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domingo, 30 de agosto de 2020

VDD SEJA DITA


 



Verdade seja dita: aquilo que falamos, e principalmente aquilo que escrevemos, deixou de ser o idioma português faz muito tempo.



Daqui a pouco, ter o cuidado de não maltratar em excesso a língua pátria acabará sendo um esforço inócuo, pois a ninguém trará proveito. Pior que isso: quem se atrever correrá o risco de produzir um texto incompreensível.



A culpa não é de ninguém. Sendo a língua um organismo vivo, é também mutável. E vai incorporando, pouco a pouco, expressões, gírias, influências e modificações de toda espécie, que acabam por se incorporar aos dicionários e a serem aceitas como "corretas". Se elegêssemos um texto tido hoje como magistral, ele possivelmente horrorizaria um escritor do início do século 20, por exemplo.



Fica a pergunta: quem procura escrever melhor, está de fato escrevendo para quem? Óbvia a resposta: para ele mesmo, ou quando muito para meia dúzia que ainda teimem em preservar escrúpulos semânticos, léxicos, sintáticos e morfológicos.



Mesmo dentro do chamado "internetês", onde a brutalidade linguística é impiedosa, há assassinatos inadmissíveis. Em português e, não raro, também em outros idiomas. WhatsApp, pelo menos aqui no Brasil, é mais conhecido como Zap, ou Zap-Zap. Um chute na ideia do gênio que criou este nome (jogo de palavras com a expressão "What's up?", que significa "E aí?", "O que é que há?" / "Como está?" ou algo próximo, em tradução livre. Tudo a ver com a vocação do aplicativo.



Num rápido exercício de imaginação, é de se perguntar como ficariam alguns títulos célebres da literatura brasileira e mundial, se adaptados ao novo contexto de idioma ultrajado...



É só um comecinho de lista:



A ksa dos espíritos (Isabel Allende)

Uhhhhhhhuuulisses (James Joyce)

Mobile Dick (Herman Melville)

Msg (Fernando Pessoa)

Gd sertão: veredas (Guimarães Rosa)





Se você chegou até aqui, nesta reflexão despretensiosa, já é uma exceção como leitor. Naum uma excessaum, que fique bem claro. E em bom português.







Esta é uma obra de ficção.

© Direitos Reservados





domingo, 23 de agosto de 2020

DA SÉRIE PARANOIAS PANDÊMICAS 3 - KINDLE COMO PANO DE FUNDO

 



É a unanimidade pandêmica por excelência, como pano de fundo das lives de jornalistas, escritores, políticos, infectologistas e congêneres: a estante de livros, repleta de volumes os mais variados e organizados por ordem alfabética, cor da capa, gênero, assunto ou autor. Em alguns casos, de propósito, são dispostos sem separação alguma, resultando em uma espécie "casualidade" meticulosamente estudada por decoradores, para conferir um ar blasé ou de robusta cultura geral. Uma coisa meio "bagunça organizada", dando a entender que o proprietário da biblioteca é de fato um devorador dos próprios alfarrábios.



Personal stylists (ou personal cults, melhor dizendo) de todos os naipes e orçamentos divergem quanto a escolher livros que escancarem os títulos nas lombadas ou optar por um toque mais discreto e até misterioso, com capas mais clássicas, puídas e cheias de arabescos, sem os títulos estampados. E dá-lhe garimpos incansáveis nos sebos para comprar metros e metros de livros que ostentem tais lombadas, independente do que tenham dentro.



Só que é tanto disso, a toda hora e em todas as telas, que o background ficou velho. Virou paisagem, cansou como cansados estamos dessa pandemia interminável.



Agora, tudo indica que atingimos o platô da neurose intelectualoide, elevando a coisa à enésima potência do minimalismo: as toneladas de livros começam a ser substituídas por três ou quatro kindles, escorados por aqueles elefantinhos de granito ou mármore, que serviam de aparadores dos então livros de papel - que já cansaram a beleza.



Que evolução, gente! Para se ter uma ideia, um Kindle Oasis de 32 GB tem armazenamento suficiente para encurralar um mínimo de 16.000 e-books, em meros 224 centímetros quadrados (16x14). Isso, em volumes analógicos, daria quase a metade da antiga biblioteca do José Mindlin, o maior bibliófilo desta inculta Terra Brasilis.



Aí, para não perder a pose e reverter o aparente miserê bibliográfico às suas costas, o dono da live saca displicentemente, sem tirar os olhos da câmera, um dos três kindles que "lotam" a sua estante, e cita uma frase de Nietzsche para encerrar sua transmissão. Chic. Ponto para o personal cult.









Esta é uma obra de ficção.

© Direitos Reservados

Foto: https://blog.gdeltproject.org/imagery-of-bookcases-are-soaring-on-cnn-during-covid-19-as-interviewees-call-in-from-home/



segunda-feira, 17 de agosto de 2020

PARANOIAS PANDÊMICAS - 2: COMO FICAM OS RETRATOS FALADOS???

 


O dilema da ANARFA - Associação Nacional dos Autores de Retratos Falados



Se antes os assaltantes e assemelhados usavam máscaras para não serem reconhecidos, agora usam também para não serem contaminados. Faz sentido, ladrão também é gente e preza pelo próprio bem-estar.



Ocorre que o fato de usarem máscaras os confundem com milhares de outros indivíduos de biotipo semelhante, e que ganham a vida honestamente. Como todos os bípedes do planeta andam saracoteando por aí com a cara encoberta nos últimos meses, o reconhecimento é missão impossível.



O dilema se estenderá, sem dúvida, às Secretarias de Segurança Pública - que, dentre outras atribuições, emitem os RGs. Com todos usando máscaras, as fotos dos documentos de identidade por questão de coerência também devem ter o cidadão mascarado, já que é assim que ele anda pelas ruas e desta forma deverá ser identificado. A situação chega a ser paradoxal: para cometer com "segurança" um delito, o meliante deverá tirar a máscara e mostrar o rosto, a fim de não ser reconhecido!!!!! Alguém já parou pra pensar nisso?



Ficamos exponencialmente mais vulneráveis. Tampouco é válido o argumento de "situação transitória" para o uso da máscara , já que o bicho parece ter vindo de mala e cuia, para ficar uma boa temporada.



Legítima representante da categoria, a Associação Nacional dos Autores de Retratos Falados teme, por motivos óbvios, um desemprego galopante dos associados. Sinais característicos da boca, do nariz e do queixo deixam de denunciar a provável identidade da pessoa. Restariam apenas os olhos e o cabelo como identificadores, e consequentemente os retratos falados perderiam muito de sua efetividade como instrumento de investigação.



Aí surge outra questão: as máscaras igualam a todos, milhões de indivíduos usam máscaras semelhantes na cor e no formato. Como resolver isso?











E AS NOVAS TECNOLOGIAS DE RECONHECIMENTO FACIAL?



A Federação Brasileira dos Desenvolvedores de Softwares de Reconhecimento Facial - FBDSRF (eles bem que tentaram, sem sucesso, criar uma sigla mais sonora), já assume como natimortos os programas desenvolvidos até o momento, e que nem bem adentravam ao mercado quando eclodiu a pandemia.



Alguns programadores mais otimistas, entretanto, alegam que bastam pequenos ajustes nos parâmetros de reconhecimento. Critérios como a distância do elástico esquerdo da máscara ao nariz do usuário ou a estrutura molecular do tecido. Nesta última hipótese, temos também dois importantes limitadores da eficácia: a identificação exige que a máscara seja sempre a mesma e que a estrutura do pano não se altere, independente do número de lavagens a que for submetido.



Um cientista ucraniano, de renome mundial, sugeriu a possibilidade de um código de barras estampado no tecido, porém as sucessivas lavagens em água sanitária e sabão tendem a borrar o código e torná-lo ilegível pelos sensores. O impasse prossegue, sem perspectiva de solução a curto prazo.









Esta é uma obra de ficção.

© Direitos Reservados

Foto:https://unsplash.com/photos/IxW2erjGO7U Pavel Anoshin

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

ON-MÍCIO, E-LEIÇÕES

 

- Que desafio, meus caros. Como é que a gente vai fazer pra arrebanhar o povo dessa vez?



- Vai ser um pega-pra-capar, e não acredito que algum candidato se dê maravilhosamente bem. Sente o drama: a gente anuncia uma live, tal dia e tal hora. Vêm os outros e canibalizam, marcam no mesmo horário e no mesmo dia, só pra jogar caca no ventilador.



- Mas aí perde todo mundo, já que dilui a audiência.



- Então, mas ganha quem fizer impulsionamento, link patrocinado, mídia programática e por aí vai. Vale a regra do off-line, quem tem mais verba leva vantagem. Nada muda esta verdade, fio. Desde que o mundo é mundo.



- Ou ganha quem promover o showmício mais arrasador. Figurinha carimbada, sertanejo de prestígio...



- De que showmício você tá falando, esqueceu da pandemia? Junta-povo dá cadeia.



- Então vai na base da live também, fazer o quê?



- Isso não vai acabar bem, nada é igual ao cecê da multidão, aquela coisa de levantar a galera na oratória, inflamar a plebe!!! E o negócio do show só funciona porque o povão quer ver de perto os ídolos. Se for só live o sujeito prefere ficar pendurado no youtube, tem coisa em definição muito melhor. Do artista preferido e na hora que quiser. Live fica travando, tem delay, a fala começa e a boca mexe uma semana depois. Não dá, não dá.



- Mas na live a gente coloca o candidato junto com o artista. E é ao vivo, né? É diferente. Entre não ter nada e ter live, é melhor ter live.



- E santinho, como é que vamos fazer sem aquelas montanhas de entupir bueiro?



- Tá mais pra janela pop-up dessa vez, velho. E-mail marketing, sei lá pra que lado correr, juro mesmo...



- Nossa, que tosco. Que primitivo. O cara lá, vendo o que gosta na internet, e estoura uma pop-up na cara dele, sem mais aquela. Vote fulano. Isso é invasivo, em vez de alavancar a candidatura acaba criando rejeição. Fora que tem legislação eleitoral, não pode sair fazendo o que der na telha.



- Olha, outra coisa. Em vez de ficar gastando em sites locais, grupos de facebook da cidade e coisas assim, a gente pode torrar tudo com um dia inteiro na home de um UOL da vida, um G1, sei lá... tá certo que é caro, mas já pensou o prestígio? Aquele buxixo no dia seguinte: "viu o candidato ontem? Tava lá no G1, da Globo".



- Tudo bem, mas e a dispersão de verba? Home de portal gigante é só pra peso pesado, fio. Vai ter gente do Brasil todo vendo um candidato local, que ninguém conhece, e que só pode receber voto aqui. Precisa ser muito burro pra fazer isso.



- Bom, carro de som continua valendo. Mesmo com a população dentro de casa, o carro passa anunciando e todo mundo escuta. Avisa o comitê pra manter a verba do carro de som.



- Só complementando, gente. Tem um pessoal, de primeiro time da MPB, que topa vender uma live genérica. Eles têm um showzinho padrão, já pronto, onde só mudam o nome e o número do candidato, no fundo do vídeo. Como se o figurão estivesse apoiando, tipo um cabo eleitoral. Só que o cara não fala nada, segue cantando e boa. É uma forma de escapar da live tradicional, pagando bem menos. Mas o impacto não é lá essas coisas...



- Tem também disparo em massa...



- TSE proibiu, já a partir desta eleição.



- Eu conheço um camarada que faz sem deixar rastro. E faz no amor à causa, dá pra ele um pão com mortadela e tá tudo certo.



- Pão com mortadela... tem delivery disso aí?











Esta é uma obra de ficção.

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Foto: https://midiacode.com/santinho-digital-eleicoes.html