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sábado, 30 de março de 2013

ZAPPING



Imagem: wikimedia commons



Hora de pensar, pensar. Hora de não pensar, ligar a televisão - essa fabulosa caixa hipnótica. Aperte o power do aparelho e acione o off do cérebro. Renda-se ao vício paralisante, entregue-se ao esvaziamento mental.

Mas a culpa não é toda da TV em si. Há todo um clima ao redor que induz ao não-pensamento: o cobertor e sua pelúcia acolhedora, a meia-luz do ambiente, a musculatura relaxada - tudo isso junto já é um pré-estado Alfa. Uma vez nesse estupor, é assistir ao desfilar de pastores em seus púlpitos, calouros se esgoelando, falsas loiras saracoteando seus predicados de silicone. Sem falar dos televendedores, a uma velocidade de oitocentas palavras por minuto, madrugada afora apregoando de títulos de clube a aparelhos ortodônticos.

Mas o ritual nem sempre foi assim, indolente e passivo. Tempo houve em que era preciso ginástica para gozar das delícias televisivas.
Quando a TV não pegava, os fantasmas apareciam ou os chuviscos aumentavam, deflagrava-se uma complexa operação que envolvia no mínimo duas pessoas. Uma plantada em frente à caixa, a outra virando o cano da antena, no quintal da casa.
- Melhorou?
- Não!
- E agora?
- Continua ruim.
- Assim tá melhor?
- Espera um pouco...volta pra onde estava antes.
- Assim?
- É.

Dois artefatos, hoje em desuso, orbitavam em torno dela: o conversor de UHF e o regulador de voltagem, também conhecido como transformador. Controle remoto não tinha. Nem precisava - eram só cinco as opções disponíveis. A então TV2 Cultura (canal 2), a Tupi (canal 4), a Globo (canal 5), a Record (canal 7) e a Bandeirantes (canal 13).
Com o advento do cabo e das miniparabólicas, a ordem é zapear. Então...

(zap)
Você pode perder até seis quilos em duas semanas. E não é só isso: fazendo agora seu pedido você ainda ganha este maravilhoso...
(zap)
- Mas me diga uma coisa, dona Antonieta. E agora, como é que está sua vida hoje?
- Ah, hoje o meu lar é abençoado. Como do bom e do melhor, tenho 2 padarias, 3 postos de gasolina...
(zap)
- Chegou a hora de você saber de toda a verdade.
- Onde é que você está querendo chegar? Do que você está falando?
- Maria Helena... Maria Helena... é sua filha!
(zap)
Só seis parcelinhas de setenta e quatro e cinquenta, no cartão.
(zap)
Ohhhhh yes.... ohhhhh... hum, hummmm... oh yeeeeeeessss... ahhhh!!!!
(zap)
Foi sem querer querendo!
(zap)
Daqui a pouco a gente volta. Não sai daí.

1284 zaps depois...
Os olhos pesam, a cabeça pende molemente para o outro lado da almofada. A mão deixa cair o controle no chão. Aí você acorda, assustado com o barulho. Desliga a TV, apaga a luz, se ajeita sob as cobertas. Tarde demais: o sono se foi. Enquanto ele não volta, você liga a televisão.




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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 23 de março de 2013

TREVO


Imagem: Google



- Bom, o que a gente já esperava foi confirmado hoje no comunicado que a prefeitura fez no jornal: nossas terras foram desapropriadas e vão nos pagar preço de banana. Uma merreca.
- Ai, ai, ai. Tá sacramentado mesmo, é? Bem, mas pelo menos vamos poder explorar algum negócio no entorno do novo trevo. Tá lá no edital de desapropriação. Temos a indenização e o direito de abrir comércio ou serviços nas imediações, como compensação pelo baixo preço que a prefeitura vai pagar.
- Sei... um negócio ao redor de um trevo rodoviário? O que é que pode ir pra frente num entroncamento de trânsito rápido? É área de passagem, o cara tá preocupado com o caminho que ele tem que pegar.
- Eu pensei em um empreendimento que tenha a ver de alguma maneira com o próprio trevo. Nem tanto com a função, mas com a forma e o significado dele.
 - Nossa... nebuloso esse seu raciocínio, heim?
- Imagina só, já tenho até o nome: "Trevo da Sorte". Uma moderna e vistosa lotérica. Quem trabalha ou mora nas vizinhanças do anel viário não precisará mais ir até a cidade fazer suas apostas. Além disso, as lotéricas também são postos de pagamento de contas. Conveniência pra população das vilas nas adjacências.
- Ah, agora entendi. É pra quem mora perto, não pra quem trafega pelo trevo. Pensando bem... podemos abrir quatro lotéricas, uma em cada alça do trevo - assim os moradores dos arredores têm que andar ainda menos pra fazer sua fezinha. Mas olha, indo por essa sua lógica, a gente também poderia abrir um viveiro de plantas pra vender trevo de quatro folhas. Aí então, um negócio puxa outro. O sujeito passa no viveiro, compra o seu trevinho e depois vai pra lotérica fazer seu jogo. Tudo amarrado. É o chamado Cross Marketing!
- Isso! Montamos uma verdadeira holding. E dando certo a estratégia levamos a experiência vencedora a outros trevos pelo Brasil afora, quem sabe até abrindo sistema de franquia...
- Espera aí, tenho uma ideia melhor. Melhor não, uma sacada que complementa essas duas que a gente já pensou. Uma casa super bem montada, discreta, com som ambiente maneiro e iluminação suave, uns cem metros antes do início da obra. A campanha publicitária já está pronta: "Keep calm e encare o trevo". Um grande salão, com umas quinze massagistas do jeito que o diabo gosta, pra relaxar a tensão de quem vai passar pelo entroncamento. Especialmente os caminhoneiros. Convenhamos, passar por um trevo requer atenção e reflexos bem alertas. É um momento crítico para o motorista, se ele ficar nervoso é um perigo.
- Aí forçou, heim. O que me diz de "Shopping Trevo Souvenir"? Uma espécie de parque temático do trevo. Canecas, camisetas, cinzeiros, adesivos, tudo personalizado com o desenho do entroncamento. E também aqueles chaveirinhos com a mensagem "Estive no trevo e lembrei de você". Até tatuagem, podemos ter um tatuador full-time. A gente pode também editar um belo book de umas quinhentas páginas, tipo livro de arte, com fotos bem produzidas dos principais trevos do Brasil e do mundo. O nosso em destaque, é lógico. Caramba, ideia é o que não falta...
- Tamo rico, véio.
- Tamo junto, mano.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 16 de março de 2013

FRANCISCO



Imagem: mercadolivre.com.br


O que o Chico Buarque ouve? O que o Chico Buarque lê? O que e quem o Chico Buarque come? De quanto seria o lance inicial de algumas caspas do homem, colhidas por um garçom na mesa de um café de Saint Germain em um obscuro outono dos anos 90? Para quem seria o seu primeiro pensamento, ao acordar da soneca vespertina após o risoto com tinta de lula regado a vinho? Já teria ele falado com alguma atendente de telemarketing, que esqueceria os gerúndios, gaguejaria e se perderia em seu script ao se dar conta de quem estava do outro lado da linha? Seria PC ou Mac o ambiente onde salvara um primeiro esboço da letra prometida para o Guinga musicar, e fadada à eterna inconclusão? Saberia da existência de uma certa Carolina, de Itaquaquecetuba, que passados tantos anos ainda guarda com ela toda a dor desse mundo? Cerdas duras, médias ou macias, e quantas vezes ao dia? Agora, um pouco de escatologia: seria Chico um praticante da automucofagia? Rimou, mas é de rimas que se faz um Chico. Ricas, sem pé quebrado. Fala com o João Gilberto? Faz exame de próstata, dá comida ao cachorro, mete-se com a vida alheia, se atreveria a desviar da caminhada no Leblon para um suco de fruta do conde em Paquetá? O que haverá em seu lixo? Deixou pronto seu epitáfio? Já tem uma opinião formada sobre o xará, Papa Francisco?


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sábado, 9 de março de 2013

400 MILHÕES DE LIBRAS






Tomo a palavra nesta tribuna para, em nome da nossa comissão, me manifestar a respeito da confecção das cartilhas com o alfabeto Libras - Língua Brasileira de Sinais, popularmente conhecido como alfabeto do surdo-mudo.

Temos hoje no país aproximadamente 2 milhões de indivíduos com deficiência auditiva severa, que não querem e não merecem ser tratados como gente de segunda categoria. Por sua vez, os esforços de inclusão social empreendidos pelo governo vêm privilegiando sobretudo as pessoas com necessidades especiais, merecedoras do nosso respeito e do inalienável direito à cidadania.

Isto posto, decidimos inovar, produzindo algo diferente do costumeiro abecedário dos surdos impressos em grafiquetas de esquina e com aquelas mãozinhas horríveis uma ao lado da outra, mostrando letra por letra. Queríamos algo que de fato prestigiasse a notável e pujante categoria dos surdos, que numericamente justificaria inclusive uma bancada que os representasse no Congresso.

Assim, um lote de cartilhas foi confeccionado com fotos de Sebastian Salgado e Bob Wulfenson, tendo os sinais das mãos executados por celebridades e socialites de todos os Estados brasileiros. O outro lote deixamos a cargo do renomado artista plástico Romero Brites, que aceitou a encomenda e criou para cada sinal um quadro exclusivo, empreitada que lhe tomou mais de um ano de trabalho. Em ambos os casos, o resultado foi maravilhoso. E a satisfação que tivemos depois de tudo pronto foi muito maior que a nossa amargura pelas caluniosas suspeitas de superfaturamento que pairam sobre a nossa comissão.

Fomos duramente questionados pelo fato de imprimirmos 400 milhões de cartilhas. Entendemos que não há exagero nessa quantidade, uma vez que os deficientes auditivos já conhecem o alfabeto Libras e, consequentemente, os livrinhos não se destinariam a eles, e sim à população em geral - que desconhece a linguagem e que precisa dela para se comunicar com os surdos.

Se fôssemos seguir a lógica de alguns parlamentares da oposição, que entendem que as cartilhas com o Código Libras deveria ser distribuída apenas entre os surdos, evidentemente que 400 milhões seria uma tiragem absurda, já que cada surdo receberia 200 cartilhas, num verdadeiro atentado aos cofres públicos.

Mas o nosso raciocínio foi muito mais abrangente e democrático. Arredondando a população brasileira para um total de 200 milhões de habitantes, e sendo conveniente que cada cidadão receba dois exemplares (um para ter sempre à mão e outro para deixar em casa, na eventualidade de algum extravio), chegamos ao número de 400 milhões. Justo e sem desperdício.

Desse montante, alguns poucos milhares de cópias serão separadas para envio a organismos internacionais e embaixadas de países com os quais mantemos relações diplomáticas. Assim mostraremos ao mundo a sensibilidade do governo federal em relação ao problema e os vultosos investimentos que destinamos para minimizá-lo.

A próxima etapa, ainda em fase de licitação de fornecedores, consiste em exibir o alfabeto Libras na forma de animações 3D, em gigantescos painéis de LED afixados nas praças públicas e estações de metrô. Dessa maneira poderemos disseminar, em outras e ainda mais atraentes mídias, esse importante instrumento de integração genuinamente brasileiro.


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sexta-feira, 1 de março de 2013






Parcela do IPVA, água, luz, telefone, escola.
Podia muito bem pagar por internet, caixa eletrônico, débito automático. Mas não confiava em nada disso, gostava mesmo da autenticação mecânica. Ali, preto no branco. Vai que amanhã dá pau geral no sistema, como provar que tá pago?

Pra falar a verdade, nem queria que a fila andasse. Tinha hora no dentista daí a 40 minutos. E sair de um suplício para outro era demais. Um sacrifício pede recompensa, e não mais sacrifício. Boca aberta ao torturante motorzinho, boquiaberto com o buraco no orçamento. Não, não. Ligaria pro consultório, desmarcando.

O saco sem fundo de trabalhar pra ganhar, ganhar pra pagar as contas, pagar as contas pra continuar na estatística dos economicamente ativos. E assim sucessivamente – do mesmo jeito será com seu filho e destino igual terá seu neto, se até lá esse mundinho não explodir numa hecatombe.

Ontem tinha ido almoçar com a Débora. Como sabia esnobá-lo, a cachorra. Ô Débora desalmada. Deixa estar que ainda me vingo, ele pensou. E a vingança veio a cavalo, naquele safado PF de padaria. Arroz, feijão, batata souté, salada de tomate e... rúcula.

Sentados à mesa, ela aciona o seu mais radiante sorriso em direção ao carinha da mesa ao lado. Foi quando se deu o desastre: aquele tiquinho de rúcula entre os alvíssimos incisivos. Quanto mais metida e insinuante a darling se mostrava, mais a verdura tornava bizarra aquela diva de subúrbio. Era nojento, constrangedor, hilariante. E a Deborazinha se achando.
Ele regozijava-se intimamente com aqueles míseros milímetros quadrados de rúcula, cujo poder de destruição ecoava por toda a Panificadora Doce Mel.

Contou: 28 à sua frente, sendo 7 office-boys. Aquelas caras de segunda-feira, mesmo sendo uma quinta que anuncia a sexta que traria o redentor fim de semana.

Se estudasse direitinho não estaria ali e não seria o que era. Esse ser de cera, dez horas por dia com o traseiro soldado a uma poltrona de escritório sem apoio para os braços. Essa previdente figura que não sai de casa sem guarda-chuva e talões de zona azul.

A cordinha de nylon a balizar a fila. Em todas as filas, de todos os bancos, a mesma cordinha e o mesmo dim-dom anunciando o caixa livre. Um passo à frente.

Olhou para o cartaz, na parede próxima ao subgerente. Um casal, dois filhos e um cão de guarda simpático, todos transbordando de felicidade graças ao seguro de vida que, além de cobrir morte, invalidez permanente e renda cessante, ainda oferece sorteios mensais de casas, carros e notebooks.

De novo a imagem da Débora, com sua carruagem transformada em abóbora ao meio-dia. Foi-se o encanto, seu sapatinho de cristal virou pantufa de palhaço. A Débora a quem a rúcula tornou ridícula.

Dim-dom. Chegou sua vez.
Olha no crachá da moça: outra Débora. Ela diz “pois não” sorrindo. E sem rúcula nos dentes.




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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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