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sábado, 30 de outubro de 2010

EFEITO BORBOLETA


À exceção do Silvio Santos, que ao que tudo indica nunca assistiu a filme algum, o mais provável é que todos já tenham visto este arrasa-quarteirão, que tem como argumento o fato de que o bater de asas de uma borboleta na favela da Rocinha pode provocar um tufão nas Ilhas Galápagos. Ou seja, amarrar primeiro o cadarço do sapato esquerdo e não do direito, como de costume, pode afetar o desenrolar da história em seus acontecimentos cruciais. É o que também chamam de “Teoria do Caos”, febrilmente estudada e nunca suficientemente compreendida. Pois eu, que tudo presenciei naquela ocasião, pude comprovar na prática o cinematográfico postulado. Não com uma borboleta, mas com um punhado de fubá. E posso dizer, por experiência própria, que o mundo tal qual o conhecemos hoje assim não seria não fosse o fubá nosso de cada dia. Uns oitocentos gramas, se tanto, de prosaico e inocente fubazinho ralo e sem marca.

Começou com o milho sendo pilado, na palhoça de colono. Uns grãozinhos maiores no fundo do pilão, ao irem para a sopa, provocaram o engasgo da velha Totonha, que do alto dos seus 103 e já sem forças para clamar por auxílio, veio a óbito solitária e candidamente por asfixia. Não tivesse sido a quirera infortunadamente ingerida, o camburão da funerária não teria passado pela ponte onde, naquele exato instante, um boi cochilava tomando dois terços do leito carroçável. Ao desviar subitamente o veículo, motorista, maquiador de cadáveres e médico legista foram lançados ao ribeirão. Mirinho, filho de Demázio, mais conhecido como Jorjão, tentou puxar o médico legista com um cabo de enxada que jogou na água. Mas acabou caindo também no ribeirão, indo conhecer Nossa Senhora mais cedo em lugar dos outros três, que se safaram não se sabe como.

Três meses depois, quis o destino, em seus insondáveis caprichos, que um balão junino caísse nas proximidades da hemeroteca da escola recém-inaugurada com o nome de Mirinho – alçado ao posto de herói municipal por seu azarado gesto de bravura. O foco de fogo alastrou-se para o prédio da câmara de vereadores e consumiu em segundos toda a documentação relativa à chamada “CPI da Biribinha”, que investigava a compra sem concorrência pública de estalos de salão para a Festa de São João organizada pela prefeitura. A literal queima de arquivo despertou o interesse da grande mídia, que para aquele fim de mundo enviou levas e mais levas de repórteres e cinegrafistas a fim de apurar o que se passava. Bastaram cinco dias na cidade para que a imprensa descobrisse que o episódio dos traques superfaturados era só a ponta do iceberg. A partir de denúncias anônimas, a Guarda Municipal local, em conjunto com a Interpol, encontrou no fundo de uma gruta nada menos de 208.880 troncos de pau de sebo sem nota fiscal, já devidamente ensebados e prontos para embarque no Porto de Paranaguá.

O assessor do sub-chefe de gabinete do Ministério da Defesa, refestelado em sua poltrona do papai, acompanhava apreensivo o rumo dos acontecimentos pelo noticiário da TV. Ele, que recentemente teve uma avó paterna vítima de engasgo aos 103, por conta de sopa preparada com fubá mal moído.

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sábado, 23 de outubro de 2010

PIADABRAS



Ilustração: Marco Fraga


Piada, anedota ou patacoada, como diziam os mais antigos. Chame como quiser. O que importa é que todos saibam que as piadas não nascem do nada, sem pai nem mãe. Elas existem com o propósito definido de anestesiar o populacho e há uma superestrutura que as orquestra, diretamente subordinada aos altos escalões da administração pública federal. Uma espécie de serviço de inteligência, com a diferença de que não há realização de concurso para provimento de cargos, sendo seus integrantes contratados com base nos critérios de notória competência e especialização. Digo isto de cátedra, pois sou parte desta indústria. Desta desconhecida e desvalorizada indústria. Sim, amigos, as piadas têm autores e os autores têm cotas de novas piadas a conceber, da mesma forma que os boias-frias têm suas cotas diárias de cana para cortar.

Não estou autorizado a revelar a localização geográfica da nossa organização. Posso afirmar apenas que ela funciona nas antigas dependências de uma desativada autarquia nos arredores de Macapá, bastante utilizada para a tortura de subversivos nos tempos da ditadura militar. São sete pavimentos que funcionam em três turnos, servidos por elevadores de última geração, ar condicionado central, serviço de buffet e assim divididos:

1º andar: Piada de salão;
2º andar: Piada suja;
3º andar: Piada de papagaio;
4º andar: Piada de humor negro;
5º andar: Piadas de português, de turco, de sogra e de loira;
6º andar: Adivinhas, do tipo o que é o que é. De 1982 a 1995 tínhamos dentro deste pavimento o setor “Qual o nome do filme?”, mas a partir de 1996 a fórmula se desgastou e a subdivisão foi extinta.
7º andar: Setor de Reciclagem – piadas velhas são recolhidas, reformadas com outra roupagem e novamente espalhadas. É um valioso dispositivo em tempos de entressafra, quando há escassez de fatos engraçados que inspirem a renovação do anedotário.

Engendrada a anedota, o piadista aciona um botão verde ao lado do seu monitor. Em não mais de 40 segundos aparece, movido a patins, um carrancudo do setor de Controle de Qualidade, para aferir se a piada tem ou não o nível mínimo de graça para que se espalhe. Os carrancudos são em geral pessoas nas quais o riso dificilmente aflora – como mutilados de guerra, deprimidos, pacientes bipolares, torcedores do América e gente oriunda de outras categorias de infelizes. Um risinho de canto de boca dessa turma já garante a passagem da piada para as duas próximas etapas de produção: o burilamento e a redação final.

Até há pouco tempo dispúnhamos um número quatro vezes maior de contadores, funcionários que saem às ruas para espalhar as piadas recém-paridas, infiltrando-se em rodas de bar, quadras de bocha, cafés, clubes da terceira idade e outros pontos estratégicos de propagação. Com a internet o processo mudou bastante, pois temos bancos de dados gigantescos contendo milhões de mailings com bilhões de nomes, o que faz com que a piada se propague pelo planeta em dez minutos ou menos – dependendo da graça, do arsenal de anti-spams dos destinatários e das mensagens de caixa postal cheia.

Ao contrário do que se poderia supor, nossa rotina não tem nada de engraçada. Ganhamos mal, mas em compensação não nos divertimos nem um pouco. Pegue uma piada clássica, como aquela do avião caindo com um brasileiro, um americano, um francês, um italiano e um português, na qual o lusitano salta com um frasco de “Para Queda de Cabelos”. Uma joia desse quilate é resultado de elaboração minuciosa, onde se promovem brainstorms que reúnem até altas horas três, quatro ou até mais piadistas, em mesa redonda e servidos por porções de mandioca frita e doses cavalares de conhaque. Tal rotina, dia após dia, desgasta, adoece e afasta por invalidez. Mas não há outra alternativa.Há décadas que a sociedade não gera por si mesma quantidade suficiente de piadas, por falta de tempo e inspiração. E o baixo estoque delas é, para o sistema público de saúde, um problema tão grave quanto o déficit de sangue nos hospitais.

Recentemente foi descoberta uma fraude na liberação de um lote de novas piadas, que estavam prontas para serem espalhadas porém ainda não tinham passado pelo Controle de Qualidade. Um grupo de piadistas inescrupulosos rendeu à força o bipolar de plantão, responsável pelo OK final, e enquanto um dos criadores lia para ele as piadas os demais faziam cócegas em suas axilas e pés para forçar o riso. O escândalo, no entanto, foi abafado e os envolvidos julgados por tribunal interno, que decidiu pelo afastamento temporário de dois deles: o que manipulava a pena de ganso na axila esquerda da vítima e o que contava, com requintes de crueldade, as piadas em alto e bom som.



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sábado, 16 de outubro de 2010

FESTA DE INTEGRAÇÃO CRIANÇA-EMPRESA


Ilustração: Marco Fraga




De: Diretoria de Recursos Humanos
Para: Coordenadoria de Assuntos Sociais

Ref: Festa de Integração Criança-Empresa

Senhores,
Com relação ao assunto supra-citado, é imperioso frisar que temos apenas 3 meses e 22 dias para definirmos um plano estratégico de ações. Pela complexidade do tema, estamos correndo contra o tempo. Sugiro uma reunião de nossas diretorias para que possamos estabelecer metas conjuntas e criarmos uma comissão executiva, cuja incumbência envolverá os múltiplos aspectos a serem providenciados – do perfil psico-social do homem do algodão doce aos testes de elasticidade e resistência das bexigas.

De: Coordenadoria de Assuntos Sociais
Para: Diretoria de Recursos Humanos

Perfeitamente, senhor Diretor. Como start do projeto, já temos um croqui enviado por nossa agência de eventos, para ambientação do salão de festas. A nosso ver, é imprescindível uma correção na quantidade de purpurina nas sobrancelhas da Pequena Sereia. No processo licitatório o fornecedor escolhido foi a Purpur-Show, que deverá nos entregar a matéria-prima em tempo hábil para competente aprovação final. Caso contrário chamaremos em caráter de urgência a Mega Brilho Purpurinas – dessa vez sem licitação, por demonstrar notória competência e especialização naquilo que faz. Devo lembrar ao senhor que a Cinderela de isopor da festa de 1997 teve os olhos e o lábio inferior ornados por eles, e até hoje se comenta do furor causado pelo artefato entre os pequenos.

De: Diretoria de Recursos Humanos
Para: Coordenadoria de Assuntos Sociais

Tivemos, na confraternização do ano passado, um sem número de reclamações de esposas de colaboradores, argumentando que nos recheios das coxinhas predominava a sobrecoxa, quando historicamente utilizamos o peito desossado. Alguns relatos dão conta de resquícios de moela, o que é ainda mais inadmissível. Fiquem atentos a isso, por obséquio.

De: Coordenadoria de Assuntos Sociais
Para: Diretoria de Recursos Humanos

Informamos que o responsável pelas coxinhas com frango de segunda está devidamente frito. Ainda para conhecimento dos envolvidos, encaminho a síntese da apresentação em power-point do item 6, sub-item 9, que trata do recheio do bolo.

. Primeira camada: leite condensado com ameixa.
. Segunda camada: chantily com morango e cerejas ao licor.
. Terceira camada: massa folhada com creme amarelo do tipo bomba de padaria.
. Quarta camada: a ser definida após consenso entre as nossas diretorias, que nas últimas reuniões vêm divergindo a respeito da matéria. Para que não haja comprometimento do nosso follow-up, uma vez que estamos a apenas 1 mês e 29 dias para o fechamento do escopo estratégico de ações, e em permanecendo o impasse, sugiro que uma instância independente delibere sobre o assunto, sendo sua decisão soberana e irrecorrível.

De: Diretoria de Recursos Humanos
Para: Coordenadoria de Assuntos Sociais

Deliberação do dia: garfinhos de madeira de 2 dentes X garfinhos de plástico de 3 dentes.
Fizemos a tomada de preços e constamos que o custo da primeira opção é significativamente menor que o da segunda. Contudo, é forçoso admitir que os garfinhos de dois dentes têm menor desempenho de contenção do bocado alimentar – estudos demonstram que há uma perda de bolo maior no trajeto compreendido entre o pratinho de festa e a boca do conviva. Além do desperdício de bolo em si, teremos ainda um maior acúmulo de resíduos gordurosos no chão, que ocasionarão escorregões e tombos, que significarão fraturas e arranhões, que trarão ônus para o ambulatório da empresa.

De: Diretoria de Recursos Humanos
Para: Coordenadoria de assuntos sociais

De fato. A Diretoria, com o aval da CIPA, delibera pela compra dos garfinhos de três dentes, do fornecedor Algazarra – Artigos para Festas Ltda. Contudo, há uma pendência a ser equacionada, já elencada na pauta da reunião de quinta próxima: o bexigão-surpresa, cujo estouro e conseqüente avalanche de miudezas infantis é o ponto alto da festa. Urge que a Coordenadoria de Assuntos Sociais saia a campo para uma pesquisa em profundidade junto ao público-alvo para sabermos se adquirimos ou não os mesmos produtos dos anos anteriores e respectivas marcas, a saber: chiclés de bola, balas de goma, cornetinhas, apitos, línguas de sogra, aneizinhos e ioiôs.

De: Coordenadoria para assuntos sociais
Para: Diretoria de Recursos Humanos

A pesquisa citada em seu último memo já está em andamento. Publicamos também um edital de concorrência para aquisição de talco antialérgico (10 latas de 1kg), a ser acrescentado junto aos demais brinquedinhos no enchimento do citado bexigão, para maior efeito cênico quando do seu estouro. Todos hão de recordar o caso do petiz de tenra idade, que numa das últimas edições da festa quase veio a óbito, por inalar talco não-antialérgico contido no bexigão da época.

De: Diretoria de Recursos Humanos
Para: Coordenadoria de Assuntos Sociais

Ótimo, muito bem lembrado. A pró-atividade demonstrada por sua equipe sinaliza preparo para os desafios de um cenário econômico globalizado e de um mercado cada dia mais competitivo. Mas o profissionalismo está nos detalhes, e em dois deles os senhores pecaram:
1.
Há muito tempo as Marias-Moles não estão mais entre os sonhos de consumo de nosso público.

2.
Os guarda-chuvinhas de chocolate, marca Ploft, lote 153-06, não atendem às normas de segurança do INMETRO.

De: Coordenadoria de Assuntos Sociais
Para: Diretoria de Recursos Humanos

Tenham os senhores a certeza de que as mencionadas falhas serão sanadas. A seguir, as sugestões do nosso departamento para os presentes dos guris:

Filhos de operários: jogo do mico
Filhos de encarregados: resta-um, pega-vareta e dominó
Filhos de supervisores de produção: dama, xadrez, trilha e ludo
Filhos de chefes: bonecas que falam e carrinhos com rádio-controle
Filhos de gerentes: bicicletas e ursões de pelúcia
Filho do Diretor de Recursos Humanos: Playstation 3

De: Diretoria de Recursos Humanos
Para: Coordenadoria de Assuntos Sociais

Ok, aprovado. Podem solicitar os orçamentos para análise do Financeiro. Por último, porém não menos importante: o balão pula-pula. Sugiro que as bolas sejam confeccionadas com as cores do emblema da firma – verde e dourado. O que acham?



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sábado, 9 de outubro de 2010

DEMOROU


- Teve uma hora que eu vi o parzinho na íntegra, cara. O vento bateu esquisito, e a blusa dela parecia vela de barco. Quando aconteceu, fez aquele barulhinho de bandeira tremulando. Não tem noção. Foi a cena do bueiro da Marilyn, só que na parte de cima. E eu de cara pregada naquelas duas coisas, iguais e enlouquecedoras.
- E aí?
- Ela viu que eu vi, flagrou o arregalo do olho. Cobriu depressa o patrimônio. Disfarçou, eu não. Uma visão dessa te deixa sem saber o que fazer com as mãos, pra onde correr. Mas correr é a última coisa que passa pela cabeça com aqueles dois olhos de carne te olhando de repente, no susto. Um ar quente e perfumado das lindezinhas guardadas, tesouro abafado posto pra fora. Você não quer que acabe jeito nenhum, quer levar a visão contigo, deixar que te persiga e te incomode. Nunca que a gente acostuma de olhar aquilo sem espanto. O Cara lá em cima inventou esse negócio pra ser mistério mesmo, e pronto.
- Nem. Conta mais aí, reparte direito essa paradinha comigo.
- Foi ir pro céu em dois segundos e voltar, véio. Ninguenzinho, nem de longe, pra cortar o barato. Barulho zero, só umas gaivotas foram chegando ali pelas cinco, quando o sol tava no ensaio e ela já tinha ido embora, me deixando ali largado e pensando no acontecido, daquele jeito de quem quer de novo. A parada foi bem essa. Mingau de sossego e paz, jardim de Alá. Foi por aí, meu. Uma tatoo feita no cérebro.
– Massa... o lance aí te deixou inspiradão, cheio de falar bonito. Quem diria, o rei da biscataiada parado numa mina só.
- Uns gêmeos rosados assim não podem nunca ter câncer, véio. O câncer sonda o material, chapa e desiste de acabar com aquilo. Animal sem pelo, só penugem fêmea e fina, loirinha que nem de neném. A serviço do papai aqui, aquela carninha tenra detona a larica toda que tiver no mundo. Subindo um pouco uma bocaça meio das antigas, batom forte, tipo Rita Hayworth.
- Tô ligado, femme fatale de filme pb. Cara, essa nega desorienta.
- Duas horas com aquilo e eu me acabo. Subo a escadaria da Penha plantando bananeira. E de costas. Fico refém, manda que eu faço.
- Bota meu nome aí, que um filé desse eu não ligo de ficar com o osso, não. A hora que desocupar, me dá um toque.
- Demorou.

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sábado, 2 de outubro de 2010

ÚLTIMO MOVIMENTO


I

- Dizendo quase nada você entrega o que se passa e não percebe. É impressionante essa sua, digamos, faculdade da transparência.
- O problema é esse. Disfarçar não sei, nem quero. Sou um edifício em construção contínua e onde se vêem todos os andaimes, mal comparando é bem por aí. Quando rio ou choro por dentro é coisa que faço com as mãos, com os pés, com as tripas todas e especialmente com os olhos. Fica muito escrito na cara. Não tenho agenda oculta, meu amigo. Allegro é Allegro, Andante é Andante, Presto é Presto. Tudo o que mais quero agora são menos holofotes, coletivas, autógrafos. Uns dias de folga para tocar o piano de dentro, um mofo bom de estância velha em cama estreita e sem conforto.

II

- Você sofre com o fato de espalhar brilho por onde anda e a vontade de passar pelo mundo desapercebida. Minueto perdido de Mozart num escombro da Segunda Guerra, no fundo é isso o que você queria ser, uma gema rara mas ao mesmo tempo uma ruína sem chance de descobrimento ou reconstituição. No entanto você existe, foi revelada e está sob uma redoma de relicário há vinte e tantos anos. Não há como voltar atrás nessa aura que acabaram fazendo em torno de você, mesmo contra sua vontade. Você é uma estrela. Assuma o que há de angustiante e de glorioso nisso.

III

- Eu quero ser o cara que vira a página da partitura, não a diva do piano. O cara que vira a página vive da repetição, eu não posso me repetir. Nem por isso ele passa fome, é bem pago pra ficar virando a página. Satisfaz-se assim e vive no baixo risco, em boa zona de conforto. Ninguém pode condená-lo ou dizer que esteja errado.
- Não é ele, é ela. Usa até trança e é loira, não reparou? E como é imenso o fosso entre a ideia de felicidade dela e a sua. Pergunte a ela se não gostaria de ser você, por meia hora que fosse.

IV

Chega de calmante, está aumentando a dose e não está se dando conta. Qualquer dia dorme em cima do teclado, no meio do concerto.
- Durmo nada. Calmantes são parecidos com a moça que vira a página, uma rede de segurança. É bom saber que ela está lá, mesmo conhecendo a música de cor. Sem eles eu suaria frio, e as teclas molhadas me fariam errar as notas. Calmantes me põem no piloto automático. Servem de consolo, na falta de cama estreita em estância velha.
- Não é possível que você despreze tanto um dote raro de nascença.
- Artistas de verdade são autodestrutivos, nunca ouviu falar? A música que tenho basta e sobra. E o que sobra eu estou farta em dividir. Cancele a agenda de amanhã ou eu tomo a caixa toda.


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