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sábado, 28 de abril de 2012

ESTAÇÃO PARADISO






Abre com lua e estrela, a pleno brilho em lugar qualquer. Clima de épico bíblico. Cena 2: panorâmica nos trilhos da linha azul do metrô. O filme dentro do filme dentro do filme. Metrô é espaço de passagem e não de saudosismo, destrói sem dó pessoas, memórias e o que restar de humano na meia dúzia de desolados a esperar na plataforma. Ninguém "é" estando ali, fica-se provisoriamente. Centenas de cópias piratas de DVD do monumento de Tornattore, prontas para serem esmagadas pelo próximo trem. Do jeito que fazem quando a Polícia Federal apreende contêineres de ray-bans falsificados. Travelling lento. Slow. Fusão para mim, dizendo em off algum lamento indecifrável. Uma cópia de cinquenta centavos do Cinema Paradiso não deixa de ser uma irônica continuidade dele. A banalização da permanência, diria o crítico com ar blasé ajeitando os óculos. A saga das películas salvas e guardadas, as âncoras enferrujadas na conversa dos dois na praia, o ancião cego ordenando que o menino vá embora da aldeia e não olhe para trás. A ferrugem da âncora, metáfora. Totó morreu do coração após aquele choro todo vendo as cenas de beijos censuradas pelo padre - imprevisto que não constava no roteiro. Ennio Morricone é outro que pode morrer em paz depois da trilha que fez, ela também nos trilhos agora, esperando a morte vestida de bites. Ninguém quase soube quando há meses um estilhaço de meteorito colidiu com o estacionamento onde fora o Nuovo Cinema Paradiso, que por sua vez era a reconstrução do antigo que pegou fogo. Pegaram fogo o velho cinema e o velho Alfredo, queimados o celulóide e o projecionista. Um dedo de poeira acumulada sobre a ruína da ruína da ruína. Daqui do buraco da estação eu sei que chove lá fora, no pavimento dos autos. É triste, não gosto. Quero de volta o meu ingresso, trazido pelo Totó menino com vestes de coroinha que vem chegando de bicicleta.



© Direitos Reservados

sábado, 21 de abril de 2012

A LUNETA


Foto: HBO Voyeur Project

Na embalagem havia um enorme splash, onde se lia: “Montagem fácil e rápida”. Bom, dois dias e duas noites não é tanto tempo assim. O suficiente para encaixar nos lugares certos as lentes, roldanas, parafusos, porcas e cilindros de diferentes calibres e tamanhos.







Custou mas valeu, telescópio e tripé montados. Agora, ao desfrute. Ao merecido desfrute - porque que de ferro, só a luneta. Marca Superrvision, zoom de 1600 vezes, nitidez absoluta.






Primeira parada. Uma enfermeira dando comida na boca de uma velhinha em uma cadeira de rodas. Ai, que estréia mais sem glamour. E a enfermeira era mais velha que a velhinha.






No apê ao lado, uma bruta discussão. O engraçado era ver apenas as bocas se mexendo, os braços gesticulando, os socos na mesa, os rompantes coléricos e não ouvir absolutamente nada. Pastelão de cinema mudo, só faltou torta na cara.






Vamos lá, meu povo, cadê a sem-vergonhice? Duas horas e quinze e nenhuma mulher sem sutiã passando do banheiro para o quarto. Nem uminha. Tá louco, era o caso de devolver pro fabricante. Telescópio que se preze não faz um papel assim.






Três andares acima, um cara solitário no sofá, o nó da gravata meio afrouxado, à frente de uma TV de plasma. A lente é poderosa, dá pra ver a programação que o sujeito está assistindo. A sala escura, ele zapeia. A luz do aparelho refletida em seu rosto se altera a cada mudança de canal. Enfia um dedo no nariz. Que nojo, não volto mais na sua casa, seu sem-educação. Isso são modos?






No quinto andar havia uma loira de tirar o fôlego, há tempos já a observava a olho nu. A vadia não saía do quarto, dando mole pro primeiro telescópio que se habilitasse. Mais que depressa, zoom máximo na dita cuja. Era loira mesmo, e seria perfeita se não fosse um pôster. Duplo azar: além da mulher ser de papel, o quarto com certeza era de macho. Castigo pouco é bobagem.






Na noite seguinte, a caçada continua. Ao mirar no décimo-sexto andar do Edifício Itapuã, sua luneta dá de cara com uma outra luneta apontando exatamente para ele. Sim, tinha certeza que era pra ele. O voyeur do voyeur, a perversão das perversões.


Assim que os olhares telescópicos se cruzaram, tentaram até fingir que não se viram. Uma luneta virou pra esquerda, outra pra direita, como se assobiassem, disfarçando.






Depois de umas dez janelas sem nada de interessante à vista, ele finalmente achou algo com que se entreter. Após um prolongado “Nooooooooooosssa!”, ali parou e ficou. Puxou até uma cadeira pra se acomodar melhor.






- Vai, vai, vai...


Uma voz feminina e muito familiar responde ao seu ouvido:


- Vai o que, Claudinho?






Era a esposa. Ô mulher pé de pluma. Quando deu pela presença, já estava no cangote. Mão na cintura, cobrando esclarecimento.






- Vai? Ah, sim. Vai logo, planeta, aparece logo, planeta...






- Planeta? Até onde eu saiba não tem planeta nenhum desse lado do céu. E mesmo se houvesse, esse prédio enorme aí em frente não ia deixar você ver nada.






- Nossa, é mesmo. Nem tinha reparado.






- Mãos ao alto, seu safado. Não mexe um milímetro nessa porcaria. Deixa eu ver o que você está vendo. Sai daí, sai daí!






Se aquilo era um planeta, só poderia ser Vênus. Um raro espécime do belo sexo, dessa vez de carne e osso, em trajes e poses que, digamos, acusavam claramente não tratar-se de uma freira.






- Sabe como é, testando o foco, querida...






E foi assim que, naquela noite, ele acabou vendo estrelas.










© Direitos Reservados


Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.


Blogs:

http://www.consoantesreticentes.blogspot.com/  (contos e crônicas)

http://www.letraeme.blogspot.com/  (portfólio)

Email: msguassabia@yahoo.com.br








sexta-feira, 6 de abril de 2012

CLUBE DA ESQUINA, 40


Foto: http://www.museuclubedaesquina.org.br/



A agulha sulcando o vinil é arado rasgando as serras das Gerais - sem meias medidas, num quase estupro consentido. Segue a girar como Minas gira coração e miolos adentro, em quem é de lá de nascença, por costume ou vitimado de deslumbramento, com seus potes de compota e velas de procissão. Belô dos mares de bares, todas as esquinas convergem conformadas e tímidas para aquela uma, a tal que ganhou mundo e fama. Seguem como devotas na quaresma, essas esquinas comuns que não tiveram clube, passos lentos e testas vincadas prematuramente. Seguem pela Via Crucis de paralelepípedos gastos, com baldeação em Três Pontas, Montes Claros e onde mais passe o trem azul. E reverenciam, de joelhos, o latifúndio patrimônio deste mundo. Esse queijão com um furo no meio que Deus benzeu.










© Direitos Reservados




Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.


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