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sábado, 25 de março de 2017

YOU HAVE A NEW MESSAGE




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Um quarto de lexotan, um quase nada, se você mastigar a calma vem na hora - como uma fada invadindo a sala entre tules e incensos. Eu disse, dei a dica, ela no fundo ignora cem por cento do que falo. Lá está, com seus dois olhos que nem piscam, vidrados no monitor do notebook e dando o comando de atualizar página a cada quarenta segundos. Ainda se esperasse algum resultado de biópsia, mas não. Era a ansiedade sem causa aparente, a mim e a quem mais chegasse e não soubesse o que exatamente ela aguardava. E dá-lhe doze emails do groupon, cinco das lojas americanas e suas black, blue, white and pink fridays. Adidas e sua coleção da nova temporada, o mundos é dos nets mas poderia ser dos pets, uma ninhada de beagles nessa campanha. Ela se ajeita na cadeira, respira fundo, faz um alongamento de cervical e fecha os lindos olhos muito mais meus que dela. E a mais certa de todas as verdades do mundo é que se trava agora um duelo entre seus lados - um ansiando para que a mensagem chegue e o envelopinho pisque e outro que desejaria tudo menos a angústia de abri-lo e deparar-se com a crueza cortante do que já adivinhava. Aquilo que não queria ver, se chegasse, mas que acabaria com a morte lenta dessa espera, esse desacontecer fatal. Definitivamente o Criador não desenhou suas criaturas para a paciência.



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Leve três pares de sapatênis por 199,90. Assine a petição do Greenpeace pelo Santuário das Baleias do Atlântico Sul, shoptime, peixe urbano, tecnomídia, bradesco previdência. Alterna agora entre o "verificar emails" e o F5 do teclado, para variar um pouco. Olha pra mim um instante, vai. Que seja só de soslaio, mas dá um fiozinho de atenção e dormirei nas nuvens. Saiba do aflito que viro vendo a aflição sua. Agora ela cabeceia, começa a "pescar", rendida ao cansaço vão. Desperta com o apito da ronda noturna, limpa os óculos redondos. Parece estar rezando, mas será? Um milhão de caixas de bombons suíços em troca de cinco minutos dos seus pensamentos. Ser feliz pode ser simples: deixa que seja minha essa mensagem que não vem.



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Imagem: stopthespeaker.com

sábado, 18 de março de 2017

ME LEVA PRO VELHO TESTAMENTO




Sim, o mundo estava há milênios da invenção da penicilina. O sujeito nascia e já tinha tudo pra cair duro, mortinho da silva, tamanha era a falta de recursos na saúde e na ciência. No entanto, a "morte morrida" custava demais a chegar. E isso é a Bíblia que atesta. 

Vamos a uma breve relação de patriarcas longevos do Antigo Testamento e a idade em que respectivamente bateram a caçuleta: Adão, 930; Seth, 912; Enos, 905; Cainan, 910; Mahalalel, 895; Jarede, 962; Enoque, 365; Lameque, 777; Noé, 950; Sem, 600; Arpachade, 438; Selá, 433; Éber, 464; Pelegue, 239; Reú, também 239; Serugue, 230; Naor, só 148 - deve ter morrido na creche ou no balão pula-pula; Terá, 205; Abraão, 175; Isaque, 180. Por fim o campeoníssimo Matusalém, que, sem grandes cuidados com a carcaça, chegou à impressionante marca de 969 aninhos.

Fica claro que o modus vivendi pré-diluviano, por mais que se julgue hoje primitivo, era muito mais saudável e contribuía para a longevidade. Não é nem questão de deduzir. É fato, a menos que não se leve a sério a Palavra Sagrada ou que se prove que o tempo passava mais rápido naquela época. 

A comunidade científica estufa o peito e convoca a imprensa para apregoar, orgulhosa, que o homem em breve (e esse em breve não raro significa daqui a uns 50 anos) alcançará 120 como expectativa média de vida. Belo chabu. Com essa idade Matusalém era um feto e o respeitável Mahalalel ainda enchia as fraldas no berço. 

O bicho homem do século 21, com toda a sua expertise em descobrir geringonças e fármacos que o possibilitem viver mais e melhor, nem arranha os recordes etários desses heróis do Gênesis.

É ainda uma incógnita a razão por que, naquele mundo ainda intocado de meu Deus, a decrepitude e a morte custavam tanto a chegar. Uma explicação talvez seja porque a carne dos bois, porcos, ovelhas, bodes, cabras, aves e assemelhados de antanho estivessem a salvo dos conservantes, dos ácidos cancerígenos e demais porcariadas que disfarçam a podridão da carne vencida que comemos - produzida, empacotada com carimbos sanitários fraudulentos e exportada mundo afora pelos nossos grandes, assépticos e incorruptíveis frigoríficos. O bom e velho Cainan conhecia seus bichos de abate e sabia muito bem o que botava em sua mesa. Ele e seus centenários amigos eram os caras. 



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sábado, 4 de março de 2017

DIÁRIO, SEU INÚTIL



Escrever um diário pressupõe a tentativa de não deixar tudo por conta da volátil memória humana, de capturar um pouco do que se vive hoje para degustação futura. Isso significa registrar o que de objetivamente acontece mas também, e principalmente, o subjetivo de cada experiência - ou pelo menos dos acontecimentos principais. Sem esse detalhamento, um diário não tem função.

Se excessivamente sumário, um típico dia de semana de um sujeito de classe média, com perfil no instagram e vacinado contra caxumba, traria algo assim:

05 de maio de 1980, segunda-feira. Acordei às seis. Exercício das 6h05 às 6h35. Café da manhã. Trabalhando das 8 às 12h. Almoço das 12 às 14h. Trabalhando das 14 às 18. Jantar. Assistindo televisão até 23h30. 

Imagine isso sendo lido décadas depois. Sem detalhamento essa descrição de tarefas não signficará nada, pois não reconstituirá aquele dia na mente de quem o viveu. Pior: levando em conta o fato de que a rotina, justamente por ser rotina, tende a se repetir, todos os registros serão muito iguais - à exceção de um ou outro episódio mais marcante, a ser resumidamente descrito pelo preguiçoso memorialista. De onde se conclui que um diário é tanto mais eficiente quanto mais detalhado puder ser. 

Por outro lado, partir para um diário excessivamente descritivo também será perda de tempo. Vamos supor um início de diário aos 20 anos e término aos 70. Calculando uma expectativa de vida de 80, nosso registrador de fatos terá apenas 10 anos para ler o relato em detalhes de tudo o que vivenciou ao longo de 50. Afinal, foi com a intenção ler um dia suas recordações que ele decidiu encarar a empreitada. Acontece que não faz sentido ele gastar seus últimos 10 lendo o que viveu, ao invés de viver o que lhe resta. Parece exagero falar em 10 anos de leitura. Porém, por mais que geralmente sobre mais tempo aos idosos, eles tendem a executar tudo mais lentamente, e a depender da prolixidade do diário, será essa a sua tarefa principal até bater as botas. 

A inutilidade do diário não para por aí. Relatos detalhados incluem opiniões do autor a respeito de outras pessoas, nem sempre muito elogiosas. Deixar isso por escrito para a posteridade pode ser perigoso, comprometedor e, dependendo do naipe dos personagens, trazer boas encrencas jurídicas. Para evitar aborrecimentos, seu dono terá que exterminá-lo antes de morrer. E se morrer de repente não poderá fazê-lo, deixando de herança uma bomba de imponderável potencial de destruição.

04 de março de 2017, sábado. Se pensa em começar o seu, desista. Se já tem, toque fogo. 




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