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sábado, 27 de junho de 2015

GRANDE HOTEL



Chego um pouco antes do horário estipulado para o check-in. Dou um tempo no bar do hotel, que tem um enorme “Hipotálamo’s” em neon azul piscando na porta.

Meia hora e duas taças de vinho depois, adentro o aconchegante salão do cerebelo. Sento-me num sofá de córtex e abro o jornal do dia, ainda intocado sobre a mesinha de centro. Avisto de lá o saguão lotado. Pelo menos umas 70 pessoas, vestindo túnicas verde-água, buscam alojamento na memória. Querem acomodação a todo custo, mas poucas são aceitas pela recepção.

- Temos que ser seletivos, infelizmente não há lugar para todos.
- Mas eu fiz reserva...

Na recepção também ficam as chaves dos acontecimentos, alinhadas para facilitar o acesso quando necessário.

Escadas em caracol fazem a comunicação entre três imensuráveis pavimentos. São dezenas de quartos, cada um deles contendo 365 dias vividos. Pelos corredores há quadros de pessoas e lugares. Uns estão impecavelmente conservados, a tinta ainda parece fresca. Outros têm carunchos nas molduras, as cores perderam o brilho e a tela está puída em vários pontos.

Chamo o elevador junto ao boy com o carrinho de malas. Ajeito a bagagem no armário da suíte e mergulho na banheira.
É boa e reconfortante a sensação de estar envolto em massa cinzenta, morna e homogênea. Desliza nesse momento pelos ombros toda a tuabuada do 8, enquanto o Chimarrão, meu primeiro cachorro boxer, surge refletido em preto e branco no espelho.

Pouco depois desço ao refeitório, onde todos alimentam vorazmente suas lembranças. Fatos aparentemente esquecidos estão dispostos em baixelas de prata e taças de cristal. Um garçom me serve águas passadas e entrega a comanda para rubricar.

A equipe de monitores se aproxima de minha mesa e anuncia a sessão de cinema às três, na glândula pituitária. Quinze imensos telões mostram imagens de webcams flagrando em tempo real o comportamento dos neurônios.

Sigo as placas indicativas para o salão de jogos. Um sujeito alto, uma espécie de crupiê trajando smoking, é quem dá as cartas. Está o tempo todo de costas, impossível ver o seu rosto.

Na piscina, um tobogã vai atirando um sem número de pessoas na água, uma após outra, em estonteante velocidade. O avô que só conheci por fotografia, a mãe aos 15, o pai aos 25, a vizinhança, amigos e inimigos, celebridades e gente vista unicamente de relance.

Anexa ao complexo aquático, a sala de massagem oferece uma nova técnica de relaxamento, à base de impulsos elétricos. Após exame médico, o hóspede aguarda a próxima sinapse numa espreguiçadeira revestida em tecido felpudo com o logo do Hotel.

Há um aviso em letras garrafais numa das paredes do deck, um pouco abaixo da bóia salva-vidas:
“Pedimos aos senhores hóspedes que não transitem entre o hemisfério esquerdo e o direito sem autorização prévia da gerência”.

Feito o tour de reconhecimento, me aninho ali, numa dobra de miolos rente à sauna a vapor. Viro de um lado para o outro, estico as pernas, puxo as cobertas e pego no sono. Ronco longa e ruidosamente, a ponto de colocar em alerta todo o sistema nervoso central.

© Direitos Reservados

sábado, 20 de junho de 2015

VENDE-SE OU ALUGA-SE



Não vou negar: houve tempo em que o dinheiro jorrava da minha conta, tinha fila de gerente de banco na minha porta oferecendo linhas de crédito e aplicações mirabolantes. Parentes até então desconhecidos apareciam para pedir dinheiro emprestado.

Do fundo do quintal do Josias, onde tinha uma bancada velha, uma tela de silk e duas latas de tinta de marca vagabunda, fui fazendo fortuna rápido.

Comecei vendendo as placas e faixas de "Vende-se" e alugando as de "Aluga-se". Depois a demanda se inverteu: passei a vender mais as de “Aluga-se” e a alugar mais as de “Vende-se”. Coisas do mercado. 

O negócio foi dando certo e veio a diversificação, com a incorporação do modelo que durante quase duas décadas foi o carro-chefe da empresa: a faixa "Passo o ponto". Quanto mais empreendedores davam com os burros n'água, mais eu lavava a égua. Me sentia um agiota, estava ficando rico com a falência alheia. A capacidade instalada, na época com sete máquinas de última geração e quarenta funcionários, não dava conta dos pedidos. Lembro que tive que programar quatro turnos de produção, com gente trabalhando de madrugada. Pra se ter uma ideia, uma única loja mudava de ramo e de dono umas quinze vezes por ano. E eu ganhava de todo lado: primeiro com a faixinha do falido comerciante tentando se livrar do mico, e depois com faixas e mais faixas das imobiliárias anunciando o imóvel. Não raramente eram várias imobiliárias num imóvel só... era faixa que não acabava mais para fazer, eu chegava a recusar encomenda.

De uma hora para a outra, a situação começou a ficar economicamente muito mais complicada e passei a trabalhar com consignação. O cliente só pagava a placa depois de alugar ou vender o que tivesse para negociar. O formato teria tudo para ser um sucesso, mas quase me quebrou completamente - já que ninguém alugava e ninguém vendia, mas todos botavam as minhas placas e faixas nas portas dos seus comércios, sem pagar um centavo por elas. 

Hoje, a penúria chegou a tal ponto que minhas vistosas e eficientes placas são humilhantemente substituídas por uma pichação do proprietário no muro, feita com caiação rala emprestada do vizinho... é triste, muito triste olhar esses amadores das letras emporcalhando a cidade.

Aproveitei o último pedaço de pano e um restinho de tinta no  fundo da estamparia e fiz a derradeira faixa de "Vende-se", para colocar aqui na fachada do meu negócio. Pensei em escrever "Passo o ponto", mas desisti. A frase era maior e a tinta não ia dar. 


© Direitos Reservados

sexta-feira, 12 de junho de 2015

O RETORNO TRIUNFAL DE MESTRE DUÑA, DEPOIS DE LONGO E TENEBROSO OUTONO



Mesmo optando voluntariamente pela reclusão, Duña, o magno profeta, deixou-se enfim fotografar em seus rústicos domínios, embalando paternalmente duas lindas pencas de banana da terra.

A aparição se deu em meio a insistentes rumores de que, nos últimos meses, Mestre Duña estaria se lançando de maneira febril ao trabalho de compilação de sua doutrina, revisando alguns aspectos e acrescentando tópicos inexistentes nas edições anteriores. Aos mais chegados, externa o oráculo dos oráculos o receio de que seu tempo nesse mundo já se esgota, e de que cada minuto é precioso para que o acesso à duñesca sapiência seja direito sagrado de todo ser humano, de Muzambinho a Machu Pichu, passando por Joahannesburg.

"Caixão não tem gaveta. Ainda que seja de madrepérola incrustada de esmeraldas, vai servir como jantar aos vermes do mesmo jeito que um caixote da Ceasa. Chega um momento na vida em que o dinheiro, o sucesso, o prestígio e o diamante negro não significam mais nada. Em que tanto faz ganhar mais dois ou mais 222 canais de televisão para difundir a doutrina em escondidos cafundós. É quando o tempo vale mais que o templo", afirmou o Divino, demonstrando estar cada vez mais imune às artimanhas da cobiça e desapegado das transitórias riquezas dessa vida. 

"Imagine um sujeito fazendo esteira numa academia", comparava o mestre em mais uma de suas sacrossantas analogias. "Os imbecis pensam que ele nunca chegará a lugar algum, em sua aparentemente estúpida imitação de hamster de laboratório. Mas a verdade é que, mesmo sem sair de onde está, irá mais longe que todos, graças às décadas adicionais que viverá. É como sempre dizia o ilustrado Juan de la Duña, fundamento medieval da doutrina e meu bisavô pelo lado materno: mais vale uma voltinha de velotrol todo dia no quarteirão do que uma escadaria da Penha a cada onze anos". Ao dizer isso, muitos dos presentes à porta da choupana duñesca afirmaram vislumbrar no firmamento um vendaval de pétalas lilases, que trazidas pelo vento iam envolvendo a fabulosa figura do Venerável.

Apoiado em seu inseparável cajado, prosseguia em tom inflamado: “É por isso que, quando muitos perguntam-me sobre onde está a verdade, reafirmo que ela está dentro de cada um. Todos os caminhos ali desembocam, todos os ribeirões ali desaguam, todas as aves de arribação ali pousam, ali fornicam, ali se reproduzem e ali fulguram radiantes com suas proles. A sua verdade é diferente da minha, que nada tem a ver com a dele, que por sua vez diverge da verdade de outrem, que não deixa de ser verdade pelo fato de não coincidir com a verdade de quem a supõe verdadeira. Nesse sentido, a amizade é, sim, a ponte para alcançá-la. Ainda que a Ponte da Amizade tenha se celebrizado por conduzir a caminhos falsos e sem garantia, ao invés de legítimos e cobertos pela mais ampla rede de assistência técnica.


© Direitos Reservados

sábado, 6 de junho de 2015

MONOCHROME



Tento derramar cores sobre a foto de família: o resultado soa falso. Uma coisa desalmada, sem pulso e temperatura. Cria-se uma inadequação, um ar postiço, não caberia cor ali de forma alguma. O mundo de 1941 da foto com margem branca e cantoneira, tirada de um álbum de madeira marchetada, é natural e necessariamente em preto e branco. Há propósito, graça e sentido em ser assim.

No entanto, quem estava lá posando para a pesada câmera, num vestido estampado e eternizado no clique em paupérrima escala de cinza, jura que o mundo era mais colorido que hoje. As cores mais vivas e intensas, flores e gramados sem a fuligem - essa sim monocromática - das chaminés e escapamentos. Sim, as hoje muito velhas gentes garantem que o branco e preto das fotos não fazia justiça ao variadíssimo pantone da vida real. Por mais que os ternos de linho fossem impecavelmente brancos, e as largas saias das beatas de respeito invariavelmente negras, havia cores intensas por todos os lados. 

A mulher do vestido estampado, enquanto ensaia a melhor posição para o clique, flerta com os olhos azuis do moço do reluzente Cadillac verde, tinindo debaixo do sol. Logo mais, à noite, a fila no cinema dobra o quarteirão para assistir Cidadão Kane. Honrando o preto e branco da obra-prima, só mesmo o preto e branco da plateia. Não pode ser de outra maneira, gente colorida assistindo seria profanar o monumento de celuloide. 

Há foto de cemitério na penúltima página do álbum marchetado. O lugar onde faz mais sentido ainda o black and white se bastando, o preto dos enlutados e o branco do mármore de carrara dos túmulos. Complementam-se divinamente o pesar dos que ficam e a leveza angelical dos que se foram. Negra é a escuridão embaixo da terra, alva é a asa de anjo, promessa da Bíblia e do padre. 

Aquele retrato do Guevara de olhar posto em horizonte incerto, Carlitos em filme ou foto, Einstein mostrando a língua, o beijo do final da guerra em Times Square: qualquer cor banalizaria instantaneamente esses monumentos imagéticos, tiraria deles a autoridade mítica. 

Decerto que a cor é uma ilusão do olho, que a Terra de azul não tem nada, é quando muito um ponto branco e minúsculo no negro imenso do cosmo. A mim já está mais do que claro que a madeira marchetada, do álbum aqui no colo, tem seus tons amarronzados só dentro dessa cabeça. Incerta massa cinzenta, de cinzentos pensamentos que ficam indo e voltando enquanto não viram cinzas.


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