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sábado, 25 de junho de 2016

COMO É QUE É A SUA LETRA MESMO?



Ninguém sabe mais como é sua letra. Nem você. Por mais intelectualmente articulado que seja e por mais Pós-Doutorados que possua, se tiver que escrever alguma coisa você vai se pegar desenhando as palavras. De um jeito desengonçado, como se estivesse aprendendo a andar de bicicleta.
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O teclado da máquina de escrever, e depois o do computador, foram os primeiros culpados. Acabaram matando aos poucos o meio físico que ligava o que se quer dizer ao que saía escrito, ou seja, a caneta ou o lápis. Mas ainda havia algo entre a intenção e o resultado: o teclado. O frio e insípido teclado, essa coisa infestada de migalhas de bolacha entre as letras. Por questões de conforto nos textos de longo curso, ele ainda resistirá um pouquinho mais, embora tecnologicamente já esteja liquidado.
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Do toque ao touch na tela, diretamente no vidrinho sensível do tablet ou do celular. As teclas de pixels, espremidas. Esbarrões frequentes nas letras vizinhas resultaram no amaldiçoado corretor ortográfico, cybercausador de mal-entendidos, divórcios e demissões por justa causa. Dorretor mwtido a busta, và cuidar da sua fida!
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O número de mortes/ano por digitação em trânsito, dentro do carro ou atravessando a rua, dão sinal verde para o avassalador sucesso dos aplicativos de escrita por ditado. Por meio de reconhecimento de voz, transformam em texto o que se diz, liberando as mãos e a atenção do indivíduo. Fanhos, gagos e gente de língua presa devem tomar cuidado ao utilizá-los. 
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A escalada tecnológica alcança níveis inimagináveis. Canetas, lápis, teclados, celulares, tablets e aplicativos que escrevem o que se fala também estão condenados à extinção. Em várias partes do mundo, testemunhas relatam ter visto gente falando diretamente com gente, sem intermediação de nenhum instrumento ou aparelho eletrônico. Conforme a pessoa vai falando, a outra já escuta, entende perfeitamente e responde na sequência. Um avanço sem precedentes na longa história da comunicação humana. 


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Imagem: wikimedia commons

sábado, 18 de junho de 2016

CABELOS AO VENTO



Nem todo mundo sabe, mas o cabelo, se bem conservado, é eterno (não se animem os carecas, a eternidade é do dito cujo fora da cabeça, e não em cima dela). Pura proteína, pode manter-se intacto com o passar dos séculos, mesmo debaixo da terra e exposto aos vermes. Mais: tanto o cabelo quanto as unhas continuam crescendo após o sepultamento, por períodos que variam de organismo para organismo. Melhor dizendo, de cadáver para cadáver.

Com apogeu no século 19, o hábito de guardar mechas de cabelo vem da Grécia antiga. O mais comum era acondicionar em caixinhas, envelopes ou no interior de camafeus um cacho do primeiro corte ou do último, já da pessoa defunta, como recordação. Namorados também enviavam madeixas às suas caras metades, para diminuir saudades e distâncias. Enfim, era uma relíquia sem prazo de validade que entes queridos presenteavam-se mutuamente, e que literalmente significava ter a posse de um pedaço da pessoa. 

Alguns, mais espertos, tinham acesso a defuntos ilustres e, disfarçadamente, davam um jeito de surrupiar um ou outro cacho para legar à posteridade. Visando, obviamente, fazer dinheiro com isso no futuro. 



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Viena, 2014, em uma casa de leilões.

Separados em suas respectivas mechas e divididos por área de notabilidade - políticos, presidentes da república, reis, cientistas, músicos, escritores e filósofos, os cabelos aguardavam os novos donos, que os arrematariam em lances milionários. Dentre outros, ali estavam amostras capilares de George Washington, Chopin, Napoleão Bonaparte, Nietzche, Mozart, Oscar Wilde, Mussolini, Einstein e Picasso.

Então o improvável e espetacular desastre se deu, por conta de uma reles veneziana com o trinco enguiçado. Um vento encanado e pronto: as mechas todas em redemoinho, para sempre misturadas.

- Gente, e agora? Leilão marcado... Para saber que cabelo é de quem nós temos que enviar, fio por fio, à análise de DNA. Precisamos de novas certificações de autenticidade. 

- Com resultados prontos até depois de amanhã? Tá fácil, heim. Estamos perdidos.

- Tanto melhor! Os cabelos são todos de grandes gênios da humanidade, não são? Quem arrematar a mecha do Oscar Wilde, por exemplo, vai levar cabelos de um monte de outras celebridades. Sem pagar nada mais por isso! Um grande negócio.

- Tá bom. Aí o dono do chumaço resolve fazer um DNA, para saber se o cabelo que ele comprou é o mesmo que ele levou...

- Repito: vai perceber que está na vantagem. Se fizer o DNA dos outros fios, terá uma grata e bombástica surpresa. Vai descobrir que possui metade da Enciclopédia Britânica em forma de cabelo.

- Vamos perder credibilidade como casa de leilões...

- Bom, a rigor, se alguém contestar, o problema é do laboratório que deu o laudo do DNA. Podemos falar que a culpa é deles, e nunca ninguém ficará sabendo desse acidente do vento entrando pela janela.

- Canalhice, velhacaria. Muito mau-caratismo para o meu gosto. A culpa foi do vento, temos que assumir isso...

- E perder milhões, cancelando o leilão?


A portas (e venezianas) trancadas, fizeram um pacto de cumplicidade e silêncio. Vararam noite e madrugada juntando cabelos em mechas que se assemelhavam pela cor. Todas as relíquias foram arrematadas. Nunca ninguém contestou a autenticidade delas.



Foto: dnalegal.com
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sábado, 11 de junho de 2016

DESVIO DE FINALIDADE



Viver em comunidade é viver com responsabilidade. Como nem todos pensam assim, abusos sempre acontecem. Mas chega uma hora em que é preciso colocar ordem na casa, para que prevaleça um mínimo de civilidade e observância a normas de boa e saudável convivência. E essa hora chegou para o nosso condomínio. Mais especificamente, refiro-me a irregularidades na utilização segura do playground, e à necessidade de estabelecermos a quem ele de fato se destina. 

Não é novidade para ninguém que o gira-gira existe para turbinar o efeito da bebida, por isso está estrategicamente instalado próximo ao lazer dos adultos. É insano permitir que crianças se aproximem dele. Se a força do equipamento em alta velocidade pode derrubar gente de noventa quilos, que ali espairece responsavelmente entre uma mão e outra de carteado no salão de festas, o que dizer de gurizinhos mais leves que um saco de arroz Tio João? O desastre é tão certo quanto as horas de choro que o sucedem. E, em ocorrendo acidente, os condôminos respondem juridicamente pelas despesas do hospital. Ou da funerária.

Para evitar que menores de 21 se aproximem dos balanços, o subsíndico mandou instalar um engenhoso mecanismo de senha alfanumérica combinado com biometria de reconhecimento digital e leitura de iris. Qualquer tentativa de acesso indevido ao equipamento resultará, após três digitações incorretas da senha, no bloqueio do movimento pendular do balanço. Na eventualidade do infantiloide conseguir dar umas balançadas, em questão de segundos seu assento será ejetado. De castigo, acabará no mínimo com um traumatismo craniano. Bem feito. Se os pais não corrigem, a comissão administrativa do prédio saberá fazê-lo. Esses pequenos mal-educados aprenderão na marra a evitar a traquinagem.

Dizem que é "escorregador" o nome que a molecada dá ao escalador-fitness, adquirido para complementar a nossa já bem equipada academia de ginástica. Enquanto nós, adultos, utilizamos o aparelho para fortalecer as panturrilhas na subida da escadinha, os guris usam a escada para se jogarem aos berros na rampa metálica - o que é um contrassenso. Com essa brincadeira besta, impedem que as pessoas mais velhas utilizem o escalador para o fim que foi concebido: cuidar da forma física.

Em relação à gaiola-labirinto, as reclamações são quase diárias. Tal qual selvagens micos, a meninada em algazarra usa o emaranhando metálico para exercitar os bíceps. Outro flagrante absurdo, pois a gaiola foi feita para secar roupas (facilitando a vida das nossas prendadas condôminas), ou para espionar com binóculos as banhistas do prédio ao lado (caso dos respeitáveis condôminos).

Playground não é e nem nunca foi lugar de criança, mas a impressão que se tem é que a proibição exerce sobre elas um fascínio irresistível. A plaquinha "Proibida a entrada de menores", afixada com destaque ao lado do par de gangorras, parece aguçar ainda mais os pestinhas. Medidas extremas, ainda em estudos, serão necessárias. Contamos com a compreensão e o apoio de todos.


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Foto: bestplay.com.br

sexta-feira, 3 de junho de 2016

PREFÁCIO AO LIVRO INEXISTENTE



"Quando é que sai o livro?", perguntam-me isso sempre. Minha resposta, definitiva e inapelável: nunca. Se Deus quiser nunquinha, pelo menos no que depender de mim esse equívoco não será cometido.  

É confortadora a ideia de que a publicação virtual pode ser editada a qualquer momento, e que a coluna de jornal, tão logo seja lida (se é que será), passará a forrar gaiolas de papagaio. Eu vejo uma espécie de segurança nessas plataformas, de reversibilidade da obra e, consequentemente, da reputação de quem a assina. Nada de volume, de editora, de noite de autógrafo, de virar adorno de  prateleira ou encheção de linguiça no currículo.

O livro é um tijolo à prova de arrependimento, é obra catalogada na Biblioteca Nacional, passa de mão em mão e espalha-se mundo afora, ainda que seja pequena a tiragem. Se o escriba renega a cria, não há chance de reparar o erro. A menos que faça um recall, oferecendo recompensa por exemplar devolvido. Uma espécie de errata da obra toda. 

Um livro é um negócio com aura de testamento, de coisa pronta e acabada. Não há o que possa ser feito depois de impresso, e essa perspectiva é uma sentença dura demais. Nega ao pobre do escritor a chance do control Z. A supressão de um advérbio mal empregado, um ponto-e-vírgula que poderia muito bem ser ponto, uma palavra repetida dentro do mesmo parágrafo, a troca de um substantivo que faria toda diferença. Dizem que o Graciliano Ramos acordava de madrugada, cismando de mudar uma palavra, corria à gráfica e mandava parar as máquinas para fazer a correção. E sendo ele quem era: o imortal Graça. 

Mas o pior não são esses escorregões de forma, e sim os desarranjos de conteúdo. Um assunto escolhido na falta de outro melhor, um final sem charme, algo que na hora parecia bom mas que irá, lá na frente, macular o bom nome do autor e trazer constrangimento à descendência... 

Para completar, o pior e mais humilhante dos riscos que um incauto escrevinhador pode correr: encontrar o seu rebento em um sebo, naquela banquinha de 1 real, autografado e tudo. E ainda ficar sabendo quem foi o amaldiçoado que vendeu, por quase nada, aquilo que um dia valeu tanto. 



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