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sábado, 30 de abril de 2016

VEM PRA BRIGA VOCÊ TAMBÉM. VEM!




- "Omo faz, Omo mostra". Mas mostra o quê? Acho vago esse raciocinio.
- Queria que eu fizesse um tratado filosófico? Slogan bom tem no máximo seis palavras. Eu me virei com quatro. Tinha feito outras opções para apresentar, na verdade gostava mais de um outro. Mas o cliente escolheu esse. 
- Não foi o meu caso. Quando criei "Danoninho vale por um bifinho", só mandei um e acertei logo de prima. Na convenção da empresa me fizeram uma homenagem, como autor de um posicionamento que iria diferenciar o produto nos proximos 20 anos. Foi muita responsabilidade. Pra você ter uma ideia, me deram de presente um Chevette GP Okm, daquele laranja com friso preto.
- Vai me desculpar, mas com esse slogan você convence a mãe, não a criança. Tá falando que é nutritivo, mas o pirralho não está nem aí com isso. 
- Não, não. Eu falo pra criança que, comendo um Danoninho, ela escapa do chato do bife.
- Tá bom, mas deixa eu defender minha cria e explicar o meu "Omo faz...
- Se precisa explicar é porque não deu o recado. E depois, já faz uma cara que isso saiu do ar, pra que ficar ressuscitando defunto?
- Bom, o mesmo vale pro seu "Danoninho", meu velho. Aliás, estamos os dois com as chuteiras penduradas há bom tempo, não sei que diferença faz essa discussão.
- Pra mim é questão de honra. Olha só, o "bifinho" rima com "Danoninho", o jingle do comercial de TV utilizava "O bife", que qualquer criança sabia tocar no piano. Todo mundo entendia que aquilo não era guloseima, era alimento. E era gostoso! Pra ficar veiculando tanto tempo, a campanha tinha que ser muito boa, tinha que ter um conceito convincente.
- E tinha. Mas "Omo faz, Omo mostra" também durou um tempão. Eram comerciais testemunhais, tinha que ter veracidade. O slogan fazia uma releitura do "mata a cobra e mostra o pau". A dona de casa se convencia, tinha medo de arriscar com outra marca e deixar a roupa encardida. Acho que só a gente sabia da verdade. O pessoal de desenvolvimento de produto dava a entender que sabão em pó era commodity, tudo igual. Essa constatação acabou entrando até no briefing da campanha. Hoje eu fico imaginando, se eu tivesse gravado aquela reunião com o cliente, quando ficou quase explícito que sabão em pó era tudo a mesma coisa, eu mesmo - como criador - poderia ter processado a empresa por propaganda enganosa.
- Mas aí você poderia ser processado também. Como cúmplice!
- Você fica aí falando, falando, mas na época dessa sua campanha do bifinho, muita gente questionou a propaganda, dizendo que o valor nutricional não era equivalente. Além de ter muito açúcar, corantes, conservantes...
- Se todo mundo fosse ficar olhando o rótulo de tudo, ninguém comeria nada. E a gente perderia o emprego. Como diria o ministro da Fazenda, dos bons tempos do comercial do bifinho: "o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde".
- Tem cara de slogan isso, heim. Outro seu?
- Não lembro, pode ser. Com Rexona, sempre cabe mais um.


Esta é uma peça de ficção. Qualquer semelhança com o mundo maravilhoso da propaganda terá sido mera coincidência. Promoção válida só até sábado, ou enquanto durar o estoque.



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sábado, 23 de abril de 2016

O SEXO À LUZ DA DOUTRINA DUÑESCA



Antes de mais nada, à luz da nossa doutrina, o sexo é feito no escuro. A visão das vergonhas alheias, ainda que entre marido e mulher, é experiência hedionda e desaconselhável. Na impossibilidade de penumbra, o par se obrigará a praticar o chamado coito vestido, em traje esporte fino acrescido de luvas e tornozeleiras. Um edredon ou outro artefato do gênero carece de ser providenciado para cobrir o casal da cabeça aos pés, até que o ato se consuma da forma mais recatada e discreta possível.

A luxúria, ou seja, o comportamento libertino e pecaminoso, deve ser evitado a todo custo - mesmo que só em pensamento. Nas preliminares, nos finalmentes e especialmente durante a coisa e si. Essa instrução pode parecer a princípio paradoxal, já que para a maioria das pessoas o intercurso sexual é resultante do desejo recíproco entre as partes. Assim, recomenda-se, segundo o Venerável Duña, buscar excitação suficiente apenas para que os aparelhos reprodutores desempenhem satisfatoriamente sua função. Nem mais, nem menos que isso. E que essa excitação fique somente no terreno tátil, jamais no psicológico, na verborragia chula, nas variações de posição ou quaisquer outros artifícios de que se possa lançar mão para transfomar o ato reprodutivo em prazer bestial. 

Homens e mulheres duñescos são seres irreversivelmente castos. O batismo nas águas da pororoca fazem dos seguidores de Duña uma casta moralmente exemplar. Se eventualmente colocam-se uns sobre os outros, em estranhos e ritmados movimentos, como se estivessem travando uma luta sem sentido aparente, é no intuito exclusivo de trazerem ao mundo novos seres iluminados. Crianças que, uma vez paridas, precisam ser imediatamente encaminhadas ao nosso imaculado Oráculo para a unção em óleo bento, conforme preconizam os cânones de iniciação no tatame consagrado. 

Os fiéis de ambos os sexos que cumprirem aquilo que Duña, o Perfeito, orienta sobre o assunto, não precisarão provavelmente de qualquer ajuda externa ao longo de suas vidas, seja para dirimir dúvidas ou curar doenças nas partes baixas. Caso se faça necessária uma intervenção psicológica, clínica ou cirúrgica que restabeleça um sadio padrão de normalidade, o Duña em pessoa deverá ser consultado, nunca os ginecologistas, urologistas, sexólogos, terapeutas alternativos e assemelhados. 

Sendo a prática sexual tolerada apenas para a perpetuação da espécie, ao atingir um número razoável de filhos a atividade deve cessar por completo. Um legítimo discípulo de Duña respeita e glorifica as tábuas sagradas que a beata Constantina Eufrózia recebeu das mãos do Mestre durante a décima-nona Pamonha Fest de Xique-Xique, no glorioso ano de 1941. Seus preceitos orientam o rebanho da Divindade Maior a lidar com o sexo de maneira cívica, sem sentimentos de culpa ou outros transtornos mais sérios de consciência. Observando, evidentemente, a abstinência total entre o nascer do sol e o poente, e do poente à aurora do dia seguinte.



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sábado, 16 de abril de 2016

MANUSCRITO DE ELANTRA



Não demorou muito para perceber que o mundo tinha acabado, e que aparentemente só restava o que sobrou de mim para fazer companhia às bactérias.


É impossível precisar como ou quando exatamente recobrei os sentidos após a hecatombe, e o que a desencadeou. Não houve aviso nem pânico que a precedesse. Seja lá o que tenha acontecido, foi muitíssimo rápido o golpe de extermínio. Enquanto tirava o pó dos olhos e ensaiava uns passos com o que supunha ainda serem minhas pernas, tentava adivinhar a causa entre as possibilidades mais plausíveis: o louco ditadorzinho de Oregons Lanontry em incontido surto megalômano, um meteoro em súbito desvio de rota, um insuspeito arsenal nuclear do Estado Setentrional, quem sabe a fúria da natureza em desastroso revide.


Nem a céu aberto (e é tudo a céu aberto agora), nem sob os escombros havia sinal de água ou comida. Nenhum inseto voador ou rastejante. O que se conhecia por matéria parecia afetada em seu nível molecular.  Objetos e seres ganharam um contorno inédito e sem definição possível. Mas isso parecia ilógico, uma possibilidade que contradizia a minha relativa inteireza física e o meu raciocínio para escrever. Como somente eu não estava destruído ou transformado em outra desconhecida coisa, ainda mantendo sentidos e consciência, ao contrário de tudo ao redor?


Este relato, escrito com o que melhor se aproximava de um lápis sobre aquilo que melhor se aproximava de uma folha de papel, ficará guardado numa caverna, como os manuscritos do Mar Elantra, até que alguém o encontre, caso o mundo - contrariando meu aparente julgamento - não tenha acabado. Ou venha, de alguma forma, a ganhar vida de novo.


Uma nuvem ocre me alcança agora, com forte odor de amônia, trazendo junto um frio que em dois ou três minutos frustrará qualquer intenção de movimento, seja para escapar da caverna ou para esconder-me ainda mais no fundo dela. Encolhido em posição fetal, prendo o quanto posso a respiração até que a nuvem venenosa perca um pouco a densidade. E recordo, nostálgico, nosso acolhedor planetinha Júpiter em seus dias mais felizes.




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sábado, 9 de abril de 2016

ELEFANTE DA SORTE



- Senhor Alcindo, comecemos do começo. Consta dos autos que o senhor iniciou sua vida profissional como coletador de excrementos de elefantes. Confere?

- Isso mesmo, autoridade. Ganhava quase nada e trabalhava feito um condenado. Até que uma elefanta deu cria e eu fiquei com o filhote. Quando o filhote cresceu...

- Em que lugar o senhor criava esse filhote?

- Numa chácara de um amigo do meu pai.

- Pode nos dizer o nome dele?

- Usando o direito que a lei me garante, permanecerei calado. Desculpe, autoridade, o nome do dono eu não lembro mesmo... Mas, continuando. Quando o filhote cresceu, eu tive a ideia de ir pra rua com ele e levar as pessoas para dar voltas de elefante. Foi um sucesso extraordinário! Dez reais por cabeça, chegava a levar oito em cada voltinha de dois minutos.

- Deixa ver, fazendo aqui um cálculo aproximado, e chegamos à conclusão de que, mesmo se o senhor levasse a população inteira do país para dar voltinhas de elefante durante 3 séculos, ainda assim não conseguiria acumular nem 1% da fortuna que possui.

- Eu posso explicar, autoridade. Os passeios no lombo do elefante foram o começo de tudo. Enquanto ganhava dinheiro com isso, comecei a pesquisar os dejetos do bicho em nível laboratorial, e desenvolvi a formulação do superesterco. Uma invenção minha, capaz de aumentar a produtividade agrícola em 250%.

- Não diga? Que peculiar.

- Depois que a fórmula do superesterco estava pronta, fui procurado por uma grande empresa multinacional... Como é que era o nome mesmo? Algo parecido com Meu Santo, Seu Santo, sei lá, qualquer coisa assim.

- Prossiga, Sr. Alcindo.

- Então. Um grupo de executivos da matriz dessa corporação começou a me assediar, oferecendo um basculante de dólares para que eu vendesse pra tal da Monte Santo a patente do gigaesterco. 

- O senhor mencionou há pouco que era super, e não giga.

- Tanto faz, autoridade, aquela merda não tinha nome ainda. E não tem até hoje, porque o fertilizante está em fase de testes.

- Onde?

- Em um laboratório na Groenlândia e também em uma fazenda de um primo-irmão do tio de um compadre do meu pai. Eles perceberam que a minha invenção tinha potencial para exterminar a fome no mundo em questão de semanas.

- Entendo. Mais uma vez, um providencial amigo do seu pai aparece na história para ajudá-lo, é isso? E essa fazenda fica perto da chácara do outro amigo do seu pai, onde o senhor criou o primeiro elefante?

- Como é que o senhor sabe?

- Dedução. Vá em frente.

- Bom, aí eu vendi a patente e entrou na minha conta uma grana mais preta que o estrume da minha manada inteira.

- Presumo que o senhor Alcindo poderá nos dizer onde se encontram os documentos dessa transação e os recibos do imposto recolhido...

- Usando o direito que a lei me garante, permanecerei calado.

- Certo, faça de conta que não lhe fiz essa pergunta. Continue narrando sua saga empreendedora.

- A autoridade sabe que dinheiro faz dinheiro. Foi quando, em sociedade com um outro amigo do meu pai, e usando os recursos da venda mundial da patente, eu comecei no ramo da exportação de marfim.

- Conte-nos mais sobre isso.

- Ao mesmo tempo em que produzia as fezes, 100% compradas pela Seu Santo, também extraía o marfim dos bichos, embarcados quinzenalmente para Hong Kong. Eram centenas de toneladas em cada remessa.

- Mostre-nos as guias da Cacex e as autorizações aduaneiras.

- Usando o direito que a lei me garante, permanecerei calado.

- Eu não pedi que o senhor fale nada. Apenas coloque sobre minha mesa os papéis solicitados.

- Usando o direito que a lei me garante, não vou pôr nada na sua mesa, não senhor. Só digo para o senhor que, a partir das minhas experiências na química das fezes elefantinas, eu criei uma modificação nos códigos genéticos dos animais para que eles passassem a ter uma média de 94 dentições de marfim ao longo da vida. Foi essa minha expertise que me deixou milionário, autoridade.

- Não há dúvida que sua ainda curta biografia é mesmo uma estonteante trajetória de sucesso. Um exemplo pra esse povo que tanto reclama da vida, não é mesmo? Parabéns. Está dispensado, por enquanto.



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domingo, 3 de abril de 2016

O QUASE



Entre o vegetariano inflexível e o carnívoro inveterado, desponta uma nova categoria de comensal. Fica a meio caminho de uma coisa e outra. Trata-se do quase-vegetariano, aquele que já assumiu a validade filosófica de não comer bichos defuntos, mas que ainda não consegue evitar eventuais recaídas.

Considerando que o refogado de acelga é oito e o churrasquinho grego é oitenta, proponho aos quase-vegetarianos uma alternativa conciliadora: a opção pelo miúdo, entendendo-se por miúdo o rim, o coração, o bucho, a moela, o fígado, o miolo, a língua e outros ítens não tão miúdos no tamanho e na forma. Digo conciliadora porque tudo isso que elenquei é órgão, e não carne.

Ninguém engorda porcos, abate rebanhos inteiros ou extermina quilômetros de granjas para arrancar miúdos. Eles são subprodutos. Que acabam sendo aproveitados para engrossar embutidos, fazer ração de cachorro, despacho de macumba e outras variadas coisas, que até Deus duvidaria se não estivesse vendo tudo. Além, é claro, de abastecerem as partes menos nobres dos balcões dos açougues. O fato é que a crueldade se dá para extrair a carne e saciar o pitecantropo que resiste bravamente no engravatado do século 21. Aos órgāos nāo cabe culpa, porque a carne era o alvo dos matadores (ou matadouros). Não fosse isso, continuariam cumprindo regularmente seus papéis de vísceras, até os animais morrerem de velhos.

Há outras vantagens em dar preferência aos miúdos. De maneira geral, os órgãos têm maior valor nutricional que a carne - um saudável motivo para que mereçam um julgamento mais complacente. Depois tem o preço, que é muito menor. Dependendo do tipo de miúdo, o quilo chega a custar dez vezes menos que a carne de primeira do bípede ou do quadrúpede morto.

Temos que admitir que muitos sentem nojo pelo caráter funcional do órgão. Carne é carne e pronto, parece algo ancestralmente admitido para se comer. O órgão não: ele processa alguma coisa, tem um papel fisiológico na vida do animal.

Veja a moela, por exemplo. Ela faz parte do sistema digestivo das aves, uma espécie de bolsa musculosa que tritura mecanicamente os alimentos ingeridos, especialmente os grãos. Talvez esse singelo esclarecimento lhe trave o apetite quando se deparar com uma porção acebolada da dita cuja à sua frente. Mas pode ser também que essa definição deixe um pouco mais tranquila sua consciência quase-vegetariana, por estar comendo algo que ia ser desprezado por quem matou o frango para devorar-lhe apenas o peito ou as sobrecoxas.

Bem, fica a ideia. Vai um miúdo aí?



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Foto: cozinhafacil.blogspot.com