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sábado, 29 de junho de 2013


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Abandonando o pedestal onde merecidamente repousa sobre louros, Mestre Duña, num assomo de humildade, se nivelou a nós mortais para dissecar alguns enigmas que há muito intrigam a alma humana.

Frases, comentários ou mesmo interjeições jocosas desse Aristóteles moderno transformavam-se instantaneamente em citações, máximas, enunciados, fórmulas e teoremas. Tais aforismos saíam desgovernadamente de seus lábios, ora em golfadas, ora aos borbortões, mas sempre com a chancela singular de quem é Doutor Honoris Causa pelas Universidades de Harvard, Oxford e Unip.

No intuito de testemunhar o inusitado torvelinho cultural, repórteres da BBC e da National Geographic, PHDs, filósofos e cientistas de todas as vertentes do conhecimento se espremeram por três dias defronte à choupana duñesca, alvo de peregrinação de muçulmanos e católicos, budistas e neo-pentecostais.

As aparições do Mestre se sucediam em intervalos regulares, à janela do seu quarto, onde o Iluminado se apresentava invariavelmente trajando sua túnica de lantejoulas cor de abóbora e azul celeste, a postos para dar vazão à sua cornucópia de saber.

Vamos agora a alguns excertos dessas 72 horas de bem-aventuranças.

Lan House
Trata-se somente de um nome afrescalhado para a conhecida loja de armarinhos e aviamentos, tão familiar às nossas prendadas titias e avós.

Galeorrinídeos
Mestre Duña relutou em elucidar esta questão, julgando-a por demais óbvia. Afinal, sentenciou o guru, quem não sabe que os galeorrinídeos pertencem à família de peixes elasmobrânquios precisa de cola para passar no exame psicotécnico.

Batatinha quando nasce
Obra basilar na formação poética de Drummond, trata-se de um divisor de águas da lírica em língua portuguesa. Recentemente Duña deu à lume um ensaio definitivo sobre o assunto, dele resultando um alfarrábio de 800 páginas que se detém sobre os sentidos recônditos dessa estrofe de quatro versos, aparentemente boçal e despretensiosa.

Garrida
A origem etimológica do termo é um tanto obscura, e se perde em tempos imemoriais. Tão imemoriais que, quando incluído no Hino Nacional, o vocábulo já era arcaico. Esse imemorialismo latente talvez explique porque tanta gente não se lembre da letra ao entoá-lo.

Maxilar
Grande loja de dois pavimentos localizada em Paraiponga, especializada em utilidades domésticas.

“O espelho da vida é a sombra do infinito”
Grafado no courvin da poltrona de um buzunga da Cometa, entre aspas mas sem crédito ao autor, Mestre Duña afirma que este paradoxo há 28 anos vem roubando o seu sono, no vão esforço de decifrá-lo. Se alguém sobre ele for capaz de lançar luz, que entre sem demora em contato pelo e-mail: msguassabia@yahoo.com.br

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 22 de junho de 2013

GENEALOGIA QUASE ILUSTRE




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Ananias, um parente muito próximo dos descendentes diretos de Noé, gerou Jacó Jr., que depois da arca seca, em terra firme e com muita lábia, convenceu Lenora a gerar Alcebíades no então abandonado compartimento dos gorilas. De Alcebíades a Theodore Jonathan, mais conhecido como TJ,  foram umas 230 gerações, das quais praticamente nada se sabe. Jonathan, o bocejador incorrigível, gerou Lucy, aquela que jamais perdia um comício. Lucy gerou Abelardo, o ser humano mais rápido do seu tempo na palitagem de dentes, cuja agenda de palestras sobre o assunto estava quase sempre lotada. Abelardo era funcionário público nas horas vagas, e em uma de suas viagens a trabalho acabou gerando Adolpha, que do pai só ganhava acenos distantes e uma ou outra bala de goma com validade vencida. Adolpha, embora com motivos de sobra para não ter libido nem ânimo de procriar, gerou os gêmeos Natan e Carolino, que juntos abriram cartório em conhecida cidade e passaram também a receber do avô, de vez em quando, as costumeiras balas de goma - agora enviadas por sedex. Natan optou pelo celibato, ao contrário de Carolino, que trouxe ao mundo extensa prole. Da prole de Carolino destacou-se o mal-humorado Rubão, comprador de ferro velho que 16 anos antes de morrer fabricou o próprio caixão, o único que se tem notícia construído em ferro galvanizado. Rubão deixou como herdeira a ruiva Pâmela, nascida com orelhas triplas. Pâmela gerou Quirino, dono da loja "Rei das Persianas" e eleito por três vezes, não consecutivas, segundo secretário do Clube dos Diretores Lojistas de Sertão Grande. Quirino gerou Jorgito, bom de saltos ornamentais mas retardado em controle de estoque. Em segundas núpcias com uma balzaqueana chamada Maria Dalva, Jorgito foi pai de oito crianças, sete delas vitimadas pelo escorbuto. Sabrina, a que sobrou, também morreu cedo - aos 22 - porém a tempo de dar a luz a Sergei, embaixo de uma mesa de pôquer. Do pano verde da mesa, Sergei talvez tenha herdado a inclinação para lidar com grandes extensões de soja, que lhe deram fortuna para contrair matrimônio com Deoclélia Antonia, filha do abastado Juan Pablo de Luccrétia, cujo conglomerado de fábricas de isqueiros abastecia toda a ilha de Cuba em seus dias de glamour. Dessa união, porém, não há descendentes conhecidos, o que leva a crer que a milenar linhagem ali conheceu o seu ponto final.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 15 de junho de 2013

DIVÃ NO DIVÃ



Foto: Google Imagens




- Sim, pode falar.

- Por onde eu começo?

- Escolha o começo que lhe parecer mais interessante.

- Eu sou da área. Diria que dificilmente um profissional pode estar 
mais ligado à seara freudiana do que eu.

- Não diga, é mesmo? Você é psicólogo, psicanalista, psicoterapeuta?

- Nada disso. Eu produzo divãs. Trabalho numa fábrica deles há mais 
de vinte anos. Este divã mesmo, fui eu que fiz. Conheço cada um dos 
meus divãs, centímetro por centímetro.

- Que peculiar. Jamais analisei um fabricante de divãs, e arrisco afirmar que 
essa é uma experiência única nos anais da psicologia.

- Neste divã aqui está escrito "Diva" em baixo relevo, próximo a um 
dos pés do móvel. É minha marca registrada de autoria. Basta levantar 
um pouco ele do chão que já dá pra ver.

- Por que você escreveu "Diva" e não "Divã"?

- Tenho trauma de tio. Não de til, de tio mesmo. Irmão do meu pai, no 
caso. Era pequeno e peguei ele na lavanderia de casa, um pouco mais 
próximo da minha mãe do que seria conveniente a um cunhado com bons 
modos e castas intenções.

- Fale-me mais sobre isso.

- Por favor, pulemos essa parte. Acho que hoje já estou razoavelmente 
bem resolvido em relação a esse episódio.

- Será?

- Ah, sim. Depois que mamãe se foi, passei a administrar melhor o 
trauma.

- E o meu é o primeiro divã em que você se deita ou já passou por 
outros?

- Já deitei essa velha carcaça em cima de milhares de outros. Fazendo 
os testes de controle de qualidade na fábrica e também fora dela, 
testando a qualidade dos analistas.

- E eu? Já tenho uma avaliação preliminar?

- Ainda é cedo. Mas tive ótimas referências suas.

- Você é telegráfico. Parece que vai ser difícil arrancar coisas um 
pouco mais subjetivas suas.

- Acertou em cheio. Sou mesmo muito assertivo no que digo e no que 
pretendo fazer. E em cinquenta minutos de consulta dá para resolver 
muita coisa. Quero dizer, algo de prático, e não ficar nesse blá-blá-
blá estéril.

- Por exemplo?

- Por exemplo, colocar os fantasmas para fora.

- Pois vamos a eles.

- O senhor me arruma uma faca?

- Faca?... serve esta?

- Serve sim.


(...)


- Espera um pouco, o que está fazendo? Para com isso, você está rasgando 
todo o divã...

- É só uma incisão, estou libertando os fantasmas. Estou soltando 
mamãe de sua longa prisão.

- Fique calmo, não me faça pedir ajuda.

- Vem, mamãe, vem... saudade, minha velha.

- Que horror, o que são esses ossos?

- Então, eu poderia explicar tudo direitinho, doutor. Mas acho que não precisa, concorda? Foram alguns anos procurando pelo número 
de série do divã até encontrar o dono, que o vendeu para outro 
analista, que o revendeu para o senhor...

- Não pode ser. Você acabou de falar que tinha superado o trauma.

- Eu precisava tranquilizá-lo para poder também ficar tranquilo e 
fazer o que precisava ser feito. Agora, se me permite, eu e mamãe temos pressa. Se quiser um divã novo, temos vários modelos para pronta entrega. Quer ficar com o meu cartão?


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 8 de junho de 2013

RÁDIO MIOLO







Independentemente do que você esteja pensando agora, por trás desse pensamento tem uma musiquinha, não tem? De pano de fundo, como quem não quer nada. Às vezes uma, depois outra. Tem dias em que rola uma faixa só, teimosamente. Você até quer passar pra outra, mas o cérebro não deixa. O programador da Sinapse FM resolveu que aquele é o dia daquela música, e não há jabá que o faça mudar de idéia.

Ocorre também da música não ter nada a ver com você, muito menos com seu estado de espírito naquela hora. Mas gruda como chiclete nos neurônios. É quando você se pega cantarolando o prefixo do Programa da Xuxa, sem saber por que cargas d’água, no meio de uma reunião da empresa.

Meu DJ mental é um cara eclético, mas acima de tudo beatlemaníaco. Assumido e incorrigível. Colocar Beatles no aparelho de som pra mim é redundância - as mais de duzentas músicas deles eu assovio o tempo todo. É o que se pode chamar de original soundtrack biológico. Tocou na entrada do meu casamento e quero que toque no meu enterro, mesmo não estando mais lá pra escutar.

Acontece algo que me deixa feliz e a Rádio Miolo ataca de “I want to hold your hand”. Se falta coragem não falta “Hey Jude”, a fabulosa injeção de ânimo que o velho Macca fez para o filho do John. Um momento de reflexão e tiro da cachola “Julia”, “Because”, “Across the Universe”. Se quero meditar, a lavra do George Harrison leva à Índia numa sentada, de preferência em posição de lótus.

Porém nem tudo é Beatles, embora quase tudo seja. E de repente se abre o inesgotável baú dos mineiros. Só de Beto Guedes tem pelo menos umas 20 músicas no hit parade pessoal: “Tesouro da Juventude”, “Noite sem Luar”, “Sol de Primavera”, “Maria Solidária”, não há o que ainda possa ser dito dessas coisas, são os profetas do Aleijadinho em forma musical. Valem todo o ouro das Gerais.

Chico é a próxima parada do dial. “Meus Caros Amigos”, com “O que será” e “Mulheres de Atenas”, ou aquele outro disco com um Buarque pra lá do terceiro uísque, fotografado à frente de uma samambaia, que tem “Cálice” e “Trocando em miúdos”. Em outra estação, mas na mesma frequência, Caetano e o eterno espanto de “Bicho”, “Jóia”, “Muito”, de um “Cinema Transcendental” que transcende “Qualquer Coisa”. Trilhas de uma época em que não se falava de música de trabalho, exposição à mídia, shows privê no Golden Room do Copa.

Vamos aos clássicos. A Quarta balada de Chopin, alguns trechos de Tristão e Isolda, os Brandenburgos de Bach, o concerto para piano de Rachmaninov. Tudo isso em deliciosa ciranda no toca-discos interno. Vira e mexe esses monumentos reaparecem, virando e mexendo comigo, tocando sem que seja preciso levantar da cadeira e caçar o disco na estante.

O que acaba acontecendo é que eu coloco pra tocar só os mais novos. O tido como “diferente”, que vai surgindo. E ouço a fim, muito a fim de ser pego de surpresa, arrebatado com algo demolidor. É pena, mas essa primeira audição quase sempre acaba sendo a última. 

Então volto ao meu flash-back. Som na caixa craniana, graves e agudos equalizados. No repertório, só as dez mais de todos os tempos. Sem correr o risco de incomodar o vizinho e economizando energia elétrica.


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sábado, 1 de junho de 2013

POLTRONA 16





1898
Chamam de cinematógrafo, é novidade que acabou de chegar da França. Tem um pano branco bem grande, e um feixe de luz que vem lá de trás mostra gente andando, trens em movimento... mas precisa estar tudo escuro, se não for na escuridão não dá para ver nada. As pessoas se sentam na frente do retângulo de pano para assistir. Uma sensação.

1942
Um homem... uma mulher... uma misteriosa cidade do Marrocos. Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, juntos no filme mais esperado do ano. A história de um amor impossível e a intrigante saga de heróis e vilões que se cruzam em desespero e esperança, e que viverão em Casablanca uma aventura que mudará para sempre os seus destinos. Casablanca! Onde cada momento traz um novo perigo. Onde cada beijo pode ser o último!

1956
"Os dez mandamentos", com Charlton Heston e Yul Brynner. Ele com a mão mais boba, ela mais condescendente dessa vez. Uma sessão quase vazia. Dia fértil, borrão de sangue no carpete embaixo da cadeira. Vamos assumir, Deus quem mandou.

1961
Faz toda a lição direitinho, ou então no domingo não tem matinê. Nem bala, nem chocolate, nem "Os 101 Dálmatas".

1977
Não falei pra você, Chico? Ó só, mostra tudo, igual aquela revista que o Téo mostrou pra gente no banheiro da escola. A sua poltrona tá rangendo, Chico, para com isso! O lanterninha vem vindo, cê tá louco?

1998
- Aqui antigamente era um cinema, depois é que virou o templo da nossa igreja. Quando o papai era pequeno, os cinemas não eram nos shoppings. Aliás, shoppings não existiam. Foi aqui que o vovô começou a namorar com a vovó. O vovô conta que estava passando “Os dez mandamentos”, e a vovó não deixava nem pegar na mão dela. Olha lá, o pastor vai dar a benção milagrosa dos sete profetas. Eleve o pensamento em prece, meu filho.
- Mas pai, pastor não é quem fica tomando conta dos carneirinhos? Esse homem de terno, quando for fazer o serviço dele lá na montanha, vai passar calor.
- Sssssshiu. Quietinho aí no seu lugar, senão você vai pro inferno.

2011
Setenta reais e o senhor leva a cadeira. É do material de demolição, salvei essa do entulho... espera só um pouco, moço, vou ter que manobrar três carros pra tirar aquele Corolla ali. Senta aí que eu já venho, pode ficar à vontade. Antiguidade, moço, é pegar ou largar.



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