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segunda-feira, 27 de abril de 2020

CORONA REAL





Se o nevoeiro e o cinza do céu londrino sempre tiveram o seu quê de deprimente, agora sim é que o clima descambou para a beira do precipício.

Nos arredores do Palácio de Buckingham, chega a ser ensurdecedor o barulho de uma ou outra folha de árvore caindo. Uma placa de "Vende-se ou Aluga-se - Tratar com a proprietária", pendurada no imponente portão de entrada, balança pra lá e pra cá conforme o (mau) humor climático. Comentariam os tabloides, caso continuassem em circulação, que lá dentro a inoxidável Elizabeth dividia seu tempo aos cuidados do filho Charles e do marido Phlip - um ainda meio combalido pelo vírus, o outro estragado pela idade, enquanto atendia aos telefonemas de interessados em comprar ou alugar seu fabuloso chateau. 

Consta que um dos raros assessores ainda a serviço da rainha sugeriu a ideia sinistra de expor a soberana ao corpo-a-corpo com turistas do mundo inteiro, para fotos pessoais. Desde que, claro, o candidato à selfie apresentasse previamente resultado negativo para Covid-19. E, detalhe, pagasse algo em torno de 150 mil libras pela exclusividade. Isso não significaria a reativação da indústria turística na Ilha, mas sem dúvida traria uma sehora entrada de caixa, a depender do número de milionários interessados na extravagância.

Produtos tradicionais do Reino Unido, dos scotches 18 years old aos chaveirinhos de cabine telefônica das lojas de souvenir, há meses deixaram de ser produzidos. É preciso, entretanto, salvar a dignidade do selo "By appointment to Her Majesty the Queen". Acontece que, na medida em que produtos britânicos de alta qualidade não são mais fabricados por falta de operários que os produzam e de consumidores que os comprem, fica difícil encontrar onde estampar a cobiçada certificação. 

Há ainda estudos que sugerem a viabilidade de locação de centenas de quartos do Palácio de Buckingham e do Castelo de Windsor via sistema Airbnb. Reservando-se, contudo, um dormitório amplo em cada um dos edifícios para membros da família real, a serem acomodados em treliches e sem direito a serviçais. 



Esta é uma obra de ficção.
© Direitos Reservados


sábado, 18 de abril de 2020

DORMENTES DE MAÇARANDUBA



Tudo poderia vir abaixo nesta vida, menos os meus dois dormentes de maçaranduba. São fortalezas de dois metros e meio de altura, apoiando a viga do telhado da varanda e dando suporte para a rede. 

Quando notei aquela lasquinha à toa soltando da base, fui na fé de que era um nada, a remover passando a unha. No que encostei, o susto ao ver entrar a mão inteira. De repente a respeitável tora, vitalícia por natureza, tinha virado um adorno de isopor, daqueles de cenário de novela vagabunda. Mexi os dedos dentro dele e senti uma farinha úmida, soltando fácil a um toque do mindinho. Constatada a ruína, fiz check-up no irmão gêmeo, também na altura da base: idem idem. Sem salvação do chão para as profundezas.

Meus dois dormentes de maçaranduba já estão de cirurgia marcada para amputação dos pés. Como próteses da madeira original, uma fria armação de concreto e vergalhões será montada da grama para baixo. Barbaridade estética que, felizmente, ficará escondida pela mesma terra que acabou por gangrená-los. O que salva é que, do primeiro metro para cima, eles - assim espero - continuarão firmes como naquele dezembro de 98, quando chegaram ao meu pequeno terracinho para assumirem seu ofício. Ali se estabeleceram e se firmaram como totens sagrados, cheios de dignidade. Acima, muito acima das discussões que assistiram. Dos Natais e Réveillons de que participaram. Da lida doméstica que testemunharam e das mijadas de cachorro que aguentaram.

Na terça-feira que vem serão reduzidos a dois meios-dormentes, mas vá lá, fazer o quê? Trago comigo também só meios-sonhos, isso quando sobra tempo de ir à rede pra um cochilo.

Adeus, certezas. Não acredito nem mais um tiquinho em vocês. 




Esta é uma obra de ficção.
© Direitos Reservados