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sábado, 26 de junho de 2010

PALAVRA PERDIDA




Ao meu pai


Eu ando atrás da palavra, eu juro que ando. A que talvez esteja no dicionário que outro dia mesmo você me perguntou se deveria ter em casa, para seus versos e rimas. Lembra, num dos últimos emails que você me passou, o assunto era o dicionário. Foi quando você – bem a seu modo, sem muita cerimônia – resolveu ficar mudo. E palavras costumam perder serventia quando se emudece.

Desde então muitas delas, além de tornarem-se inúteis, ganharam sentido diverso. Se me falavam em traqueostomia, eu entendia seresta. Se me falavam em sedação, eu entendia bravura. Se me falavam em hospital, eu entendia passarinho. Dos raros de voo e trinado. Um Uirapuru, quem sabe? Se me falavam em cateter, eu entendia realejo, num dialeto de Babel que aqueles homens e mulheres de aventais azuis e cheiro de éter nunca compreenderiam. Sabia que havia ali, num canto de boca cheia de tubos e respiradores, o verbo-senha, o pé-de-cabra de um milhão de portas, o código de que você foi guardião por 86 anos.

Essa palavra, que você não consegue mais pronunciar, eu seguirei buscando. Vou atrás do tal dicionário, quem sabe eu a encontre por lá. Gritarei sozinho, mas bem alto e por nós dois, essa palavra aos ventos todos. Sei que isso não te deixará menos mudo, mas você não estará tão surdo que não a possa escutar.


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domingo, 20 de junho de 2010

ABBEY ROAD



(Texto publicado em 2005)



LADO 1

- Vou começar bem fácil, depois a gente vai esquentando.
- Manda.
- Faixa dois do Let it Be?
- Dig a Pony.
- Quantas músicas tem o Álbum Branco?
- Trinta.
- Qual o fotógrafo da capa do Rubber Soul?
- Robert Freeman.
- Quem era a Martha, da música Martha My dear?
- A cadela do Paul McCartney.
- Quem inspirou Something?
- Pattie Boyd.
- O que Tia Mimi disse para John Lennon, quando ele comprou a primeira guitarra?
- "Você nunca vai ganhar a vida com isso".

Não tinha jeito, ele sabia tudo. Era capaz de dizer nome completo e endereço dos avós da Barbara Bach, mulher do Ringo.
Gabava-se de conhecer e catalogar, num caderninho surrado com o selo da Apple na capa, todas as mensagens cifradas e alusões a drogas do Revolver e do Sargeant Peppers. As bem manjadas e as que ele, sozinho, jurava ter descoberto. Sabia também que Paul estava vivo, e bem vivo. Ele mesmo o tinha visto num show em 1990 no Maracanã. Ainda assim conhecia 72 pistas que indicavam o contrário.

Tal pai, tal filho. E o menino, de 8 anos, ia pelo mesmo caminho.

- Quanto é 64 dividido por 16?
- Four. Como os Beatles.
- A capital da Inglaterra?
- Londres, uma cidade que fica perto de Liverpool.
- Dê um exemplo de sujeito simples.
- George Harrison.
- E de sujeito composto?
- Lennon & McCartney.


Dos discos todos, o favorito era Abbey Road - o célebre álbum com os quatro na rua homônima, passando pela faixa de pedestres. Se além de tocar o seu Abbey Road falasse, teria muito o que contar. Idas e vindas, festinhas na garagem, quedas nas mãos de bebuns, mudanças de casa. No tempo da faculdade, foi com ele pra república. Fiel escudeiro, trilha sonora de bons momentos e maus bocados. Era com ele que espantava o sono nas vésperas de prova e embalava os sonhos nas vésperas dos encontros. Cheio de estalinhos, riscado no começo do "Come Together" e no fim do "Golden Slumbers", era sempre ele que encabeçava a pilha, com o papelão da capa já esfarelando. Uma marca de copo, em cima da cabeça do Ringo, formava uma espécie de auréola. Santo Ringo, que soube segurar a onda nas brigas e ameaças de separação. De tanto entrar e sair do prato da vitrola, o furo foi abrindo, laceando, ficando quase oval. Lá pelos anos 80, quando tinha aquele 3 em 1 da National, cansou de gravar suas músicas em fitas cassete para os amigos. Uma vez foi de empréstimo pra casa de uma paquera. Voltou com uma carta perfumada dentro. Almíscar. O perfume durou pouco, a paquera menos ainda. Mas o velho Abbey continuou lá, igual aos Beatles - forever. Com o tempo, foi virando relíquia. Era a primeira prensagem brasileira, edição rara. Passou a guardá-lo no fundo do maleiro e comprou uma outra cópia mais recente. Em vinil, é claro.


LADO 2

Londres, 2004.
- Não é essa a rua, pai. A gente deve ter errado o caminho.
- Como não? Olha o mapa, é aqui mesmo. Abbey Road, aqui estamos nós!
Não queria dar o braço a torcer, mas a dúvida do menino era sua também.
Viu que o lendário fusca branco, placa 28 IF, estacionado à esquerda na foto da capa, não estava mais lá. Ele pensou alto:
- E nem poderia estar...
- Falou alguma coisa, pai?
- Nada não, filho.
Notou que faixa de segurança era igual a todas as que ele já tinha visto. Que quase nada restava daquele cenário mítico. A maçaneta da porta do estúdio, que a Rita Lee lambeu com adoração devota, provavelmente já tinha sido várias vezes trocada. Com a capa do bolachão nas mãos, ele comparava a foto com aquilo que via agora. As árvores certamente deviam ser outras, o trânsito era mais intenso. O céu também não era azul como naquele agosto de 35 anos atrás. Tirou os sapatos, para sentir a textura do asfalto e alcançar o estado de graça que tanto ansiava. Estava lá, exatamente onde eles estiveram. Em frente ao estúdio onde gravaram quase toda a sua obra, e nada de atingir o nirvana. O coração não disparou, ele não suou frio, as pernas não tremeram. Percebeu que perto da sua casa existiam ruas mais parecidas com a Abbey Road do que a própria Abbey Road. Por alguns minutos ficou ali, parado, como que esperando uma resposta ao próprio desencanto. E deu-se conta que Abbey Road era uma rua que ele mesmo havia pavimentado, ligando os Beatles às suas vísceras.
Entregou a câmera para o filho e pediu que ele clicasse no momento em que atravessasse a rua. Esperaram que alguns carros passassem e fez o mesmo com o menino. Mas bem rápido, porque um bando de turistas barulhentos, trazidos por um guia de sobretudo marrom, já tomava conta de toda a faixa.

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sábado, 12 de junho de 2010

QUEM QUISER QUE CONTE OUTRA


Num reino muito distante vivia Branca de Neve, que, já beirando os 50, entraria com uma denúncia no Procon ao constatar que não seria feliz para sempre coisíssima nenhuma, conforme prometera o estúdio de animação. Frustrada com o casamento, enganaria rotineiramente o príncipe sem maiores dramas de consciência, cada dia da semana com um anãozinho – mas sempre com camisinha. No caso, camisinhazinha.

O príncipe, ao cavalgar pelos arredores do reino enquanto era corneado, avistou um dia a casa de Prático, o mais esperto dos três porquinhos. Papo vai, papo vem e o futuro monarca convenceu o suíno a firmar sociedade com ele num frigorífico para produção de bacon sem colesterol e 0% de calorias. Mas Prático não foi esperto o suficiente para desconfiar que ele entraria com o bacon. Pensava que sua participação se restringiria à gestão estratégica do empreendimento, por conhecer a fundo o produto desde leitãozinho.

Emitido o atestado de óbito – e de burrice, o príncipe contrata o marceneiro Geppeto para fazer o caixão de Prático, cujo velório se realizaria após a missa de porco presente. Foi quando Pinóquio resolveu meter o nariz na história: “Meu faro diz que esse negócio de bacon light é muito promissor”, comentou ele com o napolitano vovozinho.

“Sou o sócio que todo empreendedor pediu ao Sebrae”, argumentou Pinóquio ao visitar o príncipe em sua fabriqueta de toucinho. “Se mentir ou tentar enganá-lo, meu nariz me denunciará”. Mais que convincente, o argumento era irresistível. Tinha à sua frente o sócio ideal: um sujeito compulsoriamente honesto!

Mas se associar empresarialmente ao príncipe não significava garantia de recursos fartos. A arrecadação de impostos no reino se resumia a umas poucas patacas, graças à inoperância da máquina administrativa. O jeito era arrumar um terceiro sócio – o capitalista. De imediato Pinóquio lembrou-se de Dona Baratinha, a que tem fita no cabelo mas jamais deixaria o dinheiro na caixinha: todos sabiam que aplicara tudo, incluindo o espólio de João Ratão, num fundo de investimento agressivo para ter lucro rápido e desbaratinar, pegando onda em Saquarema. (A título de curiosidade, João Ratão empanturrou-se até a morte com o bacon de Prático, um dos muitos pertences da substancial feijoada da Senhora Baratinha).

Ao ser consultado para aceitar a proposta, o famoso inseto da família dos blatídeos esquivou-se, alegando os planos de desbaratinamento acima citados e que já estava de malas prontas para a paradisíaca cidade fluminense. Mas indicou o Gato de Botas como parceiro no projeto, embora o felino tivesse sido um perseguidor implacável do seu amado João Ratão, nos porões de uma repartição pública.

Longe há muitos anos da burocracia estatal, o Gato de Botas andava agora de rabo preso ao jogo do bicho. Com as patas sobre a mesa do seu bunker e cofiando calmamente seus bigodes, recusou com polidez a oferta de Pinóquio e do príncipe: “O convite é tentador, mas não é zoológico abandonar nesse momento os meus negócios. Já falaram com o Shrek? Também ouvi dizer que a Cinderela, com aquela carinha de santa, tem cem mil contos de fada depositados na Suíça. Aposto que não sabiam disso, né. Um verdadeiro golpe de mestre...”

- Mestre... claro, o anão! Como não pensamos nele antes? Bem debaixo das minhas barbas! – retrucou o príncipe.

- E do meu nariz!, complementou Pinóquio. Com o trabalho nas minas, deve ter muito dinheiro guardado, o bastante para fazer do Diet Bacon um fenômeno nas gôndolas. Vamos já para o seu reino, príncipe.

Como a Lei de Murphy impera sempre, inclusive no mundo do faz-de-conta, aquele era o dia do Mestre dividir os lençóis com a insaciável Branca. Ou melhor, os maus lençóis: o príncipe e Pinóquio flagraram Branca de Neve no sofá, em sensuais preliminares com o Mestre, o Patinho Feio e a Bela Adormecida, que na ocasião parecia mais acordada que nunca.

Gritos, pancadas, tiros, golpes de espada, sangue derramado.

Até que chegou o soldadinho de chumbo, dando voz de prisão a todo mundo.

(continua qualquer dia desses)


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sábado, 5 de junho de 2010

MUROS


Se é preciso existir muros, que sejam de preferência cobertos de musgo espesso, góticos, úmidos e solenes, como que saídos de um filme de Tim Burton. Muros de hera, infiltrações e descascados, menos delimitadores e de alguma forma mais humanos, mesmo sendo muros. Possa o seu reboco ser bem mole e esfarelento, e aceite de bom grado o nome de quem se ama pichado ou em baixo relevo – o que for mais fácil e menos perigoso, antes que alguém chegue e transforme a ocorrência em boletim. Que escore o amasso dos amantes e acolha as lamentações se houver pranto a pôr pra fora, desde que esse pranto seja sereno e silencioso a ponto de não assustar as crianças que brincam lá do outro lado. Lá, onde o muro é de outra cor e testemunha histórias outras. Natural que o muro faça divisas, pois para isso foi erguido, mas que não cause divisões e sirva mais para proteger homens, cachorros e roupas no varal que para demarcar feudos de Mefisto. Não deixe que estraguem o muro tornando o muro trincheira, com cacos de vidro e arames farpados. O muro é propriedade do mundo e de ninguém em particular, muros devem ser muros pelo direito dos muros existirem e mais nada. Se há os que prendem há também os que são lousas de poema, e é triste que os primeiros sejam tão menos raros que os segundos. Os muros que se prezam têm buracos de um lado a outro, são comunicantes para as trocas de receitas, fofocas e gemidos comprometedores. Mantenha, por favor, esses buracos largos o bastante para que a vida alheia se devasse e se escancare, fazendo a delícia dos vizinhos. E para que a maledicência, esse defeito de fabricação da raça, possa se espalhar insidiosa pelo quarteirão.

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