "fdp", "aí, navalha", "volta pra auto-escola" não serão mais revidados pois 100% dos motoristas robôs tem, sim, sangue de barata. E os ciber-pilotos assimilarão os desaforos com sua característica frieza original de fábrica. 

Dependendo do conforto do carro, o caminho para o motel pode muito bem virar o próprio motel. Dependendo também, é evidente, do grau de escuridão do insulfilm - que poderá ser complemente negro, já que o motorista não precisará enxergar o que vem à sua frente. 

Álcool e direção irão se misturar perfeitamente e se dar às mil maravilhas, deixando o bafômetro em embriagante obsolescência. Ô dó. O coitadinho vai começar a beber pra esquecer os dias de glória e de extraordinária arrecadação de multas. 

Outros prováveis desdobramentos desafiam a imaginação. Será um verdadeiro aborto da natureza conseguir vender uma pick-up off-road para um cowboy do asfalto ou para um trilheiro de verdade. Onde é que os criativos das agências de propaganda irão se pegar, e para apregoar exatamente o quê? Adrenalina? Aventura? Emoção? Qual será o arquétipo utilizado para que o sujeito se encante?  Com que argumentos rebaixar o fissiurado em 4x4 para o banco de passageiro e ao mesmo tempo despertar nele o desejo de compra?

Tem também a questão dos seguros dos veículos. Se os acidentes param de acontecer, a seguradoras vão fechar. Se continuam, quem serão os novos culpados?

O que já se pode antecipar como certo é que o celular estará liberado ao volante (se é que continuará existindo volante, que não servirá para coisa alguma), e nenhum guarda de trânsito ou amarelinho poderá falar nada se flagrar um condutor digitando mensagens em cima de um viaduto, a cento e quarenta e tantos por hora. Aliás, os radares de velocidade irão enfim requerer a tão sonhada aposentadoria. Bom, pelo menos para quem é motorista, ela é sonhada, sim.

É lógico que a mítica do carro como símbolo de status social continuará prevalecendo, seja ele autônomo ou não. Um carro mais básico poderá abrigar uma turma fazendo uma mãozinha de truco enquanto se encaminha ao canteiro de obras; já as luxuosíssimas limousines levarão damas quatrocentonas, com seus imensos chapéus, às corridas no Jockey. Porém Jarbas, o chaufeur da família Bulhões, perderá o emprego. A menos que continue a serviço do clã para abrir e fechar portas. 




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Imagem: www.autoguide.com