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sábado, 29 de março de 2014

EU TENHO MUITA COISA PRA FAZER COMIGO MESMO




Estar só e inerte é quase um incômodo. Um sentimento de culpa atormenta as pessoas quando não encontram alguma coisa para fazer. E alguma coisa pode ser qualquer coisa que não seja estar com elas. O fato de se encontrarem consigo as amedronta, o silêncio é confundido com inoperância e odeiam a possibilidade do ócio criativo como fomentador de ideias. É preciso dar sentido utilitário a tudo, pois tempo fazendo nada é tempo jogado fora.

Já eu, particularmente, acho que sou uma razoável companhia para mim. E não vejo a hora de trocarmos uma figurinha, sempre que temos oportunidade, para estreitarmos o vínculo.

Confesso que entre eu e mim ainda não há suficiente empatia, mas esse estranhamento é compreensível entre os que não se conhecem a fundo. Com o tempo tudo tende a melhorar, depois que formos morar juntos e dividir a escova de dentes. Pelo que li em alguns almanaques de autoajuda, a tendência é irmos nos afeiçoando a ponto de não fazermos mais nada a não ser que seja a quatro mãos.

Como disse no título, eu tenho mesmo muita coisa pra fazer comigo. De cara, o que nunca fiz e que me atiça desde os 8, mais ou menos: deixar um gravador ligado no criado-mudo para flagrar tudo o que falo dormindo, quando dou a sorte de pegar no sono. Mas me desanima a possível decepção de ouvir horas de grunhidos ininteligíveis, quando for conferir o resultado.

Há também algo de saneador e instigante na arrumação de gavetas. Dando uma limpa e organizando as da casa, a nova ordenação parece refletir nos armários da mente. O que favorece o relacionamento entre ambas as partes, ou seja, entre eu e mim.

Poderia citar outras centenas de formas de ficar mais íntimo de si. Inspirar pelo nariz e expirar pela boca, mastigar 64 vezes cada bocado de comida, aproveitar o tempo na ergométrica para fazer meditação, olhar para os detalhes do seu rosto (e não para o caminho da lâmina) quando faz a barba.

Presumo que, no meu caso, ajudaria bastante ir à cata das fotos que faltam de mim. Desde sempre, sou eu quem tira as fotos em todas as ocasiões. Quero procurar quem fez fotos minhas, sem que eu soubesse, compadecido da falta de registros de mim mesmo para a posteridade. Onde a minha foto batendo fotos dos outros? Quem cometeria, anonimamente, esse ato solidário?

Embora tentasse esconder de mim, eu sempre soube que Papai Noel não existia. E tão logo ganhei altura e idade suficientes para carregar um saco acetinado de brinquedos e meter na cara uma escrota barba de algodão, passei a ser o Santa Claus oficial da família. Sacanagem. Fingindo ser outro, deixava de novo de ser eu. E ia adiando sempre para o próximo Natal o presente mais cobiçado: dar-me embrulhado para mim mesmo.

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 22 de março de 2014

MOMENTO DO TEMPO




- Ouvi falar que escalaram o pessoal do horóscopo pra cobrir as férias da turma da previsão do tempo.
- É verdade. Os caras que redigem o horóscopo pra peixes, áries e touro pegam a previsão da região sul. Quem faz leão, sagitário e capricórnio fica com a região centro-oeste. E assim por diante. Daqui a pouco vão passar o comunicado oficial.
- Mas vai sobrecarregar os caras. E hora extra que é bom, nada. O Financeiro não libera. Por mais que seja divertido ficar inventando o futuro dos outros e o tempo que vai fazer, o trabalho é dobrado. Só se a gente pegar uns foquinhas, pra um freelance não remunerado.
- Não precisa. A equipe do horóscopo é boa de imaginação. Eles estão costumados a se virar com 12 signos, 5 regiões não vão fazer diferença. E ninguém tem que ficar preocupado caso acabe chovendo ao invés de fazer sol. Se o CPTEC/INPE, a Somar Meteorologia, o INMET, o Cepagri, o Climatempo e o escambau, com todos aqueles satélites erram sem parar, o máximo que pode acontecer é a gente acertar uma vez ou outra.
- Espera aí que eu tive uma ideia mais inteligente. Considerando que eles erram todas, e ultimamente tem sido todas mesmo, o negócio é a gente pegar primeiro o boletim deles e prever sempre o oposto. A nossa chance de acertar será altíssima. Por esse método de inversão, eu diria que é de quase 100%.
- Boa! E quanto mais a gente acertar, mais pessoas vão passar a ouvir o nosso programa, mais audiência a gente vai ter...
- E mais anúncios vão pingar.
- Pingar, não. Sem trocadilho, vai chover publicidade no "Momento do Tempo".
- De tanto errar, nos últimos meses os institutos oficiais têm sido inespecíficos. Podem reparar. Falam em chuvas isoladas variando de intensidade "em grande parte do país", camadas de nebulosidade se formando lentamente, frente fria das Galápagos que pode ser que chegue por aqui entre quinta e sábado da semana que vem, máxima variando entre 14 e 39 graus sei lá onde, coisas assim, que não tem como errar.
- Então, quando a previsão for inespecífica, a gente também fica em cima do muro. Zona de conforto, sem instabilidades, entende?
- É, faz sentido. Acho que vale mais a pena a gente implementar essa estratégia da inversão do que botar o povo da redação pra ficar inventando previsões sem pé nem cabeça. E, além de tudo, não dá trabalho. Inverteu, tá pronto. É só botar no ar.
- Só que a Rádio corre o risco dos institutos de meteorologia começarem a acertar. E aí, como ficamos?
- Acho que desse susto a gente não morre. Mas, se acontecer isso, vamos para o inespecífico. Até eles começarem a errar de novo, então voltamos para a estratégia de inverter as coisas. Simples e seguro. Se der tudo certo, periga até a nossa Rádio virar referência.
- Já pensou? Um monte de outras emissoras indo na cola do que a gente falar, sendo que o que a gente disser será uma fraude, já que divulgaremos o contrário da previsão científica... Vixe Maria...
- É o que se pode chamar de rigor jornalístico.
- Ô.


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sexta-feira, 14 de março de 2014

ÚLTIMA VONTADE




- Como era da vontade do senhor Arquibaldo Calixto, e passados 30 dias do seu sepultamento, cabe-me agora abrir este envelope, à frente de todos da família, para conhecermos o destino que se dará ao seu espólio. Posso começar?
- Corre logo com isso, doutor, que eu já estou gastando por conta o que me é de direito.
- Aos dezoito dias do ano da graça de dois mil e ... bla, bla, bla, bla, bla, bla. Ei, espera aí...
- O doutor tá ficando verde, a mão tremendo... o que está escrito nesse negócio?
- Ele... ele está dizendo aqui que deixou tudo... não é possível... deixou tudo para mim! Lendo para vocês, textualmente: "Meus filhos e minha mulher não são merecedores de consideração nem de coisa nenhuma, muito menos de herança". Desculpem, não sou eu que estou dizendo, é o que está escrito aqui, o desejo do falecido. Que situação, a minha. O envelope estava lacrado, vocês testemunharam a abertura. Continuando: "O senhor Salustino, na qualidade de titular do cartório da cidade, vem demonstrando, perante a lei de Deus e a dos homens, que é um sujeito digno e de caráter incorruptível, qualidades que nenhum membro da minha família possui". É constrangedor isso tudo, eu fico embaraçado...
- Continua, doutor.
- Bom, o texto avança e entra em pormenores que denigrem muito cada um de vocês. Acho que não é o caso de prosseguir...
- Começou, agora vai até o fim. Vamos ver até onde chegou aquele velhote filho de uma...
- Como vocês sabem, pela lei, eu sou apenas um executor testamentário, legalmente incumbido de fazer valer a vontade dos falecidos... Olha, eu posso ter recebido, por este testamento, a herança. Mas também posso abrir mão dela em favor de quem eu desejar. Menos da família Calixto, é claro, pois esta não foi a designação do morto. Ai, que situação!
- Então, o que o senhor pretende fazer?
- O que me parece correto, num caso desses. Penso em transferir o que me cabe em favor da Igreja, ou dos mais necessitados, alguma instituição de caridade. Não ficaria bem eu aceitar toda essa fortuna, ainda que esteja no meu direito. Só fazendas, são 16. Bom, vocês sabem tanto quanto eu o tamanho do legado.
- O senhor doutor está é se fazendo de santinho. Decerto vai providenciar uma triangulação, passando os bens para um orfanato, por exemplo. De comum acordo com o mentor da entidade, depois de um tempo faz ele doar tudo para a amante que certamente o velho tinha e não queria deixar no desamparo. Essa sacanagem deve ter sido combinada "de boca" com o velho, antes dele bater as botas. Essa é que é a verdade, não é? E o senhor doutor há de ficar com uma parte boa da dinheirama, em troca do servicinho prestado...
- Não fosse eu um homem justo e ponderado, já lhe teria arrebentado todos os dentes com essa insinuação difamante.
- O senhor não seria tão perverso. Além de me deixar sem um tostão, eu ainda ficaria banguela. É ruim, heim.
- Em respeito ao saudoso Arquibaldo, vou prosseguir a leitura. Bla, bla, bla... Ai, meu Deus do céu, essa não!
- Fala, desgraçado, que foi agora?
- Continuando o que o finado determinou: "Isso tudo o que eu escrevi até agora não vale nada. Sei que a leitura do testamento é presencial e em voz alta. Se até este momento da leitura ninguém da minha maldita família interromper para falar alguma coisa, minha herança será repartida, na forma da lei, entre os herdeiros legítimos. Mas, se alguém questionou alguma coisa, então o dono do cartório pode, de fato, ficar com tudo. E se assim for, que faça bom proveito.

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sábado, 8 de março de 2014

GINI É UM GÊNIO





O homem foi taxativo quando falou comigo no sonho. A garrafa lá no canto do quintal, junto com outros velhos vasilhames. Uma crosta grossa de pó encobre o poder daquele entulho de vidro sobre todas as coisas, e nem precisa esfregar: tire a tampinha enferrujada e espere pra ver. A garrafinha verde era a versão terceiro mundo do achado do Major Nelson na Praia dos Cocos. Deus deixou lá um tiquinho Dele, louco de quem souber e não tirar proveito. Eu era o terceiro a quem se dava a graça. Os outros dois já chafurdavam em champagne e caviar, correndo mundo em jato próprio, acendendo charuto com nota de cem. Assim me disse o homem do sonho.

Tentar não custa, vamos a ela com a fúria de quem se vinga das megasenas não contempladas, dos contos do vigário sofridos tantas vezes, dos sapos engolidos, das milhares de manhãs de segunda encaradas com a fleuma e a palidez de quem não tem outra saída.

E a coisinha bem-aventurada caía no meu colo sem miséria de pedidos - nada de três desejos e basta. A sorte grande vinha sem racionamento, pra enjoar de enriquecer. Nunca mais ter que vender o almoço para comprar a janta, implorar fiado, refrescar a família em piscininha de lona na laje do muquifo.

Às favas com essa miséria de tampa de iogurte e água no xampu. Minha garrafa vai jorrar gastanças, haras de mangalarga, partes majoritárias em empresas de minério. Gini parece me olhar também, à medida em que me aproximo dela. Tudo indica que o homem do sonho está comigo, me escoltando para que eu mantenha a calma. Chegou a hora. Mais uns passos. Vamos lá.

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 1 de março de 2014

POLONAISE




- Este ré bemol realmente está um atentado ao ouvido. Faz tempo que está desafinado desse jeito?
- Mais de ano. Vou deixando, evitando esbarrar nessa tecla quando toco, pra não acabar com a música.
- O problema é que agora não segura mais afinação. Vou ter que trocar a cravelha. Se o senhor me chamasse assim que notou que estava desafinado... Que curioso, nunca atendi cliente no carnaval. Ninguém chama pra afinar piano nesses dias. Já tinha até planejado uma semaninha em Teresópolis, com a família, quando o senhor ligou. Piano em casa já é raridade hoje em dia. Gente querendo tocar no carnaval, então... Pleyel, esse piano aqui é uma lenda.
- Tem quase vinte anos comigo. Estava encostado no porão de um convento. Uma das madres tocava de vez em quando. Ela morreu e o instrumento ficou parado, até que deu cupim e resolveram vender.
-  Personnalisé pour Frédéric Chopin!*
- Que foi que você disse?
- Aqui, escrito em grafite num selo, perto do pedal.
- Quer dizer o que isso aí, moço?
- Nada.
- Como assim, nada?
- Este piano não vale nada. As cravelhas estão todas estragadas, a madeira está que é só cupim, o marfim das teclas já vai começar a soltar...
- Do jeito que o senhor fala, não sobra muita coisa.
- Posso levar embora, mas pago pouco. A despesa que eu vou ter com o transporte é maior do que o preço de mercado dele.
- Mas é um Pleyel! Como o senhor mesmo disse, uma lenda…
- Um Pleyel destruído pelo tempo. A fábrica, inclusive, fechou as portas em novembro de 2013. Este aqui é apenas mais um, dentre duzentos e cinquenta mil produzidos na França, em mais de duzentos anos.
- E aquele negócio escrito no selo? O senhor arregalou um olho quando leu…
- Imagina, é só nome do funcionário que fez o instrumento. Um tal de Frederico. Do jeito que esse piano acabou ficando, devia ser um aprendiz na época.
- Ah.
- E aí? Vamos desocupar espaço?
- Oito mil e quinhentos reais.
- Pago no máximo três mil e setecentos.
- Tá bom, pode levar.
(Leva mesmo essa porcaria, seu trouxa. Se fosse um perito mesmo, teria percebido que o selo é falso, que foi envelhecido com betume e que o lápis que escreveu o nome de Chopin é coreano).

*Sob encomenda para Frédéric Chopin


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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