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sábado, 27 de agosto de 2016

ABRIDORES E FECHADORES



- Quando eu entrei por concurso no serviço federal, acumulava função. Olha o absurdo! Naquele tempo, quem abria tinha que fechar a porta também. Era uma escravidão, a gente ficava sobrecarregado. Depois de muita luta do sindicato, conseguimos criar a função comissionada de fechador de porta. Mas antes, não era mole. Tinha dia que encarava três, quatro maçanetas no horário do expediente. Dá pra imaginar? Chegava esgotado em casa, queridão. Só de lembrar daquela época, já me ataca a gastrite.

- Tenha dó, não queria estar na sua pele. Quatro maçanetas pra abrir num dia só, tem que ter Jesus na causa. É a treva.

- E além do desumano desgaste físico, já reivindicávamos mais segurança no desempenho da função. Isso sempre esteve na pauta da categoria. E convenhamos: nós, abridores, estamos muito mais expostos a riscos do que vocês, fechadores. É quando a autoridade entra em um ambiente novo que o risco é maior. Quando está saindo do recinto é tudo mais fácil. O evento, a audiência, a recepção ou sei lá o quê, já foi. É a hora da dispersão, se tivesse que ter algum atentado, já era pra ter acontecido. 

- Não acho, não. O risco é o mesmo. Nosso adicional de insalubridade tinha que ser igual ao dos abridores. Isonomia já!! E tem outra, que o senhor está esquecendo: o que mais acontece por aqui é reunião a portas fechadas. E aí quem tem que dar conta de hora extra atrás de hora extra, varando conchavo de madrugada sem pregar o olho, são os tontos dos fechadores. Vocês, abridores, já estão em casa faz tempo. 

- E a culpa é nossa? É o descanso dos guerreiros, meu amigo. Nós merecemos. Quantas vezes fizemos piquete na porta do Alvorada reivindicando puxadores de porta ergonômicos, para prevenir LER? E quantas vezes acampamos na porta da Presidência do Senado fazendo campanha pelo fim das portas automáticas, que tanto ameaçam o digno exercício da nossa função?

- E continuam ameaçando, né... Aquele senador, como é mesmo o nome dele? Vive falando lá na tribuna que a nossa função não tem cabimento, não tem amparo constitucional, não tem isso, não tem aquilo. Pois não é que o Dodô, o sub-tesoureiro do sindicato, levantou a ficha do bacana e descobriu que ele tem uma fábrica de sensores de presença, em Diamantina? Tá explicado o interesse do cara em querer acabar com a gente. Se ele ganha licitação pra automatizar portas, imagina quanto vai faturar só no Palácio do Planalto!!!

- Pensa que somos figuras decorativas. Imagina o Presidente da República, da Câmara ou do Senado ter que ficar abrindo e fechando portas por onde passa, e a vergonha para o país em ter essas imagens veiculadas pela mídia internacional! E no dia em que faltar energia elétrica? Serão centenas de portas que não abrem e  nem fecham.

- E nós, aposentados compulsoriamente, não estaremos lá pra resolver a parada. Aí sim é que eu quero ver!

- Não é só isso. Veja, por exemplo, a tal H1N1, essa gripe que vira e mexe ameaça todo mundo. Maçaneta de porta é um verdadeiro depósito desse vírus aí, e é mais um risco de vida que corremos. Tinham que criar a função de passador de álcool gel, para desinfetar tudo antes da gente chegar com a comitiva. 

- Escutou? Acho que estão batendo na porta. Será que tinha alguém escutando a nossa conversa?

- Abre logo de uma vez.

- Quem tem que abrir é você. Eu só fecho, esqueceu?





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sábado, 20 de agosto de 2016

MINIMALISMO É O MÁXIMO




Até outro dia restrita ao mundo das artes, aos poucos ela vem virando a palavrinha da vez, nas rodas e nas bocas de emergentes-celebration, aqueles descoladíssimos que conquistaram seu lugar ao flash.

Em mínimas palavras, o minimalismo é a doutrina que entende a felicidade do ser humano como inversamente proporcional à quantidade de recursos ou bens materiais que se possui. Ou, numa definição despojadamente simples, à moda minimalista: quanto mais se livra daquilo que tem, mais rico e realizado o bípede se torna. Só o elementar é bom o bastante. Tão somente o essencial, a plenitude da existência compreendida como algo beirando a imaterialidade. 

Por essas e outras diáfanas definições, conclui-se que só tem estofo cultural e filosófico para praticar o minimalismo quem já foi um dia "maximalista", quem já teve do bom e do melhor vazando pelo ladrão. O endinheirado que entre uma festa e outra, por algum motivo, desencantou-se com tantos e tão confortáveis latifúndios, coberturas e iates onde cair morto. É assim que o minimalismo se entende como escolha - um voto de pobreza, e não o infortúnio de tornar-se pobre. Vá perguntar a um miserável que dorme debaixo da ponte se ele é minimalista por necessidade ou por convicção, e saberá o que estou dizendo. 

O minimalista legítimo é o que se empapuçou de excessos, jamais o que não tem nada de nascença. Se acha cool vivendo com pouco mas mora no Jardim América, não em Belford Roxo. Escassez para ele jamais será privação; será clean. Excentricamente clean. No seu apê, há paredes sóbrias e monocromáticas sem quadro algum pendurado, mas o projeto é assinado pelo Sig Bergamin. Acelga e água frugalmente se equilibram no microscópico cardápio da semana. A acelga já chega picadinha pelo Pão de Açúcar Delivery, a água é San Pelllegrino.  

Ter nada é tudo. O ouro que fique para os deslumbrados, para funkeiro-ostentação, para os que nunca entenderão que esconder é bem mais chic e valioso que mostrar.


Foto: www.conceito.de
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sábado, 13 de agosto de 2016

URINOTERAPIA



Pode ir tirando essa cara de nojo de cima do meu texto: não tenho culpa desse negócio existir e ser o assunto de hoje. Queixe-se com os egípcios, os chineses e os indianos, que mantêm o hábito vivo há milênios e não veem a hora da bexiga encher, abrir a torneirinha, servir uma boa dose com bastante espuma e mandar pra dentro - não sem antes derramar um pouquinho pro santo. 

A ingestão do próprio xixi com fins medicinais, para curar doenças e fortalecer o organismo, é mais comum do que se pensa. E não é só lá no Oriente, não. Pode ser aí mesmo, nos domínios insuspeitos do seu vizinho. 

A primeira urina, aquela da manhã, bem amarelada, é tida como a melhor. Suculenta e caudalosa, é riquíssima em melatonina e em uma série de outros hormônios importantes. Curtida na cama, no tonel da barriga, apresenta substâncias benéficas em alta concentração.

Alergias, doenças autoimunes, infecções, queimaduras e até câncer: nada escapa ao imenso leque curador desse dejeto nosso de cada dia. A popstar Madonna assegura que urinar nos pés é uma bênção contra frieiras, micoses, pé-de-atleta e moléstias congêneres, jurando que não há fungo que resista a um jato bem dirigido.

Entusiastas garantem que ela atua como hidratante, na falta de água potável. Nesse caso, o ciclo acaba tornando-se autossustentável, ou seja, urina-se, bebe-se a dita cuja para depois uriná-la de novo, e assim por diante. Curioso e econômico!

Muitos preferem deliciar-se com a iguaria em pequenos golinhos ao longo do dia, deixando um cálice ou copo sempre à mão, na mesa de trabalho, para ir sorvendo aos poucos. Já outros dizem que, geladinha, não há coisa melhor. Especialmente se acompanhada de um pratinho de tremoço ou de castanha de caju, enquanto se tricota ou se acompanha UFC pela televisão.

A suposta ação antisséptica e bactericida da urina traz, em alguns casos, situações constrangedoras. Como a de uma entusiasta dona de casa que, não contente com frascos de urina em seu armarinho de remédios, levou o mijo também para a cozinha em substituição ao álcool, à água sanitária e ao Veja Multiuso. A coisa terminou em divórcio após um ataque de nervos do marido, ao notar insuportavelmente enfedecidos os pratos, talheres e copos da casa. 

Apresenta a urina notável eficácia cosmética, rejuvenescendo a pele e dando brilho e sedosidade aos cabelos. Uma tal Soninha de Xerém desenvolveu estranha neurose a partir de seu hábito de pincelar urina ao longo da comprida cabeleira. Chegavam a dezesseis demãos por dia. Após cada uma delas, Soninha aguardava vinte minutos (para as substâncias agirem, segundo ela) e em seguida aplicava secador. Depois de um pequeno descanso a operação se repetia. Testemunhas dão conta que seu cabelo chegava a ofuscar os olhos de tanto brilho, porém ganhavam uma desagradável textura de laquê, craquelando-se facilmente ao toque. 

Não são poucos os relatos de dependência e até mesmo ameaças com armas de fogo de urinoviciados a parentes e vizinhos, exigindo micção imediata dos mesmos para poderem dar vazão à chamada urofissura - patologia onde a demanda por quantidades cavalares de urina obriga o indivíduo a consumir baldes e mais baldes de excreção alheia. 


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sábado, 6 de agosto de 2016

SONHO OLÍMPICO




"O melhor emprego do mundo: salva-vidas da Olimpíada tem visão privilegiada.
Uma lei estadual que determina que todas as piscinas do Rio tenham um salva-vidas criou um posto incomum na história olímpica. Além de não ter muito o que fazer, o salva-vidas tem a melhor vista da competição." (Folha de S. Paulo, 2 de agosto de 2016).



O que ele mais desejava na vida era também o sonho de quase todo descendente de Adão: ter um emprego com garantia absoluta de não precisar trabalhar. E conseguiu. Só por alguns dias, mas conseguiu. 

Juntando os aquecimentos, os treinos, as etapas classificatórias e as provas propriamente ditas, eram horas e mais horas ao dia de proveitoso ócio ao abrigo do sol, deixando a mente fluir por onde bem entendesse e descartando definitivamente a possibilidade de precisar pular na água para livrar o Phelps e outros golfinhos humanos do afogamento. 

Foi fácil se acostumar ao dolce far niente e a não querer jamais outra coisa. Bebida, só pedir. Comida, idem. Aborrecimento, nenhum. Cansaço, nem pensar. Quem tinha que trabalhar duro e romper os limites da própria carcaça e dos adversários eram aqueles infelizes ali, curtidos em cloro. Sobrava ócio até para meditação transcendental. As idas e vindas dos nadadores, de uma ponta a outra da piscina, funcionavam como um mantra quase hipnótico. Mas tinha que se policiar para não fechar os olhos, pois aí seria demais - alguém poderia acusá-lo de negligência no exercício da profissão. 

Como nenhuma água é tranquila para sempre, de uma hora para outra o nosso folgado guardião tombou para trás. Alguns membros do staff olímpico acharam que tinha, enfim, sido vencido pelo sono. Mas a coisa mudou de figura quando um espesso cordão de sangue vazou pela caixa craniana fraturada. Bala perdida. Morte instantânea em uma das provas de classificação mais disputadas - a dos 50 nado livre. Não era a competição final, mas estava sendo televisionada. O corre-corre chamou a atenção dos nadadores, que lançaram-se quase ao mesmo tempo fora d'água para tentar dar salvação ao salva-vidas, numa surreal e trágica inversão de papéis. Expectadores, juízes, repórteres, preparadores físicos - todos cercando a vítima feito baratas tontas, sem saber se acreditavam na versão carioca da bala perdida ou na versão terrorista da bala certeira.  



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