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sábado, 28 de julho de 2012

ESCOTILHAS D'ALÉM SEIOS





I

Os dados e projeções do relatório são válidos e consistentes, evidente que são. Preciso clarear um pouco mais o raciocínio para poder tomar uma decisão ponderada quanto às táticas de vendas, mas não consigo desviar os olhos das veias azuis dos seios dela. A verdade é que jamais imaginei que fabricar escotilhas pudesse abrir tantas portas, inclusive a dos encontros carnais e inconsequentes. O negócio vem superando as perspectivas mais otimistas, a ponto de haver desabastecimento em alguns nichos de alta demanda. Nem mesmo o recall que tivemos de fazer, para reparo em um imenso lote do modelo VY-340 com bolhas no vidro, conseguiu arranhar a boa imagem da nossa marca. Tanto que teremos de abortar nesse ano a tradicional campanha "Há quanto tempo você não troca sua escotilha?", pois não estamos dando conta dos pedidos.


II

Para os humanos, úberes são demasiadamente parecidos. Mas o mesmo diria o boi a respeito de suas vacas? Teriam os úberes para o boi o mesmo e intenso mistério que os seios têm para o homem? Escotilhas abrem portas e escancaram seios. Eis-me aqui com um par deles, miúdos e muito bem torneados, roubando minha atenção do mundo e do mercado dos barcos e navios, seios que abrem suas velas e me levam, de jangada, a ilhas insuspeitas. Que bom momento, pousar a cabeça entre um e outro. Oferecimento, Escotilhas Humbeldt. Para quem quer navegar com estilo.


III

Champagne caiu e manchou a última página do relatorio. Culpa dela, a mulher da vez, doidinha por afagos. Meti os pés pelas mãos, danem-se as escotilhas nesse espreguiçamento a bombordo. Uma escotilha por habitante, a meta para 2015. Powerpoints e mais powerpoints de margens brutas e lucros líquidos. Alianças com programas sociais do governo para abastecer todo o Centro-Oeste com modelos adaptados às condições de navegação e às embarcações pantaneiras. Escotilhas para gays, cheias de adornos, rebuscadas e coloridas. A cada um sua escotilha, gênero de primeira necessidade, bem de consumo de massa.


IV

De volta aos seios, de auréolas que lembram escotilhas. Não, não estou levando assuntos do trabalho para o âmbito pessoal: é flagrante a semelhança entre uma coisa e outra. E quanto mais escotilhas Humbeldt singram as águas, mais pares de seios se oferecem a mim nessa cama de iate. Ao rei das escotilhas, todo o estoque mundial de tapetes de vison, todas as lagostas criadas em cativeiro de restaurantes estrelados, todas as intenções de sequestro. Chegando agora no notebook a proposta de um grande centro atacadista para vender escotilhas em fardos de 12 unidades, a preços promocionais. Darei uma resposta na segunda. Até lá estarei entretido com outras coisas.



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 21 de julho de 2012

ÊNIO





Arrimo de família, o Ênio luta com dificuldade de dar pena. Esfola-se, o pobre, pra conseguir levar pra casa um quilo de acém ou de fraldinha de quando em quando pra misturar com a farofa. Mas nem sempre foi assim. Tempo houve em que o Ênio era notório esbanjador em questões monetárias. Época das vacas gordas, no funcionalismo público. E funcionalismo público, pelo menos naquele em que o Ênio “funcionava”, sabe como é: querendo ou não, o sujeito vai sendo atingido por promoções ao longo do tempo. Basta que não roube, não pegue dinheiro em troca de favores ou não dê vazão aos apelos da carne no ambiente da repartição. Eram os três únicos senões, mas ao terceiro o Ênio não resistiu - foi pego em escancarada bolinação com uma colega de trabalho, na mesa do superior imediato.

É bom que se diga que Ênio é apelido, ganho junto aos companheiros de bar. Antes da sem-vergonhice fatídica, foram 20 anos de ênios e mais ênios no histórico de bons serviços do camarada.

Explica-se: num período de 10 anos, por exemplo, desde que não tenha faltas injustificadas, o servidor empossado na mesma autarquia de Tarcísio Carlos (o verdadeiro nome do Ênio) fará jus a um decênio, incorporado regular e vitaliciamente ao salário. Só que um decênio traz com ele outros e numerosos ênios. Junto com o prêmio pela década de assiduidade, terá acumulado também 2 quinquênios, 3 triênios, 5 biênios e 10 anuênios. Aos 20 anos de serviço a coisa melhora um pouquinho: terá adicionado ao holerite um vintênio, dois decênios, 4 quinquênios, 6 triênios, 10 biênios e 20 anuênios. Uma verdadeira metralhadora de estatal generosidade, disparando benesses em progressão geométrica.

Ênio ria-se do apelido dado por seus amigos boêmios da iniciativa privada. E, se de certa forma sentia-se culpado em acumular tantos ênios sem méritos que os justificassem, também não se mexia para devolvê-los aos cofres públicos. Dessa forma, um triênio aqui virava um fogão de seis bocas e acendimento automático pra patroa; um deceniozinho ali virava intercâmbio no Marrocos para o seu caçula, e assim por diante.

Planejava gastar o vintênio recém-conquistado na compra de uma quitinete em bairro nobre da cidade, para fazer neném mais confortavelmente com a colega de trabalho. O escandaloso flagrante chegou para ruir o plano, mas não conseguiu derrubar o direito adquirido. O reforço de caixa chegou, mas ao invés de quitinete virou reserva financeira, que amenizou por algum tempo a nova e dura realidade do nosso incauto amigo.

Hoje, ele vive do milênio. Mais especificamente, trabalhando como lavador de calotas no Lava Rápido Terceiro Milênio – de propriedade do Saulo, antigo colega do Ênio, que soube juntar seus ênios sem meter a mão em cumbuca.

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 14 de julho de 2012

ME DÁ UM AUTÓGRAFO?




Andy Warhol




O maior colecionador de autógrafos da cidade de Antuérpia vivia, estranhamente para alguém de quem se esperaria hábitos de paparazzo, como um ermitão em sua casa de 4 cômodos - um deles reservado exclusivamente ao seu imenso acervo. Ao todo eram mais de cinco mil. Não autógrafos, mas categorias de. E estas eram cada vez mais específicas. Cantores, por exemplo, eram separados em canhotos e destros, loiros e morenos, acima e abaixo de 1,70 m, com ou sem sinais evidentes de anomalias anatômicas, circuncidados ou não.

Uma das categorias mais bizarras era a de "Obstetras de Celebridades", onde se elencavam o autógrafo do médico responsável pelo parto de Idi Amin Dada, o ditador facínora de Uganda, e o da parteira de James Dean, uma ruiva nascida no Estado de Massachusetts. Dizia ele que, na impossibilidade de conseguir o autógrafo de grandes personalidades, não menos significativo seria obter a assinatura daqueles que trouxeram tais figuras ao mundo, para o bem ou para o mal.

O fato de ser natural de Antuérpia, referência mundial na lapidação de diamantes, rendeu a ele o autógrafo do sobrinho-neto de Antoine Salisantè, assistente do lapidador que deu a forma final a um dos mais belos topázios de Elizabeth Taylor. A gema pode ser admirada em belíssimo colorido cinemascope nos vinte minutos finais do filme Cleópatra, estrelado pela atriz e grande sucesso do ano de 1963.

O terreno religioso reserva alguns dos mais preciosos exemplares da coleção. Como o de uma mulher, Genoveva, descendente da quadragésima nona geração de São Dimas - também conhecido como "O bom ladrão", aquele criminoso crucificado ao lado de Jesus Cristo e que se converteu minutos antes do suspiro final. Outro autógrafo raríssimo é o do responsável pela emissão do atestado de óbito de Albino Luciani, o Papa João Paulo I, morto após 33 dias de pontificado em circunstâncias mais do que suspeitas.

 Destaque especial merecem as categorias “Maquinistas de Trem” (223 autógrafos), “Mendigos” (397) e “Gandulas” – setor da coleção subdividido em “Gandulas de jogos terminados em empate”, “Gandulas de jogos terminados em cobranças de pênaltis” e “Gandulas de jogos televisionados pela RTP – Rádio e Televisão de Portugal”.

Sabe-se que o acervo ganhou importante incremento quando de uma exposição de Andy Warhol em Nova York, no início dos anos 70. Na ocasião, nosso incansável colecionador matou dezenas de notáveis coelhos com uma cajadada só, ao conseguir roubar o livro de visitas do evento. Nele constavam nomes de primeira grandeza, como John Lennon, Robert de Niro, Mario Puzo, Ted Turner e Muhammad Ali. As páginas com as assinaturas célebres foram cuidadosamente retalhadas com estilete; uma vez subtraídos todos os nomes que interessavam, e mais parecendo um queijo suíço, o livro foi devolvido aos organizadores da exposição.

No momento, dedica-se o nosso herói a buscar os autógrafos de James Watt, Alessandro Volta e André-Marie Ampère, vultos que emprestaram seus nomes ao universo da eletricidade, cunhando respectivamente os tão utilizados termos Watt, Volt e Ampère.



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 7 de julho de 2012

AMANTE MANTIQUEIRA




Do meio da escada rolante, na grande cidade cinza, galopo mentalmente nesse azul esverdeado que é todo teu, Mantiqueira. Vou me encardindo em teu musgo, devasso tua vastidão, perdidamente me encontro em teus cipós e veredas. E já tão verde quanto és, me camuflo do mundo e me soldo contigo, no enlace fecundo entre o animal de mim e o vegetal de ti. Recolho no meu balaio lendas guardadas desde o Gênesis nas copas de tuas árvores. Trazidos por uma aragem passam caboclos e curupiras, camafeus de sinhazinhas, rocas de negras velhas, ais de chibata e de gozo, a grande saga dos séculos que pudeste acompanhar.

Ouves agora o eco? É toda a tua quietude aos berros dentro de mim. Mais um pouco e o sol a pino vai mudando teus matizes e o canto de teus pássaros. Sobrevoo esses mares de morros que começam não sei onde para acabar sabe-se lá. Tuas termas de  vulcões mortos, o enxofre a desprender dos teus ovários. Reconheço minhas veias nos veios de tuas rochas. Me revelas calmamente teus segredos mais nativos: as Pratas de tuas Águas, as Caldas de teus Poços, teus Pinhais de Boa Vista. Me falas dos milhões de anos que levaste na feitura disso tudo. Da paciência que tiveste, do quanto que esperaste para me ver assim, sob feitiço. Me contas histórias remotas, gravadas em xistos, calcários e granitos, num dialeto ancestral só partilhado por nós. Me inicias em teus saberes, me mostras picadas abertas por bandeirantes atrás do ouro das Gerais. Me escancaras as jazidas de teus minérios. Teus urânios, que enriquecidos te empobrecem. Tuas fontes radioativas, tão vítimas da cobiça extrativista. Me banhas como mãe em tuas cascatas, me ensinas que é por causa delas que teu nome é "Serra que Chora", em tupi-guarani.

Mas o que me entregas é quase nada perto do que escondes. O insondável que há por trás de tuas neblinas - uma interrogação que, mesmo fluida, é tão pesada como o ferro que produzes. Porque és, Mantiqueira, quinhentos quilômetros de mistério. Guardas em tuas nascentes o código genético da Terra, sentes em teu manto o dedo de Tupã. Ele, que te esculpiu fêmea, de encostas insinuantes para seduzir os homens.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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