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sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

REWIND TURBO MAGIC




Dias idos agora voltam: a ciência atesta e dá fé. Nosso produto é seu visto de entrada no reino dos tempos lindos, aqueles que deviam ser proibidos de não existirem mais.

Mantenha o aparelho junto ao corpo e aperte o power. Nenhum ajuste será necessário, a menos que não se acendam os leds indicadores após três minutos de conexão à tomada. É importante que o usuário não oponha resistência, forçando a permanência no presente mesmo que de forma inconsciente. Tal comportamento irá consumir, em minutos, toda a carga da bateria.

Em observância à legislação vigente, asseguramos a integridade física do usuário durante o trajeto, mas não nos responsabilizamos pelas consequências dos atos praticados enquanto permanecer em outras dimensões do tempo/espaço.

Intoxicações por comida estragada, eventualmente observadas no retorno, não serão cobertas pela garantia. Portanto, recomendamos que não coma nada enquanto estiver por lá - seja lá onde e quando for. Contenha o apetite, por mais delicioso que seja o aroma de torta de vó em tarde de chuva. Lembre-se que, ao retornar ao ponto de partida, estará trazendo no estômago um bolo alimentar de anos ou décadas. Assim, atenha-se sensorialmente aos planos auditivo e visual da experiência. Isso basta para que a busca insana das recordações perdidas vá se atenuando a cada nova viagem.



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sábado, 13 de dezembro de 2014

A SÍNDROME DOS LIVROS ILEGÍVEIS




O DESBOTAMENTO
Como muitas das desgraças desse mundo, a síndrome dos livros ilegíveis foi se instalando de forma silenciosa e quase despercebida. Quando os títulos dos volumes começaram a sumir aos poucos das lombadas, muitos não deram importância, atribuindo o fenômeno à luz do aposento, à vista cansada ou algo do gênero. A manhã do dia seguinte invalidaria essas hipóteses, revelando que nada é tão ruim que não possa ser pior.

TODO LIVRO É QUALQUER LIVRO
Das pequenas estantes domésticas às prateleiras das grandes bibliotecas, os livros foram todos se tornando indistintos. Era preciso abri-los e iniciar a leitura para identificar a obra. Mas a desgraça maior viria algumas horas mais tarde: relatos de todas as partes do mundo informavam o gradativo desaparecimento dos textos, transformando os livros em cadernos de anotações, com centenas de páginas em branco.

AS TENTATIVAS INFRUTÍFERAS
Pensavam alguns abnegados que, enquanto houvesse um pálido traço de letra antes do inevitável apagamento, haveria tempo de pelo menos tentar reforçar a caneta o conteúdo. Mas a tinta recém-aplicada também apagava-se à medida em que ia sendo posta no papel. Esgotados pelo esforço inútil, os heroicos voluntários quedavam-se inconsoláveis, vendo o conhecimento do mundo ser tragado pelo nada e sem explicação plausível.

Outros disparavam feito loucos suas câmeras fotográficas sobre as páginas dos livros e documentos ainda não contaminados, tentando salvar o que pudessem da ruína para depois reproduzir seu conteúdo, quando o pesadelo passasse.

Donos de cartório desesperavam-se na impossibilidade de administrar o caos, assistindo as propriedades perderem seus proprietários, esposas perderem seus maridos, pessoas perderem nomes, devedores serem libertos de credores, testamentos se anularem por nada testamentar.

O CONTÁGIO
Da ausência de conteúdo nos livros deu-se em seguida a perda da função das letras, que tornaram-se formas gráficas sem significado algum. Um “s” continuava sendo um “s”, com a diferença de que agora não servia para nada. Olhava-se aquilo como a representação de uma minhoca, uma cobra, um pedaço de mola ou algo parecido. A epidemia do insignificado alastrou-se e infectou as bulas e rótulos dos remédios, que assim tornaram-se potenciais causadores da morte ao invés da cura, já que não mostravam o que eram nem que alívio ofereciam. A única e perigosa alternativa era a tentativa e erro na ingestão de medicamentos e dosagens, o que não raro resultava em óbito. Mesmo os mortos não escapavam à fúria destruidora de letras: no campo santo, já não se distinguiam nem os nomes dos finados, nem seus inspirados epitáfios. Tudo sob a terra se ajuntava em um genérico cadáver.



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sábado, 6 de dezembro de 2014

CVVSV - CENTRO DE VALORIZAÇÃO DA VIDA DO SALVA-VIDAS




- Pronto, Centro de Valorização da Vida do Salva-Vidas – CVVSV. Por favor, seja breve pois nossas linhas estão congestionadas.
- Tô sem vidas pra salvar. Antes tivesse cem vidas pra salvar, tá me entendendo?
- Entendo sim. E como entendo. Você é o décimo sexto que liga hoje. Ontem foram trinta e cinco.
- Ninguém tá precisando ter a vida salva, moça. Mar calmo, banhistas felizes com Sundown 45 besuntado até no cofrinho, nenhum desavisado se debatendo na rebentação. Um tédio. Gosto de viver perigosamente, pra isso escolhi essa vida de salvar a vida dos outros.
- Relaxe, pense que poderia ser pior. E se tivesse que resgatar dez vovôs gordos e sem preparo físico se afogando ao mesmo tempo? Daqueles que levam melancia, torta de sardinha e papagaio pra praia, já pensou?
- Mas pelo menos eu me sentiria útil, ainda que conseguisse salvar um gordo só. Bem ou mal estaria honrando o salário no fim do mês. O duro é ficar tomando sol o dia todo naquela cadeira em cima da escada. Me sinto um usurpador, um verme sem serventia, um chupim do orçamento da prefeitura. A senhora, como contribuinte, não se sente explorada? Por favor, me ajude, faça alguma coisa.
- Meu amigo, por acaso a culpa é sua se está tudo bem? Você saberá cumprir o seu dever, caso aconteça alguma coisa. Por que você não faz um curso de aperfeiçoamento, um módulo mais avançado pra sua função? Sei lá, ou então abra-se a novas possibilidades de relacionamento... uma respiração boca-a-boca com alguém atraente do sexo oposto, sabe como é, salva-vidas também é gente.
- Sei, sei. Vem ver as coisas que me aparecem pra salvar, vem ver. Isso quando aparece, né. A praia aqui é de periferia, minha filha. É a maior relação dentadura por banhista da América Latina.
- Você também podia pedir transferência pra algum lugar com mar mais agitado, tipo aquelas praias de surfistas em Saquarema.
- Mais alguma alternativa?
- Temos sugerido com frequência a pintura de paisagens marinhas em aquarela. O único problema é o salva-vidas se distrair demais com o hobby e não prestar atenção ao serviço.
- Chega, essa foi sua última chance. Não me convenceu, o buraco no meu caso é mais embaixo.
- Pelo amor de Deus, mude de ideia. Se não por você, pelo menos por mim.
- Como assim?
- Nosso índice de reversão das tentativas de suicídio nos últimos seis meses é de apenas 4,9%. Caso não consigamos melhorar esta estatística, nossa equipe toda será demitida. Você não está mesmo querendo salvar vidas? Pois então, sua oportunidade é agora. Salve a nossa, moço!
- Jura que é verdade? Não está dizendo isso só pra dar uma levantada na minha autoestima? Este argumento está me cheirando a script decorado aí da equipe de atendimento.
- Onde você está no momento?
- Estou aqui, no meu posto de observação, falando do celular. Mas com um cano de revólver enfiado no outro ouvido. Tem até um pessoal lá embaixo olhando desconfiado pra mim.
- Calma, segura a onda.
- Bom, isso é tudo o que eu queria, se houvesse alguma pra segurar.
- Moço, olhe pra trás. Guardas-noturnos, ex-boxeadores, enroladores de bobinas de transformador, mulheres barbadas de circo e outros suicidas contumazes bem que gostariam de estar no seu lugar, só aí, de frente pro mar... considere-se um privilegiado.
- Poupe o seu latim para um caso menos perdido que o meu. Além do mais, meu crédito está acabando.
- Me dá seu número que eu ligo!
- Vai dar caixa postal.


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