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sábado, 29 de outubro de 2016

PEDRA NA CONSCIÊNCIA



Um casal de turistas americanos, arrependido por ter levado embora uma pedra do Coliseu há 25 anos, resolveu devolver o "souvenir" para as autoridades romanas, acompanhado de um pedido de desculpas.
www.bbc.com, 7 de maio de 2009.


Se o Coliseu, o Fórum Romano e adjacências formam um imenso conjunto de ruínas a céu aberto, é claro que com tempestades, tremores de terra e outros flagelos geológicos e meteorológicos a fragmentação das paredes e colunas só vai aumentando com o passar do tempo. E isso aumenta também o acúmulo das pequenas pedras pelo sítio histórico, resultantes desse desgaste.

Tomando como fato ser impossível manter centenas de arqueólogos e restauradores trabalhando de sol a sol para repor cada pedacinho de mármore ou reboco milenar ao seu lugar de origem, tão logo venham a se desprender, é razoável supor que os fragmentos espalhados pelo chão sejam tão valiosos para a humanidade quanto as colunas às quais pertenciam.

Milhões de turistas passeiam todo ano por essas ruínas. Justo ou injusto, lícito ou ilícito, ético ou não, o fato é que eles olham para um lado, depois para o outro, assobiam uma cançoneta napolitana com cara de quem não quer nada, agacham-se sutilmente, fingem que estão amarrando o sapato e... pronto. Do chão direto para o bolso. Uma pedrinha de nada a menos no Coliseu vai virar uma gema de valor incalculável na estante de casa. Imagina só o espanto dos amigos e vizinhos quando olharem aquela relíquia!

Fará falta? Há controvérsias. Para cada milhão de turistas não haverá um bilhão de pedrinhas a roçar por seus sapatos, que jamais serão recolhidas? Ou, ao contrário, o correto será deixar que essa farofa arqueológica continue intocável, ainda que não mais faça parte de muros, esculturas e monumentos?

Estava em frente ao Templo de Saturno, e era sua vez de decidir o que fazer. O casal americano acabou se arrependendo, mas ninguém viu o que fizeram e nem deu pela falta da pedra que surrupiaram. Mas e se hoje houvesse alguém da polizia amoitado atrás de uma coluna jônica, a postos para dar ordem de prisão assim que se abaixasse para amarrar os sapatos? Ou uma câmera de segurança entre o polegar e o indicador de uma daquelas estátuas sem cabeça? Talvez o flagrante acontecesse na saída das ruínas, com a imprensa italiana com seus holofotes e microfones pronta para registrar o momento em que fosse detido e algemado.

Por todos os deuses romanos, o que fazer? Debatia-se nesse dilema quando sentiu o chão tremer, ao mesmo tempo em que se ouvia um ensurdecedor toque de sirene, vindo dos lados do Arco de Constantino. 



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sábado, 22 de outubro de 2016

BOBO, SIM. RETARDADO, NÃO




Imagem: clipartkid.com

Estavam os dois, o tempo todo, a um passo da morte. O provador oficial do rei, que de um copo d'água até faisão à doré, deveria degustar de antemão tudo o que se destinasse às goelas monárquicas; e o bobo da corte, que por conta de uma piada mal-contada poderia virar bobo ao molho pardo - bastando para isso um estalar de dedos na direção do carrasco.

- Meu caro bobo, você é mesmo um sujeito de sorte. Fica aí com essa roupa de coringa de baralho, saracoteando e cheio de ha-ha-ha enquanto eu levanto todo dia achando que vai ser o último, pedindo aos querubins e serafins para que eu não mande pro bucho nenhum canapé estragado.

- Tá achando que a minha vida é fácil... E quando o maldito do rei acorda de ovo virado, depois de broxar com a rainha? Não tem pantomima, micagem, careta ou anedota que dê jeito. O panaca aqui tem que rebolar para arrancar um risinho meia-boca do patife de sangue azul. Se acontecer a desgraça dele não dar risada, tenho que rogar a Deus para que meu castigo seja uma temporada no calabouço ao invés da forca ou da fogueira. Isso se não optar pelo empalamento.

- Ah, mas o meu infortúnio é maior. Como todo reizinho devasso, há tempos atrás ele juntou 18 mulheres na cama e saiu de lá com um tipo raro e devastador de sífilis. O médico prescreveu uma poção pior que jiló com jatobá. Que eu tive que tomar junto com ele, mesmo não tendo participado da orgia.

- Não é fácil, não. Comigo, são quatro gerações de bobos na família. Do meu bisavô até este infeliz que vos fala,  vamos requentando os mesmos e desgastados xistes, trocadilhos infames, frases de efeito duvidoso, tortas na cara, suspensórios que caem mostrando cuecas ridículas e mais um imenso repertório de baboseiras. Mas a sua função tem mais responsa, né. Pelo risco de morte iminente, imagino que o amigo receba um polpudo adicional de insalubridade.

- Que nada. Com essa crise grassando pelos feudos, o que não falta é gente querendo o meu lugar ganhando a metade do salário, e isso me sujeita a aceitar condições inóspitas de trabalho. Fora que o gosto culinário do rei não coincide em nada com o meu. Carne, por exemplo. Para mim tem que ser bem passada, e ele só come sangrando e pingando gordura, o que me dá ânsia de vômito. Mas, fazer o quê. São ossos do ofício. Ou melhor, carnes.

- Compreendo o seu infortúnio, amigo, mas você é feliz e não sabe. Ponha-se no meu lugar e imagine-se fazendo piruetas, dando cambalhotas e tendo que tirar da cartola um gracejo inédito a cada meia hora, que agrade aos instáveis humores desse déspota adiposo.

- Você falou em se colocar no lugar, o que me sugeriu uma ideia... pode parecer absurda a princípio, mas se der certo nos garantirá alguns meses de sobrevida.

- Diga.

- Eu me disfarço de você, e você se disfarça de mim. Vamos inverter os papéis. As piadas e gracinhas que eu conheço você ainda não contou, o que fará o monarca rir. Por outro lado, seu estômago certamente está bem melhor que o meu para provar o que vier pela frente. O que acha da ideia?

- Meu caro provador, eu posso ser bobo, mas não retardado. Quando a minha piada dá chabu, eu ainda consigo arriscar uma cosquinha no sovaco para tentar livrar minha pele. Mas se pego uma coxa de frango com cianureto, é óbito instantâneo. Me desculpe, mas terei que declinar do convite. A propósito, está tocando o sininho. Hora da ceia...


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sábado, 8 de outubro de 2016

VIDA DE SANTO




Engana-se quem pensa que vida de santo é um infinito dolce far niente. Nem ao mais preguiçoso deles é dada a graça de ficar chupando chicabon eternidade afora. E aquele estereótipo de se recostar em nuvens, entre cânticos e cítaras, é mais coisa de anjo que de santo – e anjo de quadro barroco, idealizado e fora de contexto histórico.

Santo passa maus bocados, verdade seja dita. E nem por isso os devotos lhes tratam com o devido respeito, o respeito que o santo, justamente por ser santo, exige.

Por exemplo, esse estranho hábito terráqueo de entornar no mínimo 10% da cachaça no chão da venda, dizendo que é pro santo. Posso dizer com certeza que todos eles abrem mão da homenagem e passam muito bem sem ela. Se gostasse mesmo de água que passarinho não bebe, santo não seria santo. Muito pelo contrário.

Depois, tem outra: manda a Justiça Divina que, toda vez que se oferece algo pro santo, e não se especifica pra qual santo é o presente, a oferenda seja repartida por todos indistintamente. Vai daí que cada gole oferecido é dividido, em partes iguais, para a santosfera inteira. Sabendo-se que os santos são atualmente milhares, a cada um cabe geralmente uma gotinha de nada – e não é isso que vai desviar a santaiada do bom caminho. Até aí, nada de mais. Mas acontece que se a gente levar em conta que cada pinguço manda pra goela pelo menos uns três copos da marvada, e que só no Brasil temos milhões de alcoólatras, o estrago divino é grande, provocando em vários deles internações frequentes – quando não diárias. E as mais prejudicadas são as santas, que com um tiquinho de martini já estão trançando as pernas.

Outro problema sério são as imagens dos santos – tanto as pintadas quanto as esculpidas. Tem santo lá em cima que excomunga sem dó alguns dos displicentes artistas terrenos, pela falta de semelhança deles com as imagens que os representam. Esse tipo de episódio produz verdadeiras catástrofes estéticas. Outro dia mesmo toda a corte celeste saiu em passeata, com cartazes, faixas e gritos de guerra, protestando contra um lote de 250 estátuas de Santa Edwiges que saiu de fábrica com cara de Rita Cadilac. Um repulsivo sacrilégio, que merece punição exemplar. Para evitar novos contratempos, São Tomé propôs em assembleia a instituição do selo “Ver para Crer”, que certifica a imagem beatificamente reconhecida, ou seja, aquela que tem a benção do respectivo santo e que guarda nítida semelhança com a sua figura dos tempos de carne e osso.

Além desse tipo de desrespeito, há também injustiças que agridem e irritam a turma de auréola. A maldosa e irônica expressão “Na descida todo santo ajuda” vem merecendo, de uns tempos para cá, um revide da parte dos ofendidos. Julgam eles que a frase denota uma certa acomodação, dando a entender que os santos têm braço curto e que não se empenham nas tarefas mais difíceis, onde só um milagre pode resolver a parada. “Não vamos ajudar mais na descida, ainda que o carro do sujeito esteja sem freio. Pois que se espafitem, aprendam a lição e vão para o inferno” desabafa um conhecido santo, que não quis se identificar.

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